CAFÉ NOTURNO – “Uma tempestade que se eleva contra o vento!”

Dilson Cunha

Van Gogh era um pintor sem pele. Sua sensibilidade brotava da carne viva, sem rodeios, sem mascaramentos. Era visceral. Por isso sofrera tanto. Por isso, também, pintou tanto e com tamanha intensidade. Pintou por desespero. A pintura foi sua obsessão e sua libertação também. Foi seu cansaço e seu descanso. Foi seu silêncio e também seu grito. Sua mentira e verdade. Sua vida e sua morte. Foi sua voz e, ainda que tardiamente, sua única forma de ser ouvido. E se teve algo que justificasse sua existência era o ‘ter o que dizer’. Muitos até o têm, o que não significa dizer que dizem. Quase sempre é desconfortável dizer. É sempre mais conveniente se calar. Para o gênio de Van Gogh, não.

Ele disse muito porque muito tinha a dizer, e quando se tem o que dizê-lo se torna uma necessidade e não mais uma opção. Dentre suas obras há inúmeras que se tornaram emblemáticas na história da arte. Os girassóis, Os comedores de batata, Campo de trigo com corvos, Ronda, Noite estrelada, Ciprestes entre outros tão maravilhosos quanto. Mas é o Café Noturno em Arles, de 1888, que sempre me impressionou de maneira particular. Sempre vi que o significado deste quadro para além de uma mera representação. Paradoxalmente, salta aos olhos uma verdade que está para além da retina.

Café noturno em Arles chama a atenção, incomoda e perturba pela profundidade de seu drama, pela carga trágica que carrega. Mas ele faz isso sem ser caricato ou panfletário. Mesmo o tema em si não sugere nada além de um bar noturno pintado em cores fortes e tintas ásperas e rugosas, de pincelada curtas e rápidas. Mas seu significado, sua intenção e seu discurso vai além disso, vai além do que a vista capta apressadamente e é aí que reside seu drama. A história da arte registra inúmeras obras carregadas de drama. Temos, sem delongas, o Cristo Morto de Holbein, que arrebatou Dostoiévsky; Já no século XX, temos a Guernica, de Picasso; a versão trágica de Bacon do Papa Pio XII, de Velásquez; os esquálidos homens pós-Auschwitz de Giacometti. Mas Café Noturno, sem dúvida, deve figurar entre as de maior carga dramática de toda história iconográfica. Como o próprio Van Gogh dissera, o café é um lugar “onde a pessoa pode destruir, enlouquecer ou cometer um crime (…) tudo isso numa atmosfera sulfurina de fornalha infernal para expressar os poderes das trevas numa taberna comum”.

Café Noturno é um óleo sobre papel de fins do século XIX, quando o mundo, grosso modo, dividia-se entre otimistas e pessimistas a respeito do então propalado progresso humano. Para os otimistas o mundo estava às portas de um futuro nunca dantes imaginado. O século vindouro era o vislumbre de uma era áurea que consolidaria o mais completo domínio humano da natureza com o advento das novas fontes de energia e da industrialização triunfante. A felicidade geral e irrestrita era uma questão de tempo. Para os pessimistas, aquele já era um mundo da apoteose da máquina frente à insignificância humana. A industrialização fora cruel com o homem do campo e com toda a sacralidade do trabalho no âmbito familiar. A modernidade se impunha sem misericórdia e eticidade esmagando a alma humana, suas tradições e a integridade do indivíduo. No campo das ideologias, as utopias globais, cada uma ao seu modo, prometiam uma nova humanidade. Em sua aula inaugural em Cambridge, em 1964, C. S Lewis abordou esse período de transição como sendo o que provocou a maior divisão em toda história do homem ocidental. O período que ficou conhecido como o Grande Divisor por conta da brusca ruptura com a tradição foi, segundo ele, maior do que o que separa a Antiguidade da Idade Média e a Idade Média da Moderna. É daqueles momentos que registram profundos deslocamentos de efeitos cataclísmicos que parecem demolir certezas, abalar crenças e por em xeque os até então sólidos pilares da civilização. É sublevação total.

Para Van Gogh, essa felicidade de fin de siècle não se justificava. Ele passou ao largo das porcelanas da Art Nouveau. No Café a atmosfera é outra. O ar é denso. A solidão, palpável. O desespero, sutil, está lá, e quanto mais sutil, mais desesperador. Nas paredes e no teto predominam o vermelho e o verde com as quais o artista tratou “de expressar (…) as terríveis paixões humanas”. O chão, que, aliás, domina o campo visual do quadro, irradia uma luz dourada recortada pela sombra esverdeada de uma mesa de sinuca que ocupa um lugar central no salão do Café. A luz que emana das luminárias incandesce como que queimando o oxigênio do lugar. Restam algumas pessoas no lugar. No centro da parede ao fundo, impassivo, paira um relógio que indica já ser madrugada. Faz escuro lá fora. Dentro ainda há uma ilha de luz, de consciência. Mas por quanto tempo? A festa acabou, tem-se que ir embora. Mas para onde? Que futuro os espera? O passado está em ruínas! Aquelas poucas pessoas resistem ir embora. Um casal conversa fechado em si mesmo. Três homens debruçados sobre a mesa, inebriados da noite, já se enganaram o bastante com a futilidade dos prazeres. Mas, por outro lado, esperar o quê? O Godot, de Beckett, não veio, nem mandou notícias. O que esperar? Na falta do que esperar resta desespero e desesperança.

