Jean Marc von der Weid ¹
Introdução:
A questão agrária no Brasil parece ter saído das preocupações da sociedade, dos políticos e dos poderes executivos. Os conflitos continuam entre sem-terra e latifundiários ou grileiros em várias regiões, em particular no que se convencionou chamar de nova fronteira agrícola, na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal. Mas a tradicional violência dos ruralistas se faz sentir em todo o país, em qualquer lugar em que se manifestem os despossuídos. As incessantes pesquisas e denúncias da CPT mantém o registro dos assassinatos de lideranças (camponeses, indígenas, quilombolas) além de técnicos ou elementos de apoio aos sem-terra. Também registram as expulsões de assentados e acampados, a destruição de lares e de cultivos, a destruição de infraestruturas sociais como escolas e postos de saúde. Apesar dos números não terem diminuído ao longo do tempo, a repercussão da violência foi ficando diluída no mundo urbano, onde outras formas e objetos de violência ocupam o noticiário.
A propaganda do agronegócio está cada dia mais sofisticada e profissional (“agro é tec, agro é pop, agro é tudo…”) e a imagem idílica projetada para o público urbano parece estar colando. Tudo vai bem no mundo idealizado das supercolheitadeiras operando nos imensos campos de monocultura. Nem a violência social nem a violência ambiental tem lugar neste mundo maravilhoso de faz de conta.
O preocupante, entretanto, é outra coisa: o fato de que as forças políticas de esquerda também parecem ter esquecido da questão agrária. Ou admitido que é uma luta perdida que é melhor não travar. Isto é esquecer o sentido histórico da luta pela terra e o papel fundamental que o campesinato terá em um mundo sustentável no futuro, se é que haverá lugar para o homem neste futuro.
É isto que eu quero discutir nesse breve artigo. O propósito é situar a questão agrária no tempo passado e recente, apontando para os problemas encontrados pelas forças progressistas e populares neste longo processo e, sobretudo, justificar o lugar da questão agrária no futuro.
Um breve toque de história
A “descoberta” do Brasil, na virada do século XV para o XVI foi o ponto de partida para o longo processo de ocupação do imenso território até então habitado por tribos indígenas. Estudos e especulações variam na avaliação de quantos eram os indivíduos dos “povos originários”, algo entre 2 e 10 milhões de pessoas distribuídas em centenas de etnias com vários troncos idiomáticos e dialetos e culturas.
A relação destes povos com a natureza, na sua imensa diversidade, era de exploração dos recursos naturais da flora e da fauna e com uma incipiente agricultura baseada no desmatamento e queima da vegetação nativa, seguido de longos pousios. Este sistema permitia uma recuperação da fertilidade natural dos solos e a recomposição, pelo menos parcial, da vegetação. Estudos dos ossos deixados por estes habitantes originários do Brasil mostram que prevalecia um padrão de saúde invejável pelos colonizadores portugueses e outros europeus.
A operação de conquista dos espanhóis os levou a dominar os povos mais civilizados e ricos das Américas, roubando imenso tesouro para a corte de Madri, saqueado dos Maias, Astecas e Incas. Em seguida esta colonização foi atrás da matéria prima, explorando minas de prata e de ouro.
Os recém-chegados ao Brasil não tinham a intenção de ficar. Estavam a caminho das “Índias” e à procura do comércio de especiarias (pimenta, noz moscada, cravo, canela, entre outras), muito valorizadas nos mercados europeus. Não havia aqui um tesouro a saquear, nem minas de metais ou pedras preciosas, só encontrados dois séculos mais tarde. A posse do novo território, assegurada pelo tratado de Tordesilhas, era uma ficção ignorada por outras potências navais europeias, como a França e a Holanda. Foram comerciantes destes países que iniciaram a exploração do pau-brasil, riqueza que acabou dando nome à terra conquistada. A madeira do pau-brasil era matéria prima para a produção de tinturas, uma indústria em expansão e sucesso na Europa. Ocupados nas Índias os portugueses levaram algumas décadas para entrar neste mercado.
A exploração do pau-brasil não carecia de uma implantação colonial na “nova terra”. Os mercadores negociavam com as tribos do litoral o corte e transporte da madeira para pontos adequados para ser embarcada, fornecendo machados e facões para pagar trabalho. O impacto desta primeira investida do proto-capitalismo europeu no Brasil foi impressionante. Em décadas a Mata Atlântica sofreu mais com esta exploração do que em séculos de coivaras dos indígenas.
