SE VÁS PARA CHILE (FINAL)

Jean Marc von der Weid, agosto de 2023

As marcas de uma extraordinária experiência de vida e de militância:

Aquele curto período, ou períodos, vividos no Chile, entre janeiro de 1971 e outubro de 1973, foram dos mais intensos e ricos de toda a minha vida. Embora nunca tenha vivido no Chile mais do que 40 dias seguidos, em um total de uns 140 divididos em 4 estadias, o aprendizado político foi imenso. Foi imenso também o processo de autoconhecimento e inesquecíveis as amizades e amores que se prolongaram até hoje.

Nascido no imediato pós-guerra e no início de um dos mais longos períodos de regime democrático no Brasil, eu vivi, até os 18 anos, em uma bolha de classe média alta, sem muito contato com a realidade sofrida do nosso povo, influenciado por uma família católica (mas não carola), liberal nos costumes e conservadora em política. Com um bisavô prefeito do Rio de janeiro e um avô deputado federal, fui mergulhado em um caldo de cultura tipicamente udenista, mas não particularmente anticomunista. Por outro lado, fui criado no sentimento antimilitar e antiditatorial, herdado do meu avô, cassado em 1937 e conspirador antigetulista permanente.

Fui conhecer a política ativa no movimento secundarista, em 1962, arrastado na dinâmica da recém fundada Ação Popular, mas sem saber nada deste partido até 1966. A fervura política do governo Jango, com o ascenso dos movimentos de massas operário, camponês, estudantil e militar, passou-me ao largo no ano de 1963, em que mergulhei fundo na preparação para o vestibular e estudava 10 horas por dia. Saí desta clausura com a última prova para a faculdade de química da Universidade do Brasil (hoje UFRJ) em fins de fevereiro, para descobrir um país em convulsão final, caminhando para o golpe de 1º de abril.

Apesar do apoio de grande parte da minha família e de meus amigos ao golpe, eu me decepcionei muito rapidamente com a “nova ordem”, talvez pela posição do meu avô, expressa em um almoço no dia 3 (se bem me lembro), quando ele fustigou seus filhos, genro e nora com uma frase retumbante e furiosa: “cretinos! Eles vão ficar 20 anos nas nossas costas”. Em 1965, participei da campanha do candidato do PSB ao governo da Guanabara, Aurélio Viana (apoiado pela AP, mas eu não sabia disso), mas foi somente em 1966, no segundo semestre, que eu me meti no movimento universitário que denunciava o regime ditatorial em manifestações de rua e com a ocupação da faculdade de medicina. Daí para frente, fui me envolvendo intensamente e assumindo uma liderança na minha faculdade que me levou à presidência do Diretório Acadêmico em agosto de 1967. Este passo foi algo que, nem eu nem ninguém que me conhecia, poderia prever, já que eu era uma pessoa tímida, com uma vozinha rouca e sem maiores predicados para líder de massas. Era um bom orador de assembleias e péssimo nas ruas. Mas mostrei um pendor inesperado para o chamado trabalho de base, discutindo incansavelmente com colegas de qualquer posição política, saindo da bolha da esquerda na faculdade para ser respeitado até pela direita. Tinha um outro predicado que nunca perdi: nunca fui de aceitar uma posição sem discutir e aprofundar os prós e contras, numa fase em que a esquerda se marcava muito por discursos dogmáticos, simplistas e sectários. Eu pesquisava as posições que assumia e isto me levou, por exemplo, a estudar a proposta de reforma universitária da ditadura e a escrever, talvez, o único texto bem embasado do movimento estudantil, condenando o Acordo MEC/USAID e a cobrança de anuidades. Daí para a presidência da UNE foi um salto imprevisível e improvável, que ocorreu sem contar, inicialmente, sequer com o apoio da AP, e até com minhas próprias intenções.

Mas o movimento de massas em que eu me formei, embora amplo e radicalizado, ocorreu em um vácuo da ação das chamadas classes fundamentais, operária e camponesa, submetidas à uma repressão muito mais dura do que a que nos atingiu na universidade. Não tive a formação teórica que os militantes dos partidos marxistas sempre proporcionaram aos seus quadros. Fui lendo textos de Lenin e Mao meio aos trancos e barrancos, sem que a intensidade da minha participação na luta política me desse muito tempo para discutir e digerir os clássicos. Atuava mais por instinto do que por teoria e talvez isto tenha sido positivo, já que os que eram mais formados tendiam (a meu ver) para um dogmatismo para mim inaceitável. Só fui estudar Marx, Engels, Lenin, Mao, Trotsky e Stalin já no exílio na França e me preocupei sempre de tentar ler a teoria no contexto histórico em que foi formulada.

