SE VÁS PARA CHILE (PARTE 10)

Jean Marc von der Weid, agosto de 2023

Introdução: Sei que já escrevi algo sobre o assunto deste artigo, mas não encontrei. Não vou tentar escrever de novo, mas aceitar que vou escrever o novo, provavelmente diferente do primeiro. Vai ser curioso comparar os dois, se o primeiro aparecer.

O allanamiento das Torres San Borja:

As Torres San Borja era um conjunto residencial (em chilenês, uma remodelación) situado entre a praça Itália e o começo da Avenida Bernardo O’Higgins, quase em frente do prédio da UNCTAD e ao lado dos edifícios da Universidade Católica, se bem me lembro. Para os padrões chilenos da época era um conjunto de prédios modernos, todos com 24 ou 25 andares, ocupando um largo terreno cortado pela diagonal Paraguai na parte traseira. Não fui olhar no google maps para checar estes dados, tudo vem de memória e pode estar misturado. Eram uns 6 a 8 prédios com 4 apartamentos por andar e típico de uma classe média alta e muitos estrangeiros como inquilinos.

Entre os conhecidos mais próximos, moravam por lá (em quais Torres eu já não sei dizer) o Travassos, Marijane, José Duarte e Márcia (esta já não mais quando do golpe); Ricardo Azevedo e Sônia Giacomini, Maria Inês e Lúcia Jaime e Luiz Claudio e Maria Eugênia, com uma filinha recém-nascida. Quase todos e todas tinham sido militantes da AP, mas tinham se afastado do partido no exílio. Eu e Ricardo ainda militávamos, embora tenhamos nos estremecido nos embates internos da AP no Chile.

Esperava-se uma operação de perquisição naquele antro de estrangeiros esquerdistas onde ainda podiam ser encontrados dirigentes da agência de inteligência cubana (G2) ou o chefe da polícia política do Estado, a Investigaciones, Coco Paredes. No mesmo dia do golpe houve um ataque específico ao apartamento de Paredes, que morreu combatendo, mas o conjunto das Torres ficou intocado pela repressão. Muita gente saiu de lá para outros refúgios, inclusive Travassos, Mari e eu (ver o artigo 2), mas Ricardo foi preso em seu apartamento. Após 3 semanas de golpe e sem uma ação abrangente nas Torres, começamos a nos sentir mais seguros e passei a frequentar o apartamento do Luiz Claudio, no 22º andar de uma das Torres mais recuadas em relação à Alameda. 

Luiz Claudio tinha sido militante da AP no movimento estudantil do Rio de Janeiro, com uma forte liderança na faculdade de psicologia. Lá pelos idos de 1968, ele foi alçado ao comando regional da R2, Rio de Janeiro e Espírito Santo. E, em meados de 1969, o comando nacional decidiu mandá-lo para o nordeste, para “integrá-lo na produção”.

Fui reencontrá-lo no Chile, onde dava aulas de psicologia na universidade Católica, um antro da extrema direita. Luiz Claudio estava no Chile como refugiado e tinha como documento o “tulo de viaje para estranjeros”, um papel de uma agência do governo (Investigaciones?) que, na época, era uma espécie de atestado de comunista. Maria Eugênia, sua companheira, tinha seu passaporte brasileiro regular.

No episódio que vou contar fui dormir no apartamento do Luiz Claudio sem avisar e encontrei o quarto de hóspedes ocupado por uma visita vinda de São Paulo. Foi uma surpresa encontrar com a Ruth Toledo, minha ex-namorada em cuja casa eu me refugiava quando estava clandestino em Sampa, alternando com o apartamento dos Abramo, Radah e Cláudio, que era bem próximo. Depois que fui preso, a Ruth casou-se de papel passado com meu amigo de infância Luiz Raul Machado, ex-vice-presidente da UNE na gestão do Travassos. No Chile ela já estava separada dele e não me lembro que é que tinha ido fazer por lá. Ela tinha passaporte normal, também, e deveria voltar para o Brasil no dia seguinte.

