É Lula de novo!

Betty Almeida

Foto: Divulgação

Não vi Lula passar no velho Rolls Royce da Presidência. Havia uma grande massa humana na frente.

Minha filha Paloma abaixou-se para que eu subisse nos ombros dela. Ela é atlética e vigorosa, mas eu tive medo que caísse, me achei muito pesada. Depois, passou a Jana, filha do amigo Eustáquio, e contou que suspendeu a mãe dela, que assim pôde ver o carro passar. Fiquei arrependida e com inveja. Eu poderia até ter subido em uma das árvores, com fizeram muitos, mas tive medo de cair e quebrar algum osso dificilmente soldável depois, por causa da osteoporose. Mas alguns se encarapitaram nas forquilhas incômodas e ali esperaram, tortos e contorcidos, até o Rolls Royce passar, sob os gritos de alegria e aplauso geral.

A Esplanada estava transformada em um labirinto de cercas e caminhos. Em alguns locais a multidão se espremia e coleava com lentidão. Eu, é claro, me perdi de meu neto Heitor e de minha filha algumas vezes. Alfredo, o outro neto, tinha saído de casa cedo e ficado na concentração da UNE de minhas queridas lembranças.

Havia uma alegria, um sorriso geral, uma catarse, uma liberação total pairando no ar, a repressão de quatro anos desfeita, afastada, exorcizada, deixando o grito de alegria e o riso se soltarem. As bandeiras coloridas dos LGBTQIA+ cobriam costas e ombros de uns tantos, a cara do Lula nas toalhas e bandeiras fazia para outros as vezes de guarda-sol; estandartes, faixas, bandeiras e cartazes, coloridos, vermelhos e de todas as cores brilhavam no dia, reluziam em todas as nuances ao sol. Mães carregavam suas crianças em cangurus, escanchadas no quadril, em carrinhos, no colo; muletas e cadeiras de rodas sustentavam muitos, que as necessidades especiais não trancaram em casa, mesmo com sua secretaria extinta ao apagar das luzes pelo maligno.

O ponto dos 68s, na Catedral, furou lastimavelmente. O único a chegar lá, aparentemente, foi o Hélio Doyle, que esperou, não viu ninguém chegar e foi embora.

A Catedral estava isolada por uma cerca, pois era ali que Lula ia passar. Mas insisti em ficar daquele lado e não passei para o outro lado da Esplanada, onde havia mais sombra e onde queria ficar minha filha Paloma.

Avistei enfim uma camiseta 68 Sempre na luta e cheguei perto, puxando conversa, pois é, companheiro, de onde você vem, São Paulo, você é dos grupos de zap, sou, do nacional, da Comissão Facilitadora, ah, é eu também, sou Betty Almeida, eu sou o Fred Ghedini, o reconhecimento afinal se deu, o abraço brotou, apertado e fraterno, tiramos nossas fotos, felizes com o encontro, imprevisto e reconfortante, cada um com sua família, filha, filho, amigo do filho, meu neto, Denise – a companheira de Fred. Uma glória ser 68 e estar ali, juntos, na posse de Lula.

Era um dia de louca alegria, sol, céu azul, nuvens brancas, nem sinal de chuva, os vendedores de capas garantiam que iria chover, sim, que as capas de plástico de dez reais custariam vinte na hora da chuva. Mas não caiu nenhuma gota, o sol brilhou para todos. Chuva, raios e trovões são só para os bolsominions dos acampamentos, onde dentes deviam estar rilhando, enquanto ali na Esplanada nossa alegria corria solta, compensando quatro anos de dor e sofrimento diário.

Uma criancinha perguntava “pai, nós vamos ver o Lula?”, alongavam-se as filas para as barracas de comida, os pontos da água distribuída pela Caesb eram difíceis de encontrar e as filas para beber um copo intermináveis;

um idoso bebia cerveja por falta de água, até ofereceu para minha filha. Os ambulantes faziam falta. Nosso lanche que eu preparei em casa – um sanduíche e uma fruta – pareceu-nos muito frugal.

Três amigas, Gódiva, de Brasília, Mércia e Martine, de Fortaleza, nos deram lindos broches bordados por elas, lembranças da posse. Usavam, orgulhosas, réplicas da faixa presidencial. E depois nos mostraram as engraçadíssimas fantasias feitas por elas, de fantasma do comunismo: um pano de cetim vermelho com olhos e boca pretos, a foice e martelo amarela. Espero que faça sucesso no carnaval.