Já em meados do primeiro século da ocupação os portugueses descobriram outra utilidade para seus domínios. O plantio de cana de açúcar, reproduzindo no Brasil a experiência adquirida nas ilhas do Atlântico, representa o primeiro passo na história para um empreendimento rural de tipo capitalista. Inicialmente ele foi operado por mão de obra nativa, mas esta só se submeteu a este regime de trabalho sob extrema violência. Foi a fase dos chamados “negros da terra”, escravizados nas plantações de cana e nos engenhos de açúcar. A mão de obra especializada, sobretudo nas operações agroindustriais, era de portugueses livres, mas tudo mais era resultado do trabalho escravo, inclusive a produção de alimentos, a criação de animais de transporte e o corte de madeira para alimentar as fornalhas dos engenhos.
Não demorou muito para que os “negros da terra” fossem substituídos pelos escravizados africanos, que já vinham sendo usados nos engenhos da Ilhas do Atlântico. Os indígenas resistiam resolutamente às operações de captura, fugiam na primeira oportunidade e morriam aos milhares devido à contaminação com vírus de doenças que eram desconhecidas nas américas. Os sobreviventes das epidemias e das guerras com os brancos se embrenhavam nas matas à oeste, iniciando um movimento que se repetiu, com outros atores, ao longo de toda a história da ocupação do território nacional.
O negócio do tráfico de escravizados tornou-se tão importante quanto o próprio negócio do açúcar, enquanto a colonização pouco atraiu portugueses, apesar da enorme disponibilidade de terras. O mecanismo de acesso a estas terras, criado pela coroa portuguesa, não facilitava o acesso para quem não era fidalgo e com recursos para investimentos no que interessava: a produção de açúcar. A produção alimentar, inclusive para os escravizados, era feita nas terras das plantations de cana e pelos próprios negros em horas de folga ou em grupos especializados. O alimento foi, desde os primórdios da ocupação, aquele utilizado pelos indígenas, mais adaptado ao clima e aos solos do que os produtos de uso na Europa. A mandioca e o milho substituíram o trigo e o centeio e, junto com feijões e dezenas de legumes e frutas, constituíram a base alimentar de brancos e negros.
O espaço para uma economia de subsistência ou de produção de alimentos para o mercado interno era mínimo e suprido por brancos livres ocupando terras marginais próximas aos centros habitacionais e, no mais das vezes, também explorando trabalho escravo.
Por séculos esta matriz econômico-social prevaleceu nas diferentes regiões do Brasil, até que a crise da economia do açúcar, já no século XVIII, levou à diversificação da produção agrícola, muito embora sem mudar o foco nas exportações. Seguiram-se “ciclos econômicos”, do algodão, do tabaco, do cacau, da borracha, do couro e o mais importante, o do café. No meio destes, houve um “ciclo do ouro”, o único não agroexportador até o século XX. Em todos eles a mão de obra africana escravizada foi essencial. E em todo este tempo o número de brancos e de mulatos ou negros libertos foi inferior ao de negros escravizados, fazendo do Brasil o maior importador de trabalho forçado do mundo.
O território foi sendo ocupado paulatinamente, inicialmente com mais intensidade na região sudeste e, de modo geral, na zona litorânea. A imensidão da floresta amazônica, a aridez da Caatinga, os embates militares com os castelhanos limitaram os avanços no norte, nordeste e sul do Brasil. No Sudeste os rios que corriam na direção oeste leste favoreciam as expedições, inicialmente voltadas para a preação (captura) de indígenas. A busca de ouro e esmeraldas motivou outros movimentos e ocupação do território, sobretudo em Minas Gerais.
A presença de uma agricultura familiar foi se dando de formas variadas. Talvez a primeira em significância tenha sido a dos quilombos. O número e tamanho destas unidades populacionais ainda está sendo desvendado, mas há indicadores de que foram centenas de milhares de pessoas, grande parte fugidos das plantações de cana ou das minas de ouro, além dos nascidos já em liberdade, nos casos de maior durabilidade dos assentamentos. Não há registros claros sobre o modo de produção nos quilombos, mas as tradições dos mais antigos que sobreviveram indicam que havia unidades familiares de produção e roças coletivas de interesse comunitário, em um todo integrado e subordinado aos chefes.
