Crimes impunes da ditadura e a necessidade imperiosa de apurá-los e julgá-los para que não se repitam, para que nunca mais aconteçam

Mariluce Moura – 18/03/2024

  1. O comunicado

“Empenhados em desarticular as organizações subversivas de cunho marxista-leninista, os Órgãos de Segurança empreenderam, a partir do mês de setembro passado, uma série de operações para atingir os principais focos dessas facções, notadamente o eixo SAO PAULO – RIO – SALVADOR – RECIFE.

Durante o mês de outubro, surgiram os primeiros resultados, com a prisão, nessas cidades, de inúmeros militantes da AÇAO POPULAR MARXISTA-LENINISTA’ (APML).

Assediados em SAO PAULO e no RIO, alguns ativistas dessa organização subversiva se evadiram para outros Estados, enquanto os remanescentes do Comitê Nacional combinaram a realização de um encontro no RECIFE destinado a “um exame profundo da situação.”

Na Capital de SÃO PAULO foi preso o subversivo JOSE’ CARLOS NOVAIS DA MATA MACHADO, codinomes “FERNANDO”, “HILÁRIO”, ALBERTO”, “NANDO” e “ALOÍSIO”, integrante do Comitê Nacional da APML, encarregado do “Setor Campo” nas áreas de SÃO PAULO, RIO, SALVADOR e RECIFE. Além de outras prisões, foi possível, em SÃO PAULO, desarticular parte da base de operações dessa facção.

Em SALVADOR, entre outros subversivos do Comitê Regional e militantes diversos, foi preso o Chefe Regional GILDO MACEDO LACERDA, codinomes “FREDERICO”, “FRED” e “MÁRCIO”.

Igualmente no RIO e no RECIFE, várias “células” foram desativadas, bem como foi possível a prisão de muitos militantes.

Os subversivos MATA MACHADO e GILDO, durante os interrogatórios confirmaram uma reunião programada para RECIFE. Ambos informaram que no dia 28 de outubro teriam, nessa cidade, um encontro com um subversivo de codinome “ANTÔNIO”, ainda não identificado e que seria um dos Chefes do Comitê Nacional, encarregado da “Comissão Executiva” e da “Secretaria Internacional” da APML.

No dia 28 de outubro, sob a observação das equipes de segurança, foi propiciado o referido encontro. Cerca das 19h30m, na Avenida Caxangá esquina com a Rua General Polidoro, um elemento de cor branca, cabelos louros e compleição forte, aproximou-se do local onde se encontravam os dois subversivos. Pressentindo alguma irregularidade e a movimentação dos agentes de segurança, abriu fogo contra seus presumíveis companheiros acusando-os, aos gritos, de traidores, ocasião em que se iniciou o tiroteio.

Aparentemente ferido. o criminoso evadiu-se, deixando morto no local o subversivo GILDO e, gravemente ferido, MATA MACHADO, que morreu, quando era transportado para o hospital.

Dois agentes de segurança ficaram feridos, um com maior gravidade, que já está fora de perigo, após delicada cirurgia.

Os Órgãos de Segurança prosseguem as operações visando a identificação e prisão do assassino acima referido, o que deverá ocorrer a qualquer momento, bem como a desarticulação total dessa organização em todo território nacional.”

  1. Realidade e mentiras

As mentiras, a manipulação, a desinformação ideologicamente fabricada, postas em marcha pela ditadura brasileira de 1964-1985, eram tecnologicamente distintas das mentiras, da manipulação e desinformação hoje produzidas e disseminadas em mega escala e velocidade espantosa, no país e em grande parte do mundo, pela extrema direita.

Entretanto, separados por décadas, em sua essência, em sua íntima natureza e propósitos, é o mesmo fenômeno que, afinal, nos dois casos contemplamos, porque aquilo que se esculpe, preserva ou busca expandir por meio das mentiras deliberadas, da manipulação e da desinformação é um projeto fascista em sua real nudez, é a destruição da democracia, a desmontagem do espaço civilizado do debate e da diferença, é a aniquilação do pensamento divergente e do outro até sua eliminação física.