Em todo caso, o trio fez bastante sucesso ali e posou para várias fotos. Espero também que o bloco de carnaval “Filhas e filhos de Marx” encontre mais seguidores.

Os telões refletiam o sol, não se via muito bem. Mas não fazia mal, o importante era estar ali. Também estive ali em 2002, 2006, 2010, 2014, mas agora era diferente, era a comemoração da uma vitória conquistada duramente, o reerguimento luminoso das trevas do tempo destruidor que arrasou o país econômica, social e moralmente, sufocou a alegria, sugou a energia, esvaziou os ventres e as almas. Estávamos fora da Praça dos Três Poderes e não veríamos a subida da rampa, então minha filha colocou seus equipamentos e saiu patinando, em volteios graciosos, entre a multidão. Eu e Heitor, meu neto, tentávamos filmá-la, logo a perdíamos de vista, ela voltava girando em evoluções suaves e seguimos rumo ao Teatro nacional, único acesso à plataforma da Rodoviária, onde a Mademoiselle Clio (meu fiel carrinho da Renault) esperava, no estacionamento em frente ao Conic.

Paloma encontrou uma família de patinadores, parou, conversou, tirou uma foto agitando a bandeira do querido PCdoB, gentilmente cedida pelo camarada que a segurava;

já perto da rodoviária encontrou outro patinador e por fim subimos para a plataforma onde havia um imenso telão na frente do Conic, diante do qual decidimos ficar mesmo encarando o sol ardente, pois já não teríamos tempo de chegar em casa e assistir o fim da cerimônia pela televisão.

Foi bom ver a saída do congresso, a tropa de seguranças de terno correndo ao lado do Rolls Royce, onde Lula e Janja, Alckmin e Lu, bonitos e sorridentes, espelhavam a felicidade geral, da manhã de Tiago de Melo e do outro dia de Guilherme Arantes, que afinal chegaram, cheios luz e fraternidade, na festa da humanidade preparada por Honestino Monteiro Guimarães.

O suspense afinal se desfez. Lula recebeu a faixa presidencial de um grupo representativo do povo brasileiro: um indígena, uma pessoa com deficiência, uma catadora, uma criança de pele escura como a maioria dos brasileirinhos. A faixa – a mesma usada por Dilma – foi colocada pela catadora. Lula abraçou a todos e colocou à sua frente o garoto Francisco, envolvido em seus braços protetores. Aplaudimos entusiasmados ali diante do telão, unindo nosso grito ao rugido da alegria explodindo no coração dos trezentos mil reunidos ali, da Praça dos Três Poderes até à Rodoviária.

Foto: Tânia Rego / Agência Brasil / Purepeople

Um militante com camiseta da CUT gravava um pronunciamento no celular. Eu e um jovem ouvíamos, interessados e aplaudimos no final. Um bolsominion se aproximou, zombando e chamou Lula de idiota, o que enfureceu o cutista. Eu o puxei pelo braço com toda a minha força de septuagenária aikidoísta para impedi-lo de partir para cima do bolsominion, que acabou por afastar-se sob o “Perdeu, mané” dos passantes.

Lula subiu e desceu a rampa, em meio à paz, ao amor, como se estivesse nos braços daqueles que se amam uns aos outros, se sorriem, se abraçam, dançam e cantam seu canto de paz, como na canção de Carlos Lira. Mas agora, o nosso carnaval não acabou: está apenas começando, cheio de esperança. Lula está de novo lá.

Imagem: Ricardo Stuckert

Betty Almeida é professora aposentada da Universidade Federal da Paraíba, militou no movimento estudantil na UnB e na UFRJ. Autora da biografia “Paixão de Honestino”, membro do Comitê por Memória Verdade e Justiça do Distrito Federal e do grupo Geração 68.


Respostas

  1. Avatar de Isabel Perez

    Texto comovente e fotos maravilhosas, Beth. Parabéns!

  2. Avatar de Odete dos Santos

    Amei o texto….e a posse…ah a posse…momento mais lindo da minha vida….

  3. Avatar de Março António A.Meyer

    Muito bom.
    Estive lá também….Talvez, pertinho.
    Mas, agora é um tempo de dar as mãos.
    A escuridão passou. É um tempo de cantar.
    Mas,nunca se esqueça:temos o maior amor do mundo.É necessário organizar e conscientizar o povo.
    Ousar vencer…Ousar lutar…
    (VEJA O FILME “DUAS HISTÓRIAS” de Ângela Soe (tem no Yootube)
    Feliz 2023

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