Gláucio Tavares*
Em 11/09/1973, o regime democrático do Chile foi golpeado, dando início a um período de ditadura militar, comandado pelo general Augusto Pinochet, que durou até 11/03/1990.
O referido regime ditatorial mantinha um recinto na localidade de Macul, na capital chilena, Santiago, denominado Venda Sexy, La Discotèque ou Iran 3037.
O local era utilizado especialmente para torturas, baseadas em violência sexual. O apelido La Discotèque vinha do uso de música em alto volume, para esconder o ruído e os gritos nas torturas, de mulheres, majoritariamente, e homens, estuprados no local. Um cão pastor alemão, chamado Volodia, foi treinado para estuprar os reclusos. As mulheres foram particularmente alvo de abuso sexual, estupro, gravidez forçada e aborto. Tanto os prisioneiros homens, como também as mulheres, foram submetidos a espancamentos, choques elétricos, roleta russa, asfixia e privação de sono, entre outros métodos de tortura (CHORNIK, 2019).
Relata-se a venda de filhos das mulheres estupradas que engravidavam após inúmeros abusos sexuais (