Quando conversar se torna guerra: uma análise

Paulo Baía

Há tempos em que as palavras eram água — escorriam entre dedos, lavavam mágoas, corriam soltas como rios sem margens. Agora são pedras. Se atiram, se empilham, constroem muros. Conversar tornou-se um ato de guerra, um duelo onde não se busca entendimento, mas território. Cada frase é um campo minado. E o silêncio, que já foi refúgio, tornou-se trincheira. O país não se fala: se vigia.

Nos rostos mais queridos nasceu a sombra da suspeita. Entre mãos que antes se apertavam com ternura, cresce um espinho invisível, uma intolerância que nem o tempo consegue arrancar. O afeto apodreceu no vinagre das convicções. Quem ama o “outro lado” é traidor. Quem hesita é fraco. Quem ouve é tolo. E mesmo o amor, esse bicho selvagem que não se deixa domar por ideologias, foi enjaulado e acusado de cumplicidade.

Na casa, onde morava o pão quente e o riso solto, agora há pratos frios e palavras cortantes. Cada refeição é um ritual de extermínio simbólico. Mastiga-se raiva, engole-se mágoa, brinda-se com desprezo. O afeto virou pólvora e a memória, um campo de batalhas passadas. O passado é manipulado, o presente é dividido, e o futuro… ninguém ousa mais sonhá-lo junto. O nós se partiu. Restaram apenas eus armados até os dentes de certezas.

Morreu o tempo da dúvida. Foi sepultado sem velas, sem luto. Em seu lugar, ergueu-se o altar da resposta pronta, onde se cultuam os dogmas e se apedreja o pensamento. Pensar, aliás, é perigoso: desagrada, desloca, desinstala. Não há espaço para nuance quando se exige fidelidade. Não há respiração onde tudo é trinco. E o ar do país rareia, como se pensar junto fosse traição e calar fosse prudência.

As janelas foram fechadas. As palavras viraram ecos de si mesmas. Cada um grita dentro da própria caverna, certo de que o som que ouve é verdade universal. A política, essa dança áspera de vontades, tornou-se um teatro de sombras — encenação sem plateia, só atores em guerra. E os sonhos? Foram exilados para dentro dos olhos de quem ainda insiste em olhar devagar.

Mas talvez, quem sabe, reste uma fagulha escondida no canto de um verso. Um gesto sem rótulo. Uma palavra que escapa sem farda. Talvez um dia alguém se canse do grito e desça do palanque íntimo onde se esconde. Talvez se queira de novo o risco do encontro, a coragem do afeto, a leveza do dissenso. Talvez se reabilite o verbo “escutar” como quem cultiva terra fértil. E, então, quem sabe, o país volte a ser uma conversa — não perfeita, mas possível. Não pura, mas viva. E, sobretudo, humana.


Paulo Baía

Militante social, sociólogo, cientista político e professor da UFRJ.




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