Fascismos, nazismo, totalitarismo, ditaduras – por essas palavras temos buscado abordar e decifrar esse lado do horror do que é humano expressado na política e na guerra, com desbordado em matança industrial, chacinas e genocídios variados. Sob a expressão crises do capital e suas variantes – financeira, mercadológica, inovativa etc. etc. – temos incessantemente tratado de deslindar aspectos novos ou reiterados da velha e marxiana luta de classes que, essencial e irremediavelmente, opõe os nossos interesses, os de nós, trabalhadores, o elo fraco dessa história, aos do capital.

Há novas e complexas formas de sociabilidade engendradas pelo avançar contínuo das tecnologias e da inovação, claro — aí estão as redes sociais e as ameaças e promessas da chamada Inteligência Artificial para nos assegurar isso diariamente. Há novas e preocupantes formas de religiosidade voltando as costas para o sagrado e reivindicando sua expansão no espaço combinado da política e dos negócios — ou negociatas. Sim, sabemos que o Brasil de 2024 com sua teologia do domínio, para tomar a expressão de João Cezar de Castro Rocha (UERJ), ou com a construção no país da pátria cristã, para trazer o conceito desenvolvido por Gabriel Feltran (UFSCar), é bem distinto do Brasil de 1964, com suas “senhoras católicas de bem”, fazendo marchar a família com deus pela liberdade — e de certo modo, muito mais perigoso nesse terreno.

Ainda assim, estamos ante uma natureza, ou um núcleo persistente, em suas formas cambiantes de apresentação no tempo e no espaço.

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Essa nota que aqui lhes apresentei, conhecida de alguns, desconhecida de muitos, foi lida pelo apresentador Cid Moreira no Jornal Nacional por volta das 20h da quarta-feira, 31 de outubro de 1973, para aproximadamente 70 milhões de brasileiros que então constituíam a audiência fiel do mais importante noticiário do país de 93 milhões de habitantes. Sim, em 80% dos domicílios com tv no país, assistia-se ao JN – hoje ele ainda atinge 40% dos domicílios, de acordo com números da Kantar Ibope Media de março de 2023.

Entre os que ouviram Cid Moreira lendo a nota mentirosa estava Márcia Lacerda Alves, 25 anos, que dessa forma chocante foi informada da morte do irmão querido, um ano mais novo. A ela caberia a terrível tarefa de informar dias depois a sua irmã 11 anos mais nova, Maria Aparecida, e a seus pais, Agostinho e Justa Garcia Macedo Lacerda (Célia apelidada), pequenos agricultores em Veríssimo, no Triângulo Mineiro, que o filho de 24 anos fora preso em Salvador, fora morto em Recife, e mais, que não houvera nem haveria enterro a ser feito. Uma morte incompreensível, “apenas uma notícia de jornal”, diria seu Agostinho no curta metragem Anistia – 1979 DC, de Agnaldo Siri Azevedo, Rino Marconi e Timo Andrade, e que morreria em 1986 sem nada além daquela notícia. Dona Célia pediria insistentemente até falecer, em 2004, que a ajudássemos a encontrar os restos mortais de seu filho para lhe dar um enterro digno. Em vão! Fracassamos.

Os autodenominados órgãos de segurança imporiam a todos os jornais brasileiros, como de hábito, então, a publicação da mesma nota farsesca em 1º de novembro de 1973. Foi num dos jornais baianos, não sei se A Tarde ou o Jornal da Bahia, entregue a mim na manhã daquele dia, no quarto de prisioneira solitária no quartel do Forte de São Pedro, por um odioso capelão da VI Região Militar do Exército, que a li. Não entendi, não podia entender, li de novo e de novo, por entre a falação idiota do capelão, e então o mundo inteligível recuou. O mundo desapareceu. À distância de 50 anos, eu diria que o mundo conhecido desapareceu à maneira da água na beira do mar que subitamente recua e antecede por instantes o tsunami que faz submergir todo o real. E depois, o mundo no qual somos então apenas náufragos sobreviventes, é inteiramente outro.