Conversa vai, conversa vem, acabamos compartilhando a cama e foi dos braços da Ruth que eu acordei aos pulos, ao som de um alto-falante fortíssimo. Eram seis da manhã e havia um nevoeiro espesso que não permitia ver nada no chão, mas a voz cavernosa e ameaçadora não deixava dúvidas sobre o que nos esperava: “atención, atención, los moradores da la remodelación San Borja; están cercados por las tropas del exército de Chile. Todo intento de resistência será aplastado sin contemplación. Permanescan en sus departamientos y aguarden ordenes.

Nos vestimos correndo, como se os milicos já estivessem na nossa porta e fomos ver o Luiz Claudio. Ele e a Maria Eugenia estavam já vestidos e deitados na cama com o bebê ao colo, pálidos e silenciosos, olhando para as paredes.

“Tens algum material que possa ser considerado subversivo?”, perguntei. Luiz respondeu que achava que não e eu fui para a biblioteca dele fazer uma limpeza. Saí com um saco de lixo, contendo alguns quilos de literatura de esquerda que levei para a lixeira ao lado da porta da cozinha. Ao abrir a portinhola vi passar um pacote e ouvi um ruído contínuo que indicava que em muitos outros apartamentos havia gente fazendo o mesmo que eu.

Logo percebemos que o operativo tinha como método ir subindo do térreo até o último andar e calculei que eles chegariam até nós em uma hora. Fomos tomar café e combinar o que dizer. Para todos nós era importante que o documento incriminador do Luiz Claudio não aparecesse. Por sorte ele tinha um documento profissional de professor da Universidade Católica e este passou a ser a sua identidade.

Eu não estava particularmente preocupado com o risco de prisão, já que tinha três semanas de experiências demonstrando a força do passaporte suíço e do documento da embaixada que me dava proteção (ver artigo 3). Afinal, éramos 3 brasileiros e um suíço todos com histórias normais e coerentes para contar. Esperamos sentados na sala, vendo o nevoeiro levantar e o movimento de tropas começando a ficar visível lá longe, no chão das Torres. Foi uma falsa sensação de segurança, baseada em dados bem racionais, mas que o imponderável derrubaria em pouco tempo.

O barulho de botas e ordens de comando foi ficando mais próximo, mas não ousávamos entreabrir a porta para checar o andamento. Finalmente a campainha soou, sem exageros. Também não tínhamos ouvido gritos e portas arrombadas até então. Abri a porta e quase caí para trás. O soldado à minha frente era enorme (ou o meu medo o fez crescer) e empunhava um fuzil metralhadora apontado para mim, com o dedo no gatilho. Mas, passado este primeiro susto, reparei que o soldado não tinha ar agressivo e ele pediu, educadamente, permissão para entrar. Mera formalidade, é claro, mas um alívio apesar de tudo. Tomou os documentos de todos nós e nos pediu que ficássemos sentados na sala, sem nos levantarmos. Chamou a Maria Eugênia para o acompanhar na revista aos outros aposentos e ela foi, com bebê no colo e tudo. Voltaram logo de uma perquisição meramente formal, sem revirar nada nem quebrar o que quer que fosse. Ao terminar ele olhou nossos documentos e fez uma cara de pesar: “lamento informalos que estoy bajo órdenes de llevar todos los estrangeros y presentarlos al capitán al cargo deste inmueble, independiente de los papeles que tengan. Por favor, me acompañen.” Não havia o que discutir com um argumento capaz de dar rajadas de 30 tiros por minuto e fomos atrás dele pelas escadas, até encontrarmos com o tal capitão lá pelo quarto andar.

