Se vás para Chile… (parte 7)

Jean Marc von der Weid, junho de 2023

Introdução:
A partir deste ponto as minhas memórias do Chile deixam de ter a precisão dos
capítulos anteriores. Os 25 dias em que fiquei no Chile, desde a suspensão do toque de recolher no dia 14 de setembro até a minha partida para a Argentina no dia 9 de outubro, estão misturados na minha lembrança. Lembro com muita segurança de episódios que foram marcantes, mas a ordem em que ocorreram e uma série de eventos mais corriqueiros são menos precisos. Já recebi correções de compas com quem compartilhei alguns deles. E peço que aqueles que esqueci de mencionar ou os que têm lembranças diferentes me corrijam. Para dar um exemplo, Marijane me disse que ao sair do apartamento do Amarílio, fomos para o da Márcia e que fizemos compras em um supermercado, com alguns sustos e evitando falar para que outros fregueses, momios eufóricos com o golpe, não nos identificassem como estrangeiros. Não lembro de nada disso. Como não lembro da infinidade de apartamentos e casas
onde me abriguei ao longo desta jornada. E vários dos nomes das pessoas que me ajudaram também sumiram da memória. Por essas razões, vou tratar dos episódios que lembro bem um a um, sem ordem e à medida que os recordo. São os que dão melhor dimensão dos dias e noites intensos e dramáticos que vivi.

Desde logo, queria esclarecer alguns mitos criados por pessoas que escreveram livros e artigos, citando a minha iniciativa de apoiar compas que procuravam uma saída do inferno chileno. O mais conhecido é o Gabeira. Fernando escreveu, na primeira página do seu famoso livro “O que é isso, companheiro” que eu teria ajudado mais de mil pessoas a se refugiarem em embaixadas. Uma aritmética simples indica que o exagero foi grande. Apenas as embaixadas de Cuba, Suécia, México, Argentina, Panamá e Venezuela receberam mais do que seus conterrâneos como refugiados. Não levei ninguém para as duas primeiras, que aliás foram fechadas em dois ou três dias depois do golpe. A do México também foi fechada alguns dias mais tarde. Embora eu tenha levado os primeiros compas que ajudei para esta embaixada, eles foram poucos. Ou
seja, segundo Gabeira, eu teria levado mil pessoas para três embaixadas, mais do que a totalidade dos refugiados nelas abrigados. E teria feito isso em 25 dias, ou 40 por dia. Seria uma procissão na porta de cada embaixada, dia a dia. Impossível, é claro.

Como disse antes, minha memória se borrou e esqueci de muita gente. Já aconteceu encontrar, ao longo do exílio e do retorno ao Brasil, companheiros/as que vieram me agradecer a ajuda sem que eu me lembrasse de tê-la dado. Devem ter sido casos em que a entrada nas embaixadas se deu sem problemas ou eventos dramáticos e eles ficaram ofuscados pelos casos mais complicados. Na minha avaliação, devo ter ajudado não mais de 30 a 40 pessoas, bebês incluídos.

Como tudo começou.

Esta minha empreitada de levar compas para as embaixadas não foi planejada.
Simplesmente foi acontecendo. Não tínhamos ideia de como a polícia e as FFAA do Chile estavam atuando para impedir a fuga daqueles que queriam capturar ou eliminar. Só sabíamos que os estrangeiros eram um alvo, quase tão importante para eles quanto os dirigentes políticos e membros do governo Allende. Tivemos direito a um “bando” (algo como um decreto) especial, o segundo se não me engano, lido por Pinochet na televisão, dedicado a nós. E os setenta eram ainda mais ameaçados, tidos como perigosos terroristas brasileiros.