O Chile representou, apesar do meu contato apenas intermitente com aquele riquíssimo processo, uma escola política excepcional. Os movimentos de massas operário e camponês eram vivíssimos e intensos e as aulas práticas sobre os processos de participação fascinantes. Até a derrota desta luta gigante foi importante na minha formação, com todo o debate sobre as formas de tomada do poder pelas massas e as opções que se abriam no enfrentamento das forças da burguesia e do imperialismo.

O Chile também foi o lugar em que fiz opções radicais pelo que representavam de risco de vida. Desde logo devo explicar que nunca fui do tipo considerado vulgarmente como “bravo”. Não era brigão e, sempre que possível, evitava enfrentamentos. Desde garoto eu tinha dificuldades em machucar os outros. Nas brigas em que eventualmente tive que me meter, eu tentava dominar o adversário sem ferí-lo, embora nem sempre isto fosse possível e o sentido de autopreservação acabasse prevalecendo. A violência me assustava, mas sempre fazia esforços para não agir dominado pelo medo, fazendo com que muitas vezes as pessoas me achassem corajoso por ter enfrentado algum perigo. Tinha outros medos, como o de altura e procurei dominá-lo tornando-me alpinista. Tinha medo ou vergonha de falar em público e por muito tempo eu corava como um adolescente ao tomar a palavra. Tinha pavor de ser rejeitado pelas garotas, mas fui fingindo que era galã para disfarçar. A palavra definidora talvez seja timidez. Não passei a vida fugindo do que temia, mas tive que fazer um exercício permanente para enfrentar os temores.

No Chile, ao decidir não partir no primeiro avião em Pudahuel reaberto, aceitei a tensão de ter que dominar o medo dos riscos que estava correndo. Tomei todas as precauções possíveis para minimizá-los, mas sabia que estava em uma corda bamba e que qualquer derrapagem me levaria para um fim provavelmente medonho. Ganhei fama de ter um sangue frio e autocontrole notáveis, mas só eu sei o quanto as tripas doíam em contrações furiosas, com os instintos dizendo para correr e a razão dizendo para ficar.

E porque fiquei, afinal de contas? Na verdade, não obedeci a nenhum projeto pensado e avaliado. No primeiro momento, apenas procurei ajudar os amigos mais próximos (Luiz, Mari, Duarte, Negão, Reinaldo, Marcão, Gabeira, Vera Silvia, Serjoca). Mas resolvidos estes casos outros foram aparecendo naturalmente e eu não podia simplesmente virar as costas para conhecidos ou desconhecidos, companheiros e companheiras, em situação de risco, quando eu tinha condições de ajudar.

Por outro lado, fui sendo tomado por um sentimento de enorme revolta contra os facínoras golpistas e a onda de ódio que eles derramaram sobre o povo chileno e sobre a comunidade de exilados que tinham encontrado no país “de asilo contra la opressión” uma nova pátria. O hino do Chile tem outra frase que, profeticamente, se apresenta como alternativa: “la tumba de los libres”, e foi esta consigna a que prevaleceu com o golpe. Quixotescamente, reconheço, a alegria de salvar meus compatriotas se somou ao prazer de tirar uma vítima das mãos dos filhos da puta no poder. Era uma guerra particular e tive dificuldades em aceitar o momento em que os riscos passaram a ser muito mais explícitos, recomendando uma retirada. Adiei várias vezes a partida até que os sinais de perigo foram ficando mais fortes. Por outro lado, podia respirar fundo porque tinha conseguido criar uma mini máquina organizada para seguir travando esta luta. Neste final de combate, os resgatados eram, cada vez mais, camaradas latino-americanos, sobretudo chilenos, e desconhecidos. Esta impessoalidade talvez tenha sido um fator que permitiu a partida para Buenos Aires sem remorsos por deixar compas para trás.

Termino estas memórias dos dias dramáticos, mas também gloriosos, em que eu me arrisquei por amigos e por desconhecidos, enfrentando uma das mais odiosas ditaduras que infestaram o nosso sofrido continente. É uma prestação de contas para mim mesmo e fico feliz por tê-la feito.

Viva Chile, mierda!

Jean Marc Von der Weid

Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971

Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983

Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016

Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta


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