Tomei a frente do grupo e me dirigi para o oficial dizendo as palavrinhas mágicas: “ciudadano suisso”, e mostrando o meu documento. Foi um choque de realidade, mas também físico. O capitão, que tinha uma pistola colt 45 na mão, usou-a para dar uma porrada no meu passaporte, mandando-o longe. Corri para recuperar a preciosidade tão pouco respeitada, escutando o grito enraivecido do energúmeno: “comunistas, estrangeros comunistas”. Tentei explicar quem éramos e o tipo ameaçou me bater na cara com a pistola, mando-me calar a boca. Não precisa dizer que concordei em fazer o que ele mandava, pois o homem parecia tomado de uma fúria enlouquecida, com olhos esbugalhados e boca retorcida, espumando nas comissuras. Olhei para trás e vi Luiz Claudio, Maria Eugenia e Ruth abraçados com cara de pavor e ouvi o bebê começar a chorar alto. O capitão cortou a palavra de um dos seus subordinados que parecia argumentar algo a nosso favor e berrou uma ordem para um soldadinho que parecia um adolescente: “llevenlos ahoritita para el deposito de detenidos en Diagonal Paraguay, e virou as costas.

Fomos descendo o resto das escadas até o térreo, em silêncio estupefato. Pensei com meus botões: acabou-se a minha sorte. Se não aparecer um oficial menos truculento nas próximas etapas que irão nos levando para o Estado Nacional, estou frito. Qualquer investigação superificial sobre quem era o “suíço” iria derrubar a minha cobertura e a chance de me mandarem para o Brasil embrulhado para presente era enorme.

No pátio de entrada da Torre, o guardinha veio me perguntar onde era a Diagonal Paraguay. Fiquei sabendo depois que tinha sido uma das táticas dos golpistas trocar os regimentos de localização, levando os de Santiago para Los Andes e vice-versa. O soldado não conhecia a capital e eu disse que também não. Na verdade, estávamos bem em frente da dita rua, mas ele nos deixou ali e partiu na sua procura.

Enquanto esperávamos discutimos o que fazer. Sem o soldado, nada nos impedia de sair andando para fora da área das Torres, mas a qualquer momento aquele grupo de civis ia chamar a atenção de algum milico e seriamos aprisionados de novo, com o agravante de termos tentado escapar.

Enquanto discutíamos, apareceu um tenente que veio nos perguntar que fazíamos ali parados e o Luiz Claudio precipitou-se para explicar que estávamos detidos e o nosso guardião estava procurando o depósito de presos do operativo. O tenente fez uma cara de pena e ficou puxando conversa, perguntando quem éramos e o que fazíamos no Chile. Quando Luiz Claudio disse que era professor da Católica, o tenente interessou-se e perguntou em qual faculdade. “Na psicologia”, disse o meu amigo. “En que año?”. El segundo”. Conocés a fulana?”. Si, es mi alumna”. Es mi hermana menor. O tenente estava mais que simpático e eu ousei pedir que nos levasse para fora do perímetro do operativo porque a nossa detenção era um claro equívoco, éramos gente de bem e corretamente documentada. Ele balançou a cabeça tristemente e disse: ”lo lamento, pero no puedo hacer más que desearles buena suerte. E se despediu, com cara de quem não acreditava muito na nossa sorte.

“Da próxima vez, se houver uma, deixe que eu faça a conversa, não precisava sair declarando que éramos presos”.

Neste momento, na deserta Diagonal Paraguay apontaram dois jipes abertos que se dirigiam lentamente para nós. Reparei que no jipe de trás havia gente filmando com várias câmaras e que no da frente a pinta dos soldados indicava que eram oficiais graduados, pois tinham escolta ao seu redor. Sem parar para pensar joguei a minha vida e a dos meus amigos em um gesto desesperado: corri para frente do jipe dos oficiais com o meu passaporte na mão e as mãos para o alto e gritando “ciudadano suisso, ciudadano suisso”. O jipe freou para não me atropelar, a escolta armou os FMs e o mandão levantou um braço para detê-los. De perto vi as divisas de general e dei um suspiro de alívio. Nem os mais ensandecidos golpistas matariam um cidadão estrangeiro desarmado na frente de câmeras de cinema ou televisão. Mais ainda um oficial superior.