  1. A busca da verdade

A profunda experiência pessoal de dor decorrente dos crimes da ditadura de 1964-1965, com diferentes nuances ancoradas na história e na personalidade de cada pessoa atingida, repetiu-se milhares de vezes naquele período. Um triste inventário nos levou a nomear, depois da atividade intensa das comissões da verdade, 434 mortos e desaparecidos, a contabilizar 8.350 indígenas assassinados e um número ainda indefinido de camponeses eliminados pela sanha homicida do regime.

Assim que a ditadura deu a mais ínfima brecha, nossas buscas individuais por nossos entes queridos foi se transformando em luta organizada dos familiares de mortos e desaparecidos. Todos nós, opositores do regime em geral, sofremos uma importante derrota na promulgação da lei da anistia em 1979, com reflexos severos até o presente e evidentes ligações com a prática golpista de militares e elites econômicas e políticas brasileiras, expressadas no impeachment da presidenta Dilma Rousseff ou nas tentativas do governo militarizado de 2019-2022 de anulação da democracia, que culminaram no episódio violento do 8 de janeiro deste ano. Derrota porque bradávamos por uma anistia ampla, geral e irrestrita e, em vez disso, a Lei que obtivemos, negociada com os próprios chefes do regime, era estreita e concedia perdão preventivo a torturadores e criminosos.

De todo modo, voltaram ao país as centenas de exilados que haviam se espalhado pelo mundo e agregaram-se à luta pela democracia. De todo modo, voltaram ao país as centenas de exilados que haviam se espalhado pelo mundo e agregaram-se à luta pela democracia. Teríamos em seguida, no país, a derrota do movimento “Diretas Já!”, na votação do projeto das eleições diretas para a presidência da República, em 1984.  E veríamos, nós, familiares de mortos e desaparecidos políticos da ditadura uma nova, importante, mas parcial vitória, em 1995 com a Lei que criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Ditadura no governo FHC,

Em nossa já tão longa luta por Memória, Verdade e Justiça, a instauração das comissões da verdade, em maio de 2012, foi um forte momento de afirmação e esperança. O relatório final com as 29 recomendações da Comissão Nacional da Verdade, a despeito das sombras que já se adensavam fortemente no horizonte político do país, aqueceram nosso plano de consolidação da democracia brasileira.

  Atravessamos tempos de horror crescente a partir de 2016 e, como sabemos todos aqui, foi duríssima a luta para impor uma derrota significativa ao fascismo nas eleições de 2022. E ela segue sendo exigente. Nosso inimigo não dorme, vide discursos, comícios, matanças perpetradas por polícias militares no país todo, com destaque nesse momento para São Paulo, cuja PM promove uma chacina na Baixada Santista, que já contabiliza 49 pessoas executadas devido ao pretexto de um único policial morto no verão. A extrema direita também não dorme pelo mundo afora, vejamos, como exemplos, o genocídio na Faixa de Gaza e o imenso apoio nos Estados Unidos ao Donald Trump, que tem chances de ser eleito.

Gostaria de me encaminhar para o final dessa fala com duas observações: primeira, é que vamos ter que brigar muito e de muitas formas pelo restabelecimento da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Ditadura ainda no atual governo, trazendo mesmo a questão dos mortos e desaparecidos para uma centralidade que, na verdade, jamais teve na luta democrática. Jogar luz no passado para tentar arrancar dele fatos aterrorizantes que permanecem encobertos, não é remoer o passado, é compreendê-lo em nossa violenta história como nação, para termos uma mínima chance de seguir um outro rumo, no sentido de uma sociedade democrática, mais justa e inclusiva. A ditadura brasileira e seus crimes de lesa-pátria precisam estar nos livros de história e nas produções culturais do Brasil!!