Em uma primeira avaliação, eu e o Travassos achamos que os golpistas cercariam as embaixadas para evitar a fuga daqueles que estavam perseguindo. Pensamos que teríamos que escapar pela fronteira com a Argentina. Mas antes de colocarmos nossas malinhas na citroneta do Luiz e rumarmos para o posto de fronteira mais próximo, resolvi tentar a embaixada suíça e negociar o refúgio para meus amigos, Luiz, Marijane,Márcia e Zé Duarte, aqueles com os quais estava em contato no momento.

Na minha lembrança foi no próprio dia do levantamento do toque de recolher que eu me dirigi ao centro de Santiago em um taxi, enquanto o Luíz ia com o Amarílio testar a embaixada da China, onde este último tinha muitos contatos. Mas lembro que adotei outra aparência, cortando a barba e o cabelo para perder a pinta de “guerrilheiro da Sierra Maestra”.

O embaixador me recebeu no seu escritório e logo descartou a hipótese da Suíça receber refugiados. Se eu quisesse fazê-lo seria abrigado, como cidadão suíço, mas os meus amigos brasileiros, não. Taxativamente. Eu ainda não sabia que a Suíça estava por reconhecer o novo governo e que o embaixador estava eufórico com o golpe. Segundo soube por um amigo jornalista, que chegou ao Chile logo que os aeroportos foram reabertos dias depois, o embaixador declarou em entrevista que o corpo diplomático suíço brindou com champanhe para comemorar. E em menos de 5 dias, a Suíça foi o primeiro país não fascista a reconhecer a junta militar. Antes dela manifestaram-se o
Brasil do general Médici, o Paraguai de Strossner, a Nicarágua de Somoza e a
Guatemala de Arana Osório, todos ditadores sanguinários. Até o imperialismo
americano (colaborador direto dos golpistas) foi mais discreto do que a democracia suíça.

Sem solução para o problema dos meus amigos decidi garantir a minha própria
segurança. Pedi ao embaixador que me desse um documento dizendo que eu estava
sob a proteção da embaixada. Ele argumentou que o meu passaporte significava
exatamente isso, mas eu insisti e ele me passou para um funcionário. Não sei o que me inspirou naquele momento, mas disse ao funcionário que eu queria um papel com todos os lacres e selos possíveis, algo bem impressionante, e que a declaração fosse escrita em alemão. O burocrata objetou que era melhor que fosse em espanhol, para ser entendido por quem me interpelasse, mas eu insisti. Foi providencial. Com aquele papel eu mostrava o meu passaporte e dizia que era funcionário da embaixada. Como ninguém entendia o que estava escrito este estratagema funcionou várias vezes, inclusive para entrar nas embaixadas, passando pelos pacos que vigiavam as portas. Também pedi ao embaixador o seu telefone privado e combinei chamá-lo todos os dias, depois do toque de recolher (seis da tarde) e pela manhã. Se eu não o chamasse ele deveria se dirigir ao governo militar e tentar me soltar. Apesar de uma evidente má vontade, ele cumpriu o acordo, quem sabe preocupado com a possibilidade de ter o mesmo destino do embaixador suíço sequestrado no Brasil, Enrico Bucher.

A visita teria se limitado a melhorar o meu nível de proteção se o embaixador não tivesse me informado que algumas embaixadas estavam recebendo refugiados e que não havia tropa cercando-as. Ele mencionou o México e o Panamá, dizendo que as embaixadas de Cuba e Suécia já tinham sido fechadas.

Voltei para o apartamento da Márcia no final da tarde e combinamos que no dia
seguinte os três iriam entrar na embaixada do México e que eu iria buscar o Zé, que tinha escapado do cerco do La Moneda e voltado para o apartamento nas Torres San Borja, para levá-lo ao mesmo destino.

A operação foi tranquila, sem polícia ou exército para impedir a entrada de Luíz e Mari e de muitos outros que se acotovelavam nos portões. Os dois insistiram para que eu e a Márcia entrássemos também, mas eu disse que tinha alguma segurança e alguém tinha que ir buscar o Zé. Márcia se dispôs a me ajudar, pois eu não sabia dirigir e isto travaria a operação. Ficamos com o carro do Luíz e partimos para as Torres.

