Tomás Togni Tarquínio

Atravessei o Chile de ponta a ponta carregando a máquina fotográfica. Escutei o silencio do deserto de Atacama e o ruido das lufadas de vento úmido da região Austral. No Valle Central, coloquei-os pés nas águas frias do Llanquihue, escalei sem sucesso alguns metros do vulcão Osorno, vencido pela falta de fôlego. Em Puerto Mont, provei estranhos frutos do mar que só existem no Pacífico, enquanto vislumbrava suas águas azuis acomodado numa mesa do mercado de Angelmó.

Contratado pela Corporación del Cobre para fotografar as minas, imagens que fizeram parte de uma exposição itinerante sobre a relevância da estatização do setor mineiro. O governo de esquerda da “Unidad Popular” não apenas se apropriou do segmento econômico mais importante do país, como não pagou um centavo aos proprietários norte-americanos. Eles haviam sido fartamente remunerados durante décadas de exploração do minério e dos mineiros, lucros excessivos se comparados ao retorno irrisório em benefício da população. O cobre passou a fazer a felicidade da balança comercial chilena.

O cobre foi o primeiro metal que os humanos usaram como instrumento. Ao refiná-lo, há seis mil anos, eles seguramente não se deram conta que inventavam a metalurgia. A Idade do Cobre colocou um termo ao neolítico extraindo a humanidade da Idade da Pedra. Mil anos mais tarde, o mesmo homenzinho Sapiens deu outro passo admirável: fundiu o cobre juntamente com estanho, forjando o bronze, liga mais resistente. Dois milênios mais tarde, não satisfeito com a proeza anterior, o mesmo Homo Faber extraiu ferro da ganga bruta, graças a um forno que alcançou mais de mil graus, temperatura necessária para liquidificar o metal. Abriu as portas para a Idade do Ferro. Seus descendentes foram mais além, construíram uma sociedade ávida por metais.

Ninguém sai indiferente da mina de “Chuquicamata”, cratera a céu aberto, cinco quilômetros de diâmetro e mil metros de profundidade cavados na aridez do Atacama. Observar o buraco aberto em forma de degraus, sobre os quais gigantescos caminhões basculantes com pneus de cinco metros de altura sobem carregados, me fez lembrar os anfiteatros onde os gregos apresentavam suas tragédias clássicas.

“El Teniente”, mina cerca de Santiago, não causa o mesmo impacto de Chuquicamata. Sua grandeza é discreta, porém estatística: mais de três mil quilômetros de galerias subterrâneas abertas nas entranhas dos Andes, um queijo “gruyère” feito de rochas.

Mas, a viagem mais insólita foi a Cutter Cove, pequena mina escondida nos confins da Patagônia. Descobri-la me fez sentir na pele dos naturalistas do Século XIX, ávidos por terras incógnitas.

O Douglas DC-6 da Força Aérea Chilena partiu lotado de Pudahuel. O quadrimotor a hélice sobrevoou os Andes até Punta Arenas. Passou por Bariloche, atravessou um lago de montanha que refletia três cores distintas. A medida que se aproximava da Terra do Fogo, a Cordilheira nevada reduzia sua altura. As montanhas passaram a ter seus pés cercados pelas águas do Pacífico, formando milhares de canais e fiordes.
O engenho pousou às margens do Estreito de Magalhães. Ao deixar o avião, eu senti imediatamente o ímpeto do vento que açoita noite e dia a região austral. Aragem violenta que me fez companhia durante toda a estadia. No extremo da América do Sul, a refrega sopra sempre na mesma direção, não desvia à direita ou à esquerda, nem percorre em sentido contrário. Submetidas à sua persistente trajetória dominadora, as árvores crescem em diagonal em relação ao solo. Troncos, galhos, folhas, ramagens estiram-se no espaço a semelhança de cabeleiras femininas irrequietas. O ruido avassalador resta presente nos ouvidos dos habitantes dias após deixarem a região.

Não conheci o Cabo de Hornos, ponto mais meridional das Américas, inalcançável. O promontório mítico não está imune às rajadas de vento que vêm de Oeste a Leste. Levantam imensas vagas que levaram a pique milhares de embarcações que pretendiam atravessar o Estreito de Drake que separa a América do Sul da Antártida, o Pacífico do Atlântico. Desafiar o Cabo de Hornos é sonho de navegantes competentes e destemidos. Não é tarefa para amadores. Transpô-lo tem o mesmo sabor para o muçulmano que peregrina à Meca ou para o futebolista que joga no Maracanã.

Em Punta Arenas, um cargueiro me levou até a mina. Navegou pelo Estreito de Magalhães, contornou a Península de Brunswick; horas mais tarde, entrou no Canal Gerônimo, fiorde que desagua em Seno Otway, sorte de baia fechada semelhante a um lago; quilômetros mais adiante, o batelão aportou no cais de Cutter Cove.