Em pé, solitário, está um homem de branco, de aspecto impecável, que parece ser o responsável pelo Café, figura enigmática e fantasmal da pintura. Está olhando para nós, seus espectadores, como que querendo nos incluir no seu drama, partilhar sua dor. Restou ele, único sóbrio no ambiente indiferente e hostil. Está assustado tal como o personagem de Munch sobre a ponte (curiosamente, a pintura de Munch compartilha do mesmo ponto de fuga do quadro gênio holandês). Está Inerte. O olhar se fixa no nada, nada que esteja ao alcance do recorte cênico do quadro. O mundo lhe parece estranho, lhe causa mal estar e Isso lhe pesa nos ombros. A mesa de jogo, cessadas suas atividades, já não entretém mais. As cadeiras desalinhadas testemunham a vida que pulsara ali plenamente até poucas horas antes. Há uma ausência recente. Vibra ainda um resíduo de calor humano. Mas acabou. Resíduo é a transitoriedade para a ausência total. Logo, logo o quadro, com todo seu cromatismo, estará escuro. Sem ninguém, sem luz, sem cor.

A cena é curiosa porque é um gerúndio, um continuum, mas um continuum estático, paradoxalmente estático. Está acontecendo, mas não se desenrola, não progride nem regride. Há ainda uma indefinição. Só que é a isto mesmo que Van Gogh quer nos apresentar. Talvez a previsibilidade de um trágico fim fosse até evidente. Mas não se sabe qual a tragédia! Mas não importa, aqui não é o fim que conta. O que importa mesmo é o momento. Esse momento aprisionado que não passa. Essa angústia que teima em ficar. Essa luz que não se apaga logo. Esse relógio que não anda. É um prenúncio não se sabe bem do quê. É a doença mortal de que nos fala Kierkegaard! Não há na paisagem um silver line, muito menos um rainbow no horizonte. Pior que o prenúncio de uma tragédia é seu caráter incognoscível. É uma consciência depressiva. Como se prevenir contra o que não se sabe do quê? É uma potencialização da tragédia. É a tragédia da tragédia. A condição desse homem moderno vangoghiano perdido no meio do Café e cônscio de seu estar no mundo é pior que a do personagem de Munch. Ele não grita (se bem que o de Munch também não grita, quem grita é o céu sobre ele). Este solitário homem de Van Gogh nem mesmo tem o céu desmoronando sobre sua cabeça. Se o céu fez um reboliço na cabeça de Munch sobre uma ponte em Oslo, é Van Gogh quem, em Noite estrelada, fez um reboliço no céu. Há um grito surdo que vem de dentro aos borbotões. O homem de Munch delira. O de Van Gogh, não. Não há delírio nem surto, ele tem que aguentar firme, acordado, enquanto os que o circundam, entorpecidos, dormem. Ele está dentro de uma realidade imponderável. Enquanto as mãos do personagem de Munch se erguem para tapar os ouvidos, as do de Van Gogh estão imóveis, coladas ao corpo. Não há ação, nem reação. Não armou nenhuma guarda, nenhuma defesa. Está tragicamente vulnerável a não se sabe bem ao quê. O homem de Munch é o protagonista, por isso ainda pode vir a ser um herói (hoje ele se tornou um ícone da cultura pop), enquanto o de Van Gogh é marginalizado e continuará desconhecido. A angústia é só dele. É um homem abandonado à própria sorte. Nesse sentido, o homem de Munch suscita misericórdia, solidariedade, empatia. O de Van Gogh passa despercebido. Ele sofre sozinho porque seu grito é surdo, pequeno que é no quadro. Talvez quisesse mesmo até ser incompreendido – comportamento típico do bipolar Van Gogh – pois isso já seria a pressuposição de que fora ao menos levado em conta. Mas é ignorado. Ele não fala, não age, apenas expressa desolação… Não dá para se fingir de morto, embora nele esteja a morte a viver em agonia. Para ele, o milagre não é mais andar sobre as águas, mas sobre a terra. Está em pé de costas para o relógio que, apesar de lhe ser indiferente, sente-o como uma ameaça, uma bomba-relógio prestes a explodir. Parece querer despertar os ébrios que prolongam a noite. Mas detém-se. Não há diálogo. É um solilóquio. Ele é o prenúncio do Ângelus Novus, de Klee, que arrebatara Walter Benjamin. Para Olgária Matos, “O ‘Ângelus Novus’ compreende a humanidade que se afirma na destruição, permanece ‘por trás’, à distância do engajamento político preciso. Ele se mantém entre duas catástrofes, a já ocorrida e a pressentida. A catástrofe existencial’”. “Ele habita um mundo do qual ‘os deuses já partiram ou ainda não chegaram’ (Holderlin)”.

