Ligia Bacarin
“Tarja Branca”, o documentário dirigido por Cacau Rhoden, propõe uma reflexão profunda sobre o brincar e o impacto desse ato na vida adulta e na sociedade contemporânea. O filme é um convite para revisitarmos o mundo da infância e do lúdico, questionando os caminhos que escolhemos como sociedade e a forma como nos afastamos daquilo que é essencial para nossa humanidade. Ao resgatar o brincar, o documentário revela uma crítica implícita, mas poderosa, ao modo de produção capitalista que rege nossas vidas e distorce nossas relações com o tempo, o trabalho e o prazer.
A sensibilidade de “Tarja Branca” está em sua narrativa poética e na forma como valoriza o imaginário como uma força subversiva. A obra nos lembra que o brincar, longe de ser uma atividade fútil ou desimportante, é um espaço de liberdade criativa, autoconhecimento e conexão com o outro. Ao brincar, exercitamos a imaginação, a empatia e a capacidade de reinventar a realidade. Porém, o que observamos é que, à medida que crescemos, o espaço para o lúdico é sistematicamente reduzido, até ser praticamente suprimido da vida adulta. O sistema que vivemos, centrado na produção incessante e na busca pelo lucro, valoriza o trabalho utilitário em detrimento de qualquer atividade que não gere resultados concretos e imediatos.
A crítica de “Tarja Branca” ao modo de produção capitalista é sutil, mas pungente. O filme nos faz refletir sobre como o ritmo frenético e a mecanização da vida contemporânea sufocam o lúdico e o espontâneo. A lógica capitalista transforma tudo em mercadoria, inclusive o tempo, que se torna um recurso a ser explorado até o último segundo. Nesse contexto, o brincar é visto como uma perda de tempo, uma atividade sem propósito ou produtividade. As pessoas são levadas a acreditar que o valor de suas vidas está atrelado ao desempenho, ao sucesso material e ao cumprimento de metas que, muitas vezes, estão dissociadas de seus desejos mais profundos.
“Tarja Branca” se insurge contra essa lógica ao trazer depoimentos de adultos que descobriram, ou redescobriram, a potência do brincar. São pessoas que, em diferentes contextos, desafiaram as normas impostas e encontraram no lúdico uma forma de resistência e de reconexão consigo mesmas e com os outros. Através dessas histórias, o filme mostra que brincar é um ato de liberdade, uma recusa em se submeter completamente à engrenagem produtivista que nos rouba o tempo, a criatividade e a alegria.
O brincar, então, emerge como um ato revolucionário, uma forma de recuperar o tempo perdido e de reconstruir nossas relações de maneira mais humana. É uma negação do tempo linear e disciplinado imposto pelo capitalismo, e uma celebração do tempo vivido de maneira plena, onde a experiência vale por si só, sem precisar justificar-se através de resultados ou acumulações. “Tarja Branca” nos convida a repensar a infância não apenas como um período da vida, mas como uma condição permanente, um estado de ser que pode e deve ser cultivado ao longo de toda a existência.
Ao abraçar essa perspectiva, o filme desafia o espectador a questionar suas próprias escolhas e a forma como organiza sua vida. O brincar, longe de ser um privilégio infantil, é um direito humano fundamental, uma ferramenta para nos libertarmos das amarras que nos impõem e para buscarmos uma vida mais significativa e plena. No fundo, “Tarja Branca” nos provoca a considerar: será que não estamos todos precisando de uma dose urgente desse medicamento contra a seriedade excessiva e a mecanização da vida?
Assim, “Tarja Branca” se torna não apenas um documentário sobre a infância, mas uma crítica ao mundo adulto, um chamado ao despertar. Ele nos lembra que, em um mundo que valoriza tanto o ter, talvez o que realmente importe seja o ser. E ser, como o filme sugere, é ser lúdico, é brincar, é imaginar novas possibilidades de existência. Num tempo de tantos desamores e desumanidades, o resgate do brincar pode ser a nossa salvação – uma dose de tarja branca, afinal, é o que todos precisamos.
Ligia Maria Bueno Pereira Bacarin é professora de História na rede pública de ensino. Com mestrado em Fundamentos da educação e pós graduação em Educação Especial. Militante do Psol-PR e colaboradora nas mídias sociais da Geração 68.



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