A agricultura em pequena escala foi se estabelecendo nos moldes já apontados acima, nos interstícios do sistema de plantation e subordinada a este, como provedora de alimentos. Junto aos núcleos urbanos a demanda de alimentos de escravos e gentes livres criou um mercado livre, embora muitas vezes os produtores tenham sido mais microempresários capitalistas utilizando trabalho escravo.
Foram as crises dos ciclos agrários que permitiram a decomposição de muitas grandes propriedades e formação de uma agricultura familiar independente, inicialmente de subsistência e depois se integrando aos mercados locais. O movimento migratório de europeus, para além dos portugueses, se acelera ao longo do século XIX, inclusive pelas seguidas restrições à importação de escravizados que foram tornando o custo desta mão de obra muito elevado e favoreceram a substituição pelos imigrantes. No final do século, a aceleração da crise agrária europeia leva milhões para as américas, embora a maioria tenha se dirigido para os Estados Unidos.
No Brasil, esta migração de agricultores familiares europeus se dirigiu para a região sul e sudeste, trazida pelos interesses dos barões do café que buscavam substituir a mão de obra escravizada. Os que vieram espontaneamente buscaram o Sul, pela sua maior similaridade com seus ecossistemas de origem. No Nordeste essa migração não vingou porque a grande seca dos anos cinquenta arruinou a produção familiar de algodão e criou um imenso exército de miseráveis dispostos a trabalhar por qualquer salário, verdadeiros neoescravizados.
O fim da escravidão, no final do século XIX, não significou um aumento da agricultura familiar, como seria de se esperar. Perto de um milhão de pessoas deixaram as fazendas onde trabalhavam buscando outra forma de sobreviver. O Estado branco deu aos escravizados o estatuto de libertos, mas não se preocupou em dar-lhes condições de vida. Com a amplitude das terras disponíveis no país naquele momento não teria tido custos maiores distribuí-las aos libertos, mas isto não aconteceu. O resultado foi, em muitos casos, o retorno dos libertos ao trabalho nas fazendas, agora com assalariamento. No entanto, os patrões passaram a cobrar por tudo necessário para trabalhar e sobreviver (instrumentos, alimentação, moradia…), tudo descontado dos magros salários. Foram poucos os que conseguiram se estabelecer como agricultores de subsistência, em geral os que conseguiram migrar para oeste, para longe das fazendas.
A ocupação do território foi seguindo este traçado histórico. Os marginais do sistema de produção em larga escala para a exportação vão desbravando as terras à oeste, até o dia em que os grandes produtores, na sua sede de terras novas e ainda não desgastadas, chegam para expulsá-los, com ou sem ajuda da lei. Por outro lado, os grandes latifúndios passaram a segurar a sua mão de obra oferecendo pequenas áreas de cultivo familiar, desde que o produto fosse partilhado com o patrão. Surge a categoria, que já foi muito importante, dos meeiros e dos moradores, vivendo sob a asa do latifúndio e sob seu controle, econômico, social e político.
Toda esta história se conta em número de conflitos, de assassinatos, de violências cometidas com um duplo objetivo: controlar o acesso às terras e controlar a força de trabalho. A história dos oprimidos e espoliados não costuma ser registrada na sociedade dominada pelos opressores. São poucos os ecos dos gritos de dor e de terror que atravessam os séculos da nossa formação enquanto país. Milhões de indígenas e milhões de escravizados sofreram horrores e foram assassinados, com pólvora, aço, doenças e castigos. Na sociedade de hoje, dominada pelos descendentes dos opressores do passado, os heróis dos massacres estão homenageados em estátuas e dão nomes a ruas, cidades e municípios. Mas os dados são poucos e pouco conhecidos, pelo menos até os últimos cinquenta anos.
A luta pela terra foi constante e feroz ao longo da história do Brasil, mas ganhou mais relevância política na segunda metade do século passado.
A criação das Ligas Camponesas nos anos cinquenta e sua implantação como movimento de massas radicalizado no nordeste, sudeste e sul e as ações de governos locais em favor da reforma agrária, como os de Brizola e de Arraes no início dos anos 60, colocou o tema na ordem do dia da política, sendo incorporado pelo presidente Goulart no seu programa de reformas de base. Goulart foi o primeiro presidente a tomar uma medida concreta de redistribuição de terras, com a desapropriação das que estavam localizadas ao longo das estradas federais ou açudes públicos. Eram propostas moderadas no seu objetivo e alcance, mas foram tratadas como uma provocação comunista ao direito de propriedade e um dos fatores que precipitaram o golpe contra Goulart em 1964, implantando a ditadura militar.