Van Gogh está perplexo com a destruição da alma humana. Já era tempo de ser plenamente informado do “Gott ist tot!” de Nietszche, seu contemporâneo, que diferentemente da leitura simplista e equivocada que se fez e se faz de sua declaração, como sendo uma máxima ateísta, essa era, na verdade, uma crítica ao pensamento humano como negação da vida, a loucura do Ocidente. Do humano sobrou esse ser perdido e errante, o homem moderno, resignado com sua perdição e erro. O drama kierkegaardiano de Van Gogh é o seu desajuste a este mundo, como também fora o drama de Nietzsche e, porque não, de Walt Whitman também. Insatisfação e inquietude. Ele talvez até tivesse apreciado ser como seu irmão Théo, que apesar de ser um sujeito extremamente sensível, humano e de boa cepa parecia estar bem no mundo. Gostaria de ser como Gauguin, que apesar de sua genialidade e loucura, conseguia ver beleza nesse mundo ainda que para isso tivesse que fugir para o distante Taiti. Van Gogh não tem mais tempo nem pele para isso (Conta-se que certa feita, olhando um quadro seu, Gauguin teria dito: “você pinta muito rápido”! Ao que Van Gogh objetara de pronto: “você é quem olha muito rápido”). Não lhe resta tempo nem para procurar a beleza nem para fugir. Todas as tentativas parecem ter falhado. Não se encaixara nessa sociedade pragmática e funcionalista. Nem mesmo na igreja oficial ele coube – crente que era – a qual via como uma instituição cumpliciada com o sistema opressor padrão, tal como pensava Tolstoi e Kierkegaard dentre outros. Nem a arte com sua primazia estética comportara Van Gogh. Pintar para ele era uma emergência que o fez levar a experiência pictórica – e particularmente o impressionismo – a um extremo talvez nunca dantes experimentado. Van Gogh, com suas pinceladas espessas, curtas e rápidas, beirou a Action Painting. Por isso bem disse Argan a respeito de sua pintura: “o quadro não representa: é”. A obra não é apenas um suporte para um discurso, uma plataforma para a narrativa e representação, uma tabula rasa. A pintura deixa de ser só pintura. O quadro em si, com suas texturas e borrões, é o discurso.

Ele carrega a ação, os gestos e os nervos do artista, como se este tivesse acabado de pintá-lo. Nesse sentido, prescinde do tema, que pode ser Os girassóis, Retrato do carteiro, Noite estrelada… A pintura de Van Gogh pulsa, confronta, perturba. Ainda hoje é assim. Há um senso de condolência pelo pintor nos rostos de nós espectadores que observam emudecidos e espantados seus quadros em sua abarrotada sala no d’Orsay, em Paris. É quase um ‘mea-culpa’. É como se disséssemos: então era isso o que ele estava querendo nos dizer? É ainda quase como se nos desculpássemos pela solidão que lhe infligimos por não o termos entendido a tempo. Van Gogh, ainda hoje, expondo nossa má consciência, nos deixa a todos ruborizados de vergonha. Vergonha diante da coragem solitária de um artista em ser honesto com sua verdade, em negar-se a se curvar diante de forças esmagadoras das consciências. Um Diógenes! Como disse Kierkeggard mais de uma vez, “o gênio é uma tempestade que se eleva contra o vento!” Como o seu homem do Café, a impotência de Van Gogh – de onde decorrerá sua loucura – não é a não-potência, muito menos o medo de ser honesto. Sua impotência decorre de sua força de encarar o monstro de frente ainda que soubesse estar fadado a ser por ele engolido. Não é a possibilidade de vencê-lo o que o motiva a insurgir-se contra ele. Nem tampouco a possibilidade de ser engolido que o motivaria a fugir. Quem assim não fez não se conheceu impotente, mas enganou-se, pois nem por isso deixou de sê-lo. Como disse Whitman, “numa terra de fugitivos, quem caminha na contramão parece estar fugindo”. Com Van Gogh é assim, não tem brincadeira: ele desconserta todo risinho fácil, cínico e frívolo do canto de nossa boca.

Por fim, o artista pinta seu réquiem (Campo de trigo com corvos), enlouquece, dá um tiro no peito. Não morre imediatamente. Teria a morte – até mesmo a morte! – o rejeitado também? Théo, seu irmão, não. Théo o ampara como o aparara sempre. Ele lhe fora talvez a mais verdadeira ternura que experimentara na vida. Foi o que lhe fez chegar aos trinta e sete anos de idade. Foi quem lhe deu ânimo e meios para pintar. Passa, agora, as últimas horas com ele, uma noite em sua companhia. Lúcido como sempre, Van Gogh conversa com o irmão até que as luzes e as estrelas, uma a uma, se apagam. Vincent morreu com a certeza de que não fora fácil ter sido Van Gogh. Seis meses depois, Théo veio a falecer de causas naturais. Talvez Van Gogh também tenha sido para ele a mais verdadeira ternura que experimentara na vida, na ausência de quem essa mesma vida perdera toda razão e alegria de ser.

Dilson Cunha

Arquiteto, historiador e artista plástico.


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