Alexandre tinha 22 anos quando foi sequestrado, torturado e assassinado nas dependências do DOI-CODI, em São Paulo.
Era o mais velho de 6 irmãos e, no ano do seu assassinato, iria se formar em Geologia na USP.
Nós, seus familiares, só soubemos de seu desaparecimento uma semana depois, quando ele já estava morto e enterrado como indigente, quando os jornais noticiaram a farsa: “terrorista morre atropelado no Brás ao tentar fuga”. Era a fake news da época.
Como assim “indigente” se a foto e a identificação publicadas nos jornais eram corretas??? A verdade é que depois de ser trucidado pela equipe comandada pelo major Brilhante Ustra, seu corpo envolto numa lona verde-oliva – dessas do Exército – foi enterrado no Cemitério Dom Bosco, em Perus, e a cova coberta com cal para acelerar a decomposição. A ditadura tinha pressa em apagar os vestígios de seus crimes!
Meus pais percorreram uma verdadeira via-sacra para esclarecer as circunstâncias de seu assassinato, localizar o local exato de sua cova e dar-lhe sepultura digna, cumprindo os ritos obrigatórios do luto.
Passaram-se 10 longos anos até que fosse possível trasladar seus restos mortais para o jazigo da família, em Sorocaba, em 1983.
Esses são fatos bastante conhecidos e sentidos pelos familiares e amigos de Alexandre. Mas hoje exatamente fazem 50 anos de sua morte, 2 gerações se passaram. Para quem não viveu a ditadura é preciso contar e contar. E nós, que a vivemos, temos a obrigação de lembrar, não permitir que se esqueça. Lutar contra o esquecimento é dever, é luta constante!
Este ano de 2023 marca também os 50 anos da morte brutal e o desaparecimento de outros jovens idealistas, contemporâneos e companheiros de Alexandre: Ronaldo Mouth Queiroz, Arnaldo Cardoso Rocha, Honestino Guimarães, José Carlos da Mata Machado, Sônia Angel Jones … a quem rendemos homenagens.
Essa Catedral da Sé evoca lembranças e emoções muito fortes. Talvez para a maioria de vocês seja o lugar de manifestar a fé, para outros representa um cartão postal da cidade, um ícone da arquitetura neogótica.
Para mim é o local que, em meio ao medo sufocante de março de 1973, abrigou uma missa memorável de 7º dia. Dez anos depois, acolheria as urnas mortuárias de Frei Tito Alencar e do Alexandre antes de serem trasladadas para seus respectivos jazigos familiares.
Não sou capaz de lembrar as palavras exatas de Dom Paulo Evaristo Arns em sua homilia. Mas me lembro de sua coragem e solidariedade naquela celebração ao afirmar que só Deus é dono da vida e só Ele pode decidir sobre seu fim e, se a vida é dom de Deus, ela tem uma dignidade que precisa ser respeitada, mesmo quando a pessoa estiver presa, morta e nua. Sua voz ecoava pela Catedral: “os homens estão nus, mas têm dignidade”. Depois, Dom Paulo lembrou que o corpo seviciado de Jesus foi devolvido à sua mãe e discípulos para que o sepultasse dignamente. E esse preceito básico de sepultar os mortos, desde tempos imemoriais, nos foi negado. Ainda consigo ouvir a voz de Dom Paulo reverberando: “a voz do sangue de teu irmão clama da terra por mim”!
A justiça demora imensamente. No entanto, a injustiça é rápida e letal. Que o digam as mães dos jovens pretos e pobres executados quase que diariamente nas periferias.
Em 2014, no seu leito de morte, meu pai, lúcido aos 93 anos perguntou ao meu cunhado se as pessoas na USP ainda se lembravam do Alexandre. Se ele estava desencantado com a justiça, restava a lembrança, a preservação da memória, os registros da breve vida de seu primogênito.
Quinze dias após a morte do meu pai, a Comissão Nacional da Verdade apresentou seu alentado relatório sobre as graves violações de Direitos Humanos ocorridas na ditadura militar. A CNV fez 29 recomendações que, ao meu ver, foram recebidas com displicência pela sociedade e solenemente ignoradas após 2016 pelos dois governos seguintes. O que é lamentável! As graves violações de DsHs durante a ditadura não recaíram apenas nas pessoas que as sofreram, mas dizem respeito à toda a sociedade brasileira.
Esperava-se que a entrega do relatório da CNV tivesse forte impacto, cumprindo uma etapa daquilo que os estudiosos chamam de “justiça de transição”, com os objetivos de: – promover a reconciliação; – fortalecer a democracia e – garantir a não repetição.
Conquistamos nova oportunidade de fortalecer a democracia e não vamos desperdiçá-la! Caso contrário, estaremos fadados a sofrer indefinidamente.
Alexandre e seus companheiros fazem muita falta nessa caminhada, teriam muito a contribuir na construção de um país mais justo. É certo que ainda choramos sua morte, mas a ventura de termos convivido com ele é muito maior!
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Maria Cristina Vannucchi Leme, irmã de Alexandre Vannucchi
Catedral da Sé, São Paulo, 17 de março de 2023.



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