Apesar do reacionarismo dos golpistas e de suas relações com a oligarquia latifundiária, os governos militares adotaram várias políticas que pretendiam alterar as bases sociais do campo. Segundo o pensamento dos estrategistas inspirados pelo Pentágono, era necessário fazer algumas reformas para evitar uma revolução no campo. O resultado foi o Estatuto da Terra, que dava garantias aos meeiros e moradores, em particular o direito de cultivar dois hectares de terra na propriedade do patrão. A reação do latifúndio foi eliminar esta categoria de camponês, que quase desaparece entre dois censos seguidos.
Uma segunda medida, visando favorecer a redistribuição de terras foi o PROTERRA, do início dos anos 70 e que taxava terras não produtivas do latifúndio. Depois de alguns arreganhos ameaçadores no Congresso, pouco habituado a críticas aos governos militares, a oligarquia aderiu ao programa, vendendo terras degradadas a preços valorizados para o governo fazer assentamentos. Finalmente, já nos anos 80, o governo Figueiredo reformou o imposto territorial rural, aumentando muito as taxas para latifúndios improdutivos e quase eliminando-os para as empresas rurais. Foi a última medida de pressão para induzir a modernização dos latifúndios, estimulada por créditos negativos para o uso de insumos químicos e compra de tratores, apoiada na recém-criada empresa de pesquisa agropecuária, EMBRAPA e na empresa nacional de assistência técnica e extensão rural, a EMBRATER. Tudo isto foi o pontapé inicial na criação daquilo que, nos anos 80, era chamado de agrobusiness e que mais recentemente foi traduzido para agronegócio.
A classe dominante no Brasil, que sempre misturou os interesses dos setores agrários com os industriais e, mais recentemente, os financeiros, conseguiu fazer uma reforma agrária no topo da escada social, capitalizando e modernizando o andar de cima, enquanto o campesinato seguia arrochado pela repressão da ditadura, sem vislumbre de chegar ao direito a um pedaço de chão.
Apesar da repressão, o campesinato se moveu no período ditatorial, mas com muitos limites. O efeito dos anos JK (“cinquenta anos em cinco”) e do chamado “milagre econômico” do regime militar foi uma maciça migração rural urbana, que levou quase 30 milhões do campo às cidades entre os anos 50 e 80.
Esta migração aliviou muito a pressão pelo acesso à terra no campo. Mesmo assim, assistiu-se (apesar da censura) a um gigantesco movimento de massas de camponeses afetados pela seca de 70/72 e que provocou a tomada de cidades de médio porte como Mossoró, interrupções de estradas de rodagem e de ferro, assaltos a armazéns. Pela primeira vez os militares e as polícias estaduais não ousaram tentar controlar os grandes bandos de camponeses que se formaram, lutando pela vida, por comida e água. Criou-se um programa de assistência aos “flagelados”, dando emprego em frentes de trabalho enquadradas pelos militares e que se dedicaram a consertar estradas e açudes. Milhões foram atendidos, tendo garantias de alimentação e alojamento.
Com o fim do regime militar, a Confederação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura, CONTAG, assumiu a liderança de um movimento reivindicativo através dos sindicatos de trabalhadores rurais, apesar da herança de peleguismo deixada pelos anos de controle militar. A CONTAG organizou, em fins de 1985 um grande congresso de camponeses, em Brasília e afirmou com ênfase a proposta da reforma agrária. O governo Sarney convivia ainda com o ministério escolhido pelo quase presidente Tancredo Neves e o ministro da Agricultura, Pedro Simon, apoiou política e materialmente o congresso.
Mas o primeiro programa de reforma agrária pós regime militar, dirigido pelo progressista José Gomes da Silva, foi sendo limado pouco a pouco e, com a reforma ministerial que alinhou o governo ao seu presidente, a proposta foi engavetada. Apesar disso, Sarney chegou a distribuir terras para 90 mil famílias nos seus cinco anos de governo, mais que os 25 anos anteriores.
As condições em que se faz a reforma agrária no Brasil.