O general desceu do jipe e veio falar comigo. Tomou o meu passaporte e abriu-o na página onde estava a minha passagem para Buenos Aires que eu renovava a cada três dias para sempre dar a impressão de que estava de partida, em casos como aquele em que me encontrava. Também deixava a passagem em uma página onde estava um dos muitos carimbos de visto para os Estados Unidos. O general não deixou de ver este visto e me perguntou se eu preferia falar em espanhol ou em inglês. Quando indiquei a língua de Shakespeare ele engatou uma conversa em inglês sobre os Estados Unidos, onde ele me disse ter passado um ano em cursos, um deles em Fort Brag, na Flórida. Estava todo feliz mostrando para a sua corte como era educado e hábil em idiomas.

Satisfeito com as minhas explicações sobre o que fazia no Chile, o general perguntou o mesmo aos meus amigos. Ruth mostrou seu passaporte e passagem para São Paulo e disse que ia perder o avião, que partia em três horas mais. O general chamou um ajudante de ordens e mandou que subissem com a Ruth para buscar a sua mala e a levassem ao aeroporto imediatamente. Nunca mais a vi, mas ela saiu-se muito bem deste percalço.

Maria Eugenia e o bebê foram rapidamente aceitos pelo general e ficou sobrando o Luiz Claudio, nosso calcanhar de Aquiles. Mas o general, decididamente desarmado pelas nossas histórias, perguntou: “y usted, señor, que hace en Chile?”. Soy professor de la universidad católica”, mostrando seu único documento decente. O general rasgou-se em loas: “ustedes son buenos extrangeros y los queremos aqui siempre. Son terroristas y comunistas como los setenta brasileños que nos preocupan. Vayan com Diós”.

Neste momento, me veio uma inspiração e disse em inglês para o general que temia que a nossa prisão equivocada se repetisse e pedi a ele um salvo-conduto que nos desse segurança. Estava pronto para ouvir uma negativa, mas o general acenou positivamente e logo colocou nossos nomes em três salvo-condutos e assinou-os. General Brady, comandante da guarnição de Santiago. Depois de muitos agradecimentos e salamaleques subimos os 22 andares de volta para o apartamento do Luiz Claudio, temerosos de encontrar com o capitão ensandecido. De fato, encontramos com ele, mas o soldadinho que nos tinha escoltado tinha assistido toda a cena com o general e a tinha relatado ao capitão. O dito cujo nos olhou com ódio, mas nos deixou passar resmungando ameaças que não registrei. O alívio foi enorme.

No final do dia aconteceu algo que ganhou os jornais e televisões de todo o mundo. Do alto da nossa Torre vimos uma pilha de livros e documentos ir crescendo ao longo do dia, bem no meio do pátio central, até ficar enorme. Ao anoitecer os soldados tocaram fogo naquele material e as chamas iluminaram o quadro dantesco dos soldados armados jogando mais livros no fogo, os jipes e tanques mais atrás e as cinzas subindo no vento da cordilheira. O fascismo se repete nas suas formas ao longo do tempo. Estávamos vivendo a nossa noite dos Cristais e éramos os novos judeus ou os velhos comunistas, os perseguidos de sempre.

(continua)

Jean Marc Von der Weid

Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971

Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983

Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016

Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta


Respostas

  1. Avatar de Maria Selma de Castro Araujo

    Apesar de ficar tensa lendo o relato, agradeço poder ler essas histórias reais tão próximas em espaço e tempo. Obrigada por compartilhar.

  2. Avatar de Fabiana Eboli Santos

    Estou acompanhando este livro com muito interesse! Desde a parte 1. Aguardo ansiosamente a continuação! Parabéns Jean Marc, por ontem, e por hoje.
    Que estes relatos virem um livro impresso!

  3. Avatar de Helenalda Resende de Souza Nazareth

    Alo, Jean Marc! Gostei de ler sua história. Você, deve se lembrar das reuniões que os estudantes fizeram, antes do 30o Congresso da UNE, no Cambuci, em São Paulo. Eram na nossa casa. Casa de Helenira.
    Sou Helenalda, a irmã de Helenira, que cursava Matemática, na Maria Antonia.
    Fiquei emocionada com o seu texto.
    Um abraço!

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