Neste ponto quero dizer que a Márcia foi a grande heroína desta empreitada de ajuda aos compas brasileiros. Ela não tinha nenhuma das minhas salvaguardas e se arriscou muito mais do que eu. Sem ela eu não teria feito nem metade do que fiz.

Catamos o Zé sem problemas e o levamos para a embaixada do México. O Zé estava preocupado com a situação do Wilson, que morava ao lado de uma base da força aérea chilena e era negro, portanto cubano e portanto comunista / terrorista, na cabeça da milicada chilena e dos chilenos de direita. Era super vulnerável e eu e Márcia fomos buscá-lo em casa. Encontramos o Wilson com o Sérgio Granja, recebendo a visita de vizinhos, com direito a pisco Sauer e salgadinhos. Depois de alguns salamaleques com o casal de momios, levamos o nosso segundo pacote para a embaixada do México, ainda sem policiamento. O único frisson desta empreitada foi na entrada do
condomínio onde morava o Wilson, com soldados da força aérea pedindo meus
documentos e batendo continência para os meus papéis e a declaração de que era funcionário da embaixada suíça. Meu truque estava funcionando.

A próxima lembrança foi o Marcão, que dividia uma casa na Providência, na avenida Grécia se não me engano, com o Sérgio Pinho, vulgo Serjoca. Lá encontramos o Gabeira e Vera Silvia, que tinham acabado de escapar de um “allanamiento” ou perquisição, no prédio onde moravam, não muito longe dali. Gabeira aparentava uma calma que era desmentida com a constante repetição do evento: “entramos e saímos do cerco estratégico”, dizia ele, meio catatônico. Partimos para a embaixada da Argentina, apenas porque era a mais próxima. Paramos o carro a um quarteirão e eu fui à frente para ver se havia guarda no amplo portão principal e se ele estava aberto. Andei pelo outro lado da Irrarrazabal e vi que o portão estava escancarado, mas que dois pacos faziam a guarda. Voltando ao grupo, aconselhei que fossem caminhando até a frente da embaixada e passassem correndo pelos pacos, que não tinham como bloquear a larga entrada. Era arriscado e sugeri que o fizessem em dois grupos. Voltei para a minha posição do outro lado da rua, em frente da embaixada e fiquei esperando. Vi os quatro se aproximando, mas um fluxo de carros me cortou a visão e eles sumiram, antes de chegar nos portões. Fiquei em pânico e andei de um lado para outro no quarteirão para ver ser teriam retrocedido. Resolvi entrar na embaixada para checar e apresentei os meus papéis para os pacos. Mais uma vez fui saudado por continências e entrei. Na portaria um funcionário me mostrou o livro onde todo mundo se registrava ao entrar. Lá estavam os nomes dos meus amigos e o alívio foi grande. Mais tarde soube que ao passar por um pequeno portão no jardim da embaixada o Marcão empurrou-o e como estava sem tranca ele abriu-se e eles entraram sem passar pela porta principal.

Depois deles havia o nome de outros três brasileiros no livro de registro e que eu viria a conhecer profundamente: Sandra Macedo Castro e seus dois filhos, Flávia e João Paulo. Meses depois, já na Argentina, comecei um namoro com a Sandra, namoro que virou uma relação firme que durou 10 anos, tornando-me, para sempre, “pai” dos dois moleques.

Ainda agitados pelas emoções do dia, voltamos para o apartamento da Márcia, onde nos amamos com a intensidade da adrenalina que colocava os nossos nervos à flor da pele.

Estes primeiros resultados levaram a que nos preocupássemos com outros amigos e amigas em perigo e tomamos a decisão de fazer o possível para ajudar. Foi assim que tudo começou.

Jean Marc Von der Weid

Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971

Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983

Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016

Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta


Resposta

  1. Avatar de crisrealramos

    Fantástico! Os heróis da ditadura.

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