O elemento central da análise é a constatação de que a correlação de forças entre os donos da terra e os que aspiram por ela sempre foi negativa para estes últimos. Os grandes proprietários de terra no Brasil foram por muitos séculos o eixo central das classes dominantes, controlando, junto com a propriedade de escravizados, os principais meios de produção e os poderes político, administrativo e judiciário. Mesmo quando o desenvolvimento econômico trouxe outros atores para compor a elite econômica, os latifundiários formaram relações com os setores industrial, comercial e financeiro e nunca perderam o protagonismo. Isto nunca foi tão visível como no momento presente, quando o Congresso tem uma forte maioria de parlamentares relacionados como “bancada ruralista”, de longe a mais importante na Câmara e no Senado.
Os anos pós ditadura militar permitiram que a luta dos sem-terra polarizasse a política e surgisse como uma aparente ameaça ao monopólio da terra. Mas foi uma ilusão. Arrancou-se uma legislação que indicava uma mudança radical nesta correlação de forças, quando a Constituinte definiu o conceito de “uso social” da terra e a possiblidade de desapropriações com pagamentos em títulos da dívida pública. Mas tudo ficou dependendo de regulamentação e, na prática, nada mudou.
A aplicação da lei e a operação dos sucessivos programas de reforma agrária, desde Sarney até Lula III (40 anos de tentativas de descentralizar a posse da terra), mostraram que tudo se fez com entraves que, em grande parte, inviabilizaram o processo. Pode-se dizer que a reforma agrária no Brasil foi executada onde a linha de resistência do latifúndio foi mais fraca.
Para começar, nunca foi admitido qualquer limite para o tamanho da propriedade rural. O resultado foi o contínuo crescimento da área média e uma concentração de terras sem parelho em qualquer lugar do mundo. Com todos estes anos de distribuição de terras, o resultado, tal como registrado no censo agropecuário de 2017, é o número das propriedades com área superior a mil hectares somarem apenas 51.203 (1% do total de proprietários rurais) e ocuparem 167 milhões de hectares (48% do total). Mesmo entre estes superproprietários, a concentração também é grande. Os donos de mais de dez mil hectares são apenas 2.450 (0,05% deste grupo) e ocupam 51,6 milhões de hectares (31% da área do grupo).
Os números dos sucessivos censos mostram que este processo de concentração de terras nunca deixou de ocorrer, variando apenas na intensidade.
Outro indicativo do poderio do latifúndio no seu embate com os reformistas agrários é o fato de que a maior parte das terras distribuídas pelos sucessivos governos não foi objeto de desapropriação, mas de partilha de áreas públicas pertencentes à União. Outra parcela importante de terras “distribuídas” sequer poderia ser considerada como “reforma agrária”, por se tratar de casos de regularização de propriedades que já estavam na posse de agricultores familiares há tempos.
Os casos de desapropriação foram quase todos o resultado de invasões organizadas pelos movimentos sociais do campo. Elas foram selecionadas criteriosamente por não se tratar de “áreas produtivas”. Na maior parte dos casos as ocupações se deram em latifúndios com amplas áreas sem uso agrícola ou pecuário, em geral degradadas por mal manejo. Existem cerca de 80 a 100 milhões de hectares nestas condições, mas isto nunca levou o INCRA a desapropriá-los massivamente. Discussões sem fim sobre a definição de uso econômico do solo não levaram a qualquer ajuste dos indicadores definidos em 1988, totalmente superados pela evolução da tecnologia. Na verdade, o agronegócio não tem interesse nestas áreas e poderia até admitir a sua desapropriação, desde que fosse remunerado. Mas o embate político e ideológico sobre o direito sacrossanto à propriedade da terra empurra o conjunto dos proprietários rurais para a resposta negativa e agressiva às pretensões reformistas.
Os percalços da reforma agrária.
Enquanto o processo de concentração de terras prossegue implacável ao longo da história do Brasil, vamos assistindo a sua contrapartida, a desaparição paulatina do campesinato.
Os números dos censos são pouco confiáveis e os do INCRA pararam de ser divulgados desde 2015. Entretanto, é possível fazer algumas constatações. A mais importante e que merece discussão profunda, é o fato de que entre 2006 e 2017 desapareceram 468.859 unidades produtivas da agricultura familiar. No mesmo período, foram assentadas aproximadamente 500 mil famílias. No balanço entre famílias que se vão e famílias que chegam, concluímos que cerca de 970 mil famílias deixaram o campo.
