Doutor Ramon, Prêmio Lenin da Paz, chega a Santiago

Tomás Togni Tarquinio

A história do Doutor Ramon foi uma das mais insólitas que assisti no Chile como responsável da “caixinha”. Para quem não sabe, era uma associação informal de ajuda aos exilados brasileiros que chegavam às pencas ao Chile durante a ditadura.

Um belo dia, um senhor de meia idade desembarca em Pudahuel, se identifica aos policiais do aeroporto como Doutor Ramon, médico psiquiatra. Adiantou que saía das masmorras brasileiras e que era, nada mais nada menos, Prêmio Lenin da Paz. E que queria ser recebido pelo presidente Allende. O personagem falava português com um forte sotaque de latino-americano hispanofônico, para não dizer “portuñol”. Se dizia conterrâneo e amigucho do paraguaio Augusto Roa Bastos, autor do clássico romance “Yo y el Supremo”.

Ramon foi recebido no palácio de La Moneda não sei por quem, porém, afirmava, sem ruborizar, ter sido por Allende em carne e osso. As autoridades chilenas informaram a “caixinha” a chegada ao Chile do ilustre refugiado. A “caixinha” levou ao conhecimento dos representantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em Santiago para assegurar-se de quem se tratava.

Entre a chegada do Dr. Ramon e a averiguação de sua identidade, levou-se um certo tempo.  Enquanto isso, Dr. Ramon começou a clinicar em um dos principais hospitais de Santiago, creio que no Barros Luco. Um dos médicos brasileiros que ali trabalhava, Celestino, constatou que todos pacientes que consultavam o Nobel da Paz invariavelmente deixavam a clínica com uma receita de Valium 10 na cuca. Era o único medicamento que prescrevia.

Dr. Ramon poderia ser um incrível personagem romanesco: discorria sobre os vários presídios brasileiros pelos quais afirmava ter passado, como Carandiru, Tiradentes, Linhares, Lemos de Brito, descrevendo o prédio, a entrada, a saída. Bem como sobre os diálogos mantidos com vários detidos políticos que se encontravam nesses presídios. Não verifiquei a veracidade das afirmações, mas eram palavras persuasivas, pronunciadas com convicção.

Quando finalmente o PCB respondeu à “caixinha” que desconhecia a existência de tal indivíduo, bem como suas eventuais prisões no Brasil e que estavam certos que jamais recebera a nobre distinção soviética, Dr. Ramon foi, a bem da saúde pública, afastado das atividades clínicas. Desde então, eu nunca mais o vi circular no escritório improvisado da “caixinha” nos confins da Alameda Bernado O’Higgins.

Mas, as patranhas do falso prêmio Lenin não pararam por aí. Certa feita, eu o encontrei Dr. Ramon no centro de Santiago. Ele morava em uma “poblacíon” e era responsável nesse local onde residia pela inscrição de sem-teto no programa de construção de casas populares do Governo da Unidad Popular. Tratava-se de entregar uma modesta casinha de madeira que, sabe-se lá por qual razão, era conhecida como “media-agua”. Ele propôs me inscrever e afirmava que, se tivesse sorte, poderia ser agraciado com uma moradia. Declinei a oferta. Efetivamente, era seu trabalho, como pude me certificar mais tarde; dessa vez não mais como as fantasias anteriores, porém, convenhamos, singular.

Após o golpe, segundo Pio Chaves dos Santos, Dr. Ramón se exilou no Canadá. Casou-se com uma canadense e animava com afinco um comité de solidariedade com os exilados chilenos que chegavam àquele país frio.


Tomás Togni Tarquinio

Formado em Antropologia e Prospectiva Ambiental na França. Desde 1977, trabalhou em diversas instituições francesas e europeias pioneiras sobre: energia, ecologia política, meio ambiente, decrescimento e colapso da sociedade termo-industrial. Foi Secretário do Governo do Amapá, por ocasião da execução do pioneiro Projeto de Desenvolvimento Sustentável do Amapá (PDSA); trabalhou no MMA e Senado.


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