Um dia foi suficiente para visitar as galerias e admirar as montanhas nevadas. Meio século mais tarde, naveguei virtualmente pelo Google Maps até encontrar a exploração mineira, hoje abandonada.

Enquanto me preparava para retornar a Punta Arenas, uma piroga com um casal a bordo aportou no cais improvisado. Alguém anunciou.
“O Panchote está de volta. Faz tempo que não aparecem”.

Saudando os presentes com leves movimentos de cabeça, um casal de índios Alacalufes deixou a canoa. Impossível de lhes atribuir uma idade qualquer. Não eram jovens, cabelos negros e lisos, pele escura de quem vive ao relento. Trajes sovados de inverno, seguramente recuperados de brancos, os abrigavam do clima inclemente. Eram nômades do mar, residiam na própria piroga. Eles se deslocavam pelos labirintos de canais e fiordes, águas frias que envolvem um emaranhado de ilhas, ilhotas, micro arquipélagos acidentados e de difícil acesso. Vinham a Cutter Cove extrair parca renda monetária da venda de peixes, frutos do mar e pele de animais. A piroga, peça única talhada em madeira, tinha seis metros de comprimento, se tanto. Uma cobertura confeccionada com peles de animais os resguardava do sol e da chuva. Entre duas tábuas transversais que serviam de assento, fumegava um braseiro no qual coziam alimentos e se aqueciam. Para minha surpresa, uma matilha vivia dentro da canoa, uma dezena de cães compartilhavam a vida do casal. Ajudavam na caça e aqueciam a piroga. O elevado número de bocas a nutrir indicava a exuberância desse ecossistema austral, capaz de fornecer alimentos em quantidades suficientes para saciar o apetite de todos passageiros.
Eu não me dei conta que estava diante dos últimos nômades que navegavam aquelas paragens. Anos depois, os Alacalufes se sedentarizaram, muito poucos ainda restam em Puerto Eden.
A existência de Panchote e esposa não deve ter sido diferente de seus ancestrais que, durante milênios, viveram ao longo da costa Chilena. Forjaram uma maneira de viver em uma natureza indócil, como outros povos em regiões igualmente hostis. Com a força dos braços, remavam por todo um território que se estende do arquipélago das Guaitecas, cerca da ilha de Chiloé, até o Estreito de Magalhães, mil quilômetros ou mais. Durante os períodos rudes de inverno, eles se recolhiam à terra, erguiam cabanas simples. Até então, eu julgava que os nômades se deslocavam apenas em terra firme, nunca sobre águas.

A Patagônia talvez tenha sido o último reduto das Américas a ser ocupado pelos humanos, há oito mil anos. A Terra do Fogo abrigava quatro etnias. Os Ona (Selk’nams) e os Haush (Manekenks), caçadores e coletores que extraíam seu sustento da terra firme, hoje extintos. Enquanto que os Yaganes (Yámanes), igualmente extintos, e os Alacalufes (Kaweskar) sobreviviam das águas. Fernão de Magalhães, primeiro europeu a atravessar o estreito que leva o seu nome, em 1520, ao divisar fogueiras enormes que os índios acendiam para se proteger do frio a nomeou Terra do Fogo.

A etnia mais numerosa, os Ona, e as demais, foram exterminados pelos colonizadores europeus no começo do XX. Sobrenomes monoteístas, Menendez, Popper, Braun, Mac Lennan, Stubenrauch, Mac Clelland, Diaz, Lista, Behetty restarão associados ao etnocídio perpetrado contra um povo indefeso. Limpeza étnica “avant la lettre”. Nem todos exterminadores eram broncos e iletrados: um engenheiro formado pela École de Mines de Paris entregou a Gelman, presidente argentino, um álbum de fotos das caçadas humanas que promovia. Grileiros europeus, pelas mãos de jagunços, assassinaram as populações originárias. Pagavam uma libra esterlina por cabeça, par de orelhas, ou mãos decepadas entregues aos canalhas. Preço irrisório pago para se apropriarem de milhões de hectares destinados a introdução da pecuária ovina em grande escala.

Ao erradicar fisicamente os ameríndios da Terra do Fogo, os conquistadores eliminaram sonhos, línguas, ritos, crenças, enfim, seus modos singulares de se inserir no universo. Mas, não exterminaram apenas as etnias. Eliminaram animais locais que competiam pelos mesmos alimentos que os carneiros, fato que reduziu a dieta dos ameríndios, particularmente do “guanaco”, camelídeo parente das lhamas.

Em pleno Século XXI, a bárbara conquista ainda segue seu curso sob outras formas e não apenas no Brasil.

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