Desafios da Justiça de Transição: Memória, Verdade e Reparação

Francisco Celso Calmon

Muitos quadros políticos desconhecem o conceito de Justiça de Transição, a sua importância e alcance estratégico transformador, compreendendo-a como um subitem dos Direitos Humanos (DH), um reducionismo conveniente ao institucional.

Concebo a Justiça de Transição (JT) como um processo no qual as violações de todos os direitos, especialmente os DH, pelo Estado ditatorial, sofrem reparações judiciais, reformas no sistema político, jurídico e social, para impedir a repetição do arbítrio e da impunidade. É a ponte segura para a construção de uma democracia sustentável, e  é um instrumento estratégico para transformar o sistema e alicerçar a construção da democracia popular.

Como processo, a JT tem basicamente três eixos. O 1º é o de trazer à superfície a memória daquilo que foi abafado, deformado e mentido. Contraditar a narrativa degenerada durante o arbítrio com a memória verdadeira, baseada em provas documentais e testemunhais.

Com isso passa-se ao 2º eixo, que é o estabelecimento da verdade incontestável, pois fruto de um rigoroso trabalho de pesquisas alicerçadas sobre provas, e ampla divulgação à sociedade.

O 3º eixo é o da justiça, que se abre em duas linhas: a primeira é a reparação moral, psíquica e material, a aqueles que foram atingidos pelos sistemas anti civilizatórios, tal qual o etnocídio dos indígenas, o genocídio dos negros, e dos afetados diretamente pelos regimes excepcionais, ou seja, os atingidos pela ditadura do Estado Novo e pela Ditadura Militar, e, também, pelas práticas protofascistas do governo bolsonarista; a segunda linha da justiça é a responsabilização do Estado e a criminalização dos seus agentes, autores das políticas terroristas e dos crimes de lesa-humanidade e lesa-pátria.

Como produto dessas três fases ter-se-á as recomendações de reformas no sistema, para limpar o lixo dos regimes passados e tornar sólida a construção da democracia, cabendo ao Estado a implementação dessas reformas, sob acompanhamento e cobrança da sociedade civil organizada,

É um equívoco compreendê-la somente pelos seus três eixos de per si, excluindo a totalidade do processo e seu corolário, que são as reformas políticas, para que nunca mais ocorra um regime excepcional de autoritarismo, como a ditadura militar que vivemos e combatemos, e seu filhote retardado, o nazifascismo bolsonarista, ela é a ponte segura para a construção de uma democracia sólida, sem o risco de recorrências às medidas antidemocráticas e ferramentas totalitárias.

Como no Brasil não teve uma ruptura com o escravagismo, não houve reparação ao etnocídio e genocídio dos indígenas e negros, por isso, a JT deve abranger todos os períodos traumáticos de nossa história, os quais estão interligados como fenômenos dialéticos.

Reside na unidade dos historicamente atingidos pelo Estado, a força para lutar pela constituição da COMISSÃO ESTATAL PERMANENTE DE MEMÓRIA, REPARAÇÃO E REFORMA.

Uma vez criada, a sua continuidade independerá de um governo. Agora necessitamos do governo Lula/Alkmin para encaminhar o projeto para o Congresso nacional.

A composição sugerida da CEPMR é de no mínimo 8 (oito) membros, com mandato de cinco anos, renováveis.  Representante do Executivo (Ministério dos Direitos Humanos), do Legislativo (Comissão de DH da Câmara), do MPF (idem), da Defensoria Pública Federal (idem), e da sociedade civil (movimentos dos indígenas, dos negros, dos anistiados, e dos filhos e netos dos ex-prisioneiros das ditaduras).

A Comissão Nacional da Verdade elaborou 29 recomendações para o Estado, infelizmente até o presente não implantadas.

Pressionar por sua implementação e avançar em outras propostas é o nosso dever enquanto ex-combatentes da ditadura e a todas e todos comprometidos com os direitos humanos no Brasil.

Francisco Celso Calmon

Ex-coordenador nacional da Rede Brasil – Memória, Verdade e Justiça; membro da Coordenação do Fórum Direito à Memória, Verdade e Justiça do Espírito Santo. Foi líder estudantil no ES e Rio de Janeiro. Participou da resistência armada à ditadura militar, sendo sequestrado e torturado. Formado em análise de sistemas, advocacia e administração de empresas. Foi gestor de empresas pública, privada e estatal. Membro da Frente Brasil Popular. Autor dos livros “Sequestro moral e o PT com isso?” e “Combates pela Democracia”, coautor dos Livros “Resistência ao Golpe de 2016” e “Uma sentença anunciada – O Processo Lula”. Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Articulista de jornais e livros, coordenador do canal Pororoca.


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