Segunda observação é que, não nos iludamos, a construção da democracia brasileira, o julgamento dos crimes de lesa-pátria que militares e sus aliados civis cometeram, demandam a desmontagem da presença política indevida e da tutela militar em nossa vida republicana. Trata-se de necessidade vital, não importa quanto tempo nos tome.

E não vou nem citar aqui os textos ou afirmações mais recentes de, por exemplo, excelentes colegas jornalistas sobre essa eterna preocupação da mídia corporativa com os humores e a qualidade do sono dos generais. Recorro a Piero C. Leirner (UFSCar), autor de O Brasil no espectro de uma guerra híbrida: militares, operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica, que em um webinar organizado pelo Instituto Ciência na Rua, em setembro de 2021, observava que “a eleição de Jair Bolsonaro não refletia apenas uma retomada da participação política dos militares após mais de 30 anos afastados do poder. “O atual presidente, um claro representante da, digamos, terceirização de poder contida no atual projeto militar para o país, também representa, com seu visceral descontrole, um fator estratégico de desestabilização, contra o qual os comandantes podem se posicionar como agentes de manutenção da ordem”.

Acrescentava que não estávamos diante de uma tomada só do governo, mas do Estado, de uma forma terceirizada. “Desde 2014 estão alavancando Bolsonaro como um agente operacional dessa terceirização para a chegada ao poder. Como ele é descontrolado, eles vão operar com fatores de reposição de uma ordem perdida. “Ou seja, o plano não é apenas para o governo Bolsonaro, mas é para o que vem depois também”, afirmou ele.

Questão para refletir quando observamos a cautela extrema do atual governo para não ferir os brios dos generais, mesmo que uns três ou quatro sejam presos em algum momento por determinação do STF, junto com seu aliado civil. Afinal, lembremos, o governador de São Paulo está na pista.

Muito obrigado!

Mariluce Moura

Jornalista e pesquisadora, Mariluce Moura, nascida em Salvador-Bahia em 03/11/1950, é diretora-presidente do Instituto Ciência na Rua, organização não governamental de pesquisa e jornalismo de ciência voltada ao público jovem. Atualmente é também pesquisadora do INCT Combate à Fome, vinculado à USP, em seu eixo temático de Comunicação-Difusão Científica e Ciência Cidadã, e do Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (Sou Ciência), vinculado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Atua no campo do jornalismo científico desde 1988, depois de duas décadas de trabalho no jornalismo geral e econômico em grandes jornais e revistas brasileiros. Criou e foi diretora, de 1999 a 2014, da revista Pesquisa Fapesp, editada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Deu início à implantação do setor de comunicação dessa fundação em abril de 1995 e foi sua gerente de comunicação de dezembro de 1995 a julho de 2002. É professora titular aposentada da Universidade Federal da Bahia, reintegrada em dezembro de 2015, por decisão da Comissão da Anistia/Ministério da Justiça, 40 anos após ter sido demitida por perseguições políticas da ditadura militar de 1964-1985. É graduada em Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia (1972), mestra (1987) e doutora (2006) em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e tem um pós-doutoramento pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas (Labjor-Unicamp, 2019). Lançou no Memorial da Resistência de São Paulo, em outubro de 2023, por ocasião dos 50 anos do assassinato pela ditadura de Gildo Macedo Lacerda, seu marido, o livro A revolta das vísceras e outros textos, edição ampliada de seu romance premiado publicado em 1982. No mesmo ato, Tessa Moura Lacerda, sua filha, professora de filosofia da USP, lançou Pela memória de um paí[s]: Gildo Macedo Lacerda, presente!. Mariluce Moura foi presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico.


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