Não há como saber quem são estes migrantes. Quantos são assentados da reforma agrária? Quantos são minifundistas? Quantos são originários de biomas vulneráveis como a semiárida Caatinga? Há apenas indicações com graus variados de consistência.
Estudos com base em dados do INCRA até 2015 indicam que dos 1.178.891 lotes distribuídos, 207.103 (17,6%) estavam vagos. Quase metade destes abandonos se deram em áreas classificadas pelo INCRA como “em consolidação” ou “consolidadas”. Quase um quarto estavam em áreas “em instalação” ou “em estruturação”, o que é mais compreensível, sobretudo quando se sabe que estes processos de instalação e estruturação estavam sujeitos a longos atrasos e percalços que desanimavam os assentados. Mas porque do abandono em áreas consolidadas?
Há outros indicadores de problemas nas áreas de assentamento, com quase metade dos lotes distribuídos até 2016 em situação irregular. É considerado em situação irregular um lote ocupado por outra família que não a documentada pelo INCRA. Este lote pode ter sido vendido, arrendado ou cedido a outra família, mas tudo isso é irregular. Também é considerado irregular o lote “ocupado” por uma família não residente no mesmo município. Ainda estou para entender este último caso.
Os percalços dos assentados e o aparentemente alto número de fracassos e abandonos tem uma explicação que se relaciona com o fator indicado acima neste artigo: a reforma agrária se faz nas áreas de menor resistência do latifúndio. Isto quer dizer que são terras localizadas em biomas mais frágeis ou em regiões distantes e com solos mais degradados. Na maior parte dos casos os assentados foram deslocados para onde foi possível encontrar terras disponíveis. Isto representou graves problemas de adaptação dos conhecimentos agrícolas dos assentados para agroecossistemas mais ou menos distintos dos que conheciam. Foi o caso da maior parte dos assentados na região norte, vindos do Nordeste ou mesmo do Sudeste e Centro Oeste.
Por outro lado, os sucessivos governos que executaram programas de reforma agrária gastaram o mínimo possível de seus orçamentos e isto significou, frequentemente, colocar mais famílias do que o indicado tecnicamente. Os já mencionados atrasos na estruturação dos assentamentos levaram muitas famílias a sobreviverem explorando madeira e carvão das áreas recebidas, deixando os lotes no bagaço. E, para completar, os planos de produção orientados pelo INCRA e financiados pelo PRONAF, foram voltados para um modelo convencional, caro e arriscado e que gerou não poucos casos de inadimplência.
Um importante efeito negativo estratégico tem que ser apontado neste quadro de evolução da agricultura familiar e de fracasso da reforma agrária. Trata-se da erosão dos conhecimentos tradicionais das famílias camponesas. Isto vem se dando quer pelos deslocamentos regionais entres os assentados, quer pela evasão de agricultores, quer pela adoção de sistemas produtivos convencionais no lugar dos tradicionais, o que ocorre sobretudo nas regiões Sul e Sudeste. Para terminar, uma grande parte do campesinato brasileiro é hoje composto por minifundistas com menos de 2 hectares de terra para cultivar, o que leva a rápido desgaste dos solos e sistemas produtivos muito vulneráveis, incapazes, no seu desenho atual, de prover o sustento de uma família.
O futuro dependerá do campesinato.
Independentemente dos avanços, resistências ou derrotas do campesinato no seu enfrentamento histórico com o capitalismo agrário, a agricultura do futuro verá a afirmação desta classe como a única capaz de produzir alimentos de forma sustentável, com base na agroecologia.
Não vou repetir aqui os argumentos que já apresentei em outros artigos, aliás muito melhor apresentados por outros autores e por instituições consideradas confiáveis, como a FAO, entre muitas outras. O modelo produtivo do agronegócio está fadado a desaparecer, sob o impacto de várias crises simultâneas, a energética, a do esgotamento dos recursos naturais não renováveis (como o fósforo e o potássio), a da degradação dos recursos naturais renováveis (como o solo, água e biodiversidade), a da poluição química de águas e solos, a do aquecimento global, a das pandemias provocadas pelo desmatamento, entre outras.
O modelo produtivo baseado na agroecologia já está provado como a única versão sustentável para alimentar 8 a 10 bilhões de terráqueos. E a prática também já mostrou que o campesinato é a única classe capaz de aplicar os princípios da agroecologia de maneira aprofundada.
As próprias características da agroecologia, com desenhos produtivos complexos e diversificados, impedem a sua aplicação em larga escala em sistemas de monoculturas motomecanizadas. Esta complexidade aponta para propriedades de pequeno porte trabalhadas com mão de obra familiar altamente capacitada e motivada e que terá que ser bem recompensada por oferecer produtos essenciais de alta qualidade assim como serviços ambientais essenciais para o equilíbrio dos ecossistemas.
A diversidade dos desenhos agroecológicos favorece a propriedade individual, mas a própria construção do conhecimento agroecológico favorece um esforço coletivo, bem como todos os processos “pós porteira”, no beneficiamento e na comercialização. Esforços de recuperação dos ecossistemas onde a agricultura ecológica se insere, e que ultrapassam os limites de cada propriedade, também induzem a um planejamento e operação coletivos.
As limitações energéticas de um mundo pós combustíveis fósseis levarão a uma intensa desglobalização. Os circuitos de transporte deverão ser encurtados ao máximo, levando à necessidade de uma produção de alimentos diversificada e ajustada às condições de cada local. Isto implicará no fim das dietas homogêneas que hoje definem o consumo globalmente. O que a população vai comer no futuro será definido localmente e de acordo com as variações climáticas locais e temporais.
Todas estas condições levarão ao fortalecimento do campesinato, tanto em número como em valor social. Os espaços rurais verão um repovoamento intenso, induzindo a relocalização de infraestruturas sociais e culturais, além de empreendimentos econômicos e serviços descentralizados, adequados às escalas locais.
Como podem notar, este novo modelo produtivo não pode estar centrado na busca do lucro máximo, característica do capitalismo. Por outro lado, não se pode buscar nos modelos socialistas conhecidos um exemplo a ser seguido. O mercado continuará um fator de organização da produção e do consumo, mas não será o típico modelo vigente onde a competição marca o sucesso e o fracasso. Estamos na fase de buscar formas de economia solidária sem planejamento estatal e normas impositivas. É um mundo novo em construção.
Para este futuro acontecer, o papel das classes produtoras e o peso relativo de cada uma vai ser modificado. A descentralização da população e o esvaziamento relativo dos centros urbanos deverão acontecer. O repovoamento das áreas rurais vai ser estimulado pela pressão do aumento do nível dos oceanos, que afetará, ainda neste século as áreas urbanas costeiras, deslocando milhões de pessoas. O mundo, tal como o conhecemos, está em vias de ser profundamente modificado, sob pressão dos impactos das várias crises já mencionadas, provocadas pelo desenvolvimento do capitalismo na sua forma mais globalizada.
Recompor um campesinato como classe mais numerosa e decisiva para a novas sociedades sustentáveis poderá se dar de forma mais brutal, pela ampliação dos impactos do capitalismo em extinção ou pela adoção de políticas públicas que preparem a transição. A existência de uma classe camponesa numerosa, adotando as práticas da agroecologia, vai ser um fator essencial para que esta transição possa ocorrer com um mínimo de traumas. Trazer de volta ao campo e à produção agrícola milhões de pessoas será mais fácil se o campesinato residual de hoje estiver avançado na adoção do modelo agroecológico para servir de exemplo a ser seguido pelos neocamponeses. Para isto, o embate com o agronegócio e a resistência do campesinato existente vai ser fundamental.
Para terminar, quero apenas indicar que a “solução” indicada pelo capitalismo verde em expansão, que vem adotando sistemas de produção orgânica em grande escala, não pode ser vista como alternativa. A própria escala destes modelos produtivos e seu necessário uso de monoculturas motomecanizadas entra em contradição com os limitantes energéticos e ambientais já apontados e não poderá sobreviver no médio e longo prazo.
A agenda de lutas do presente tem que ser formulada em função deste futuro inelutável. Temos que ampliar a reforma agrária, viabilizar os assentamentos e o campesinato com a expansão do modelo agroecológico e alterar profundamente a orientação do ensino e pesquisa agropecuária. A responsabilidade desta geração de militantes é enorme frente aos desafios do futuro da humanidade.
Jean Marc von der Weid

Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971
Fundador da ONG Agricultura Familiar e agroecologia em 1983
Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016
Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta
- Artigo apresentado no Congresso da CPT, Bahia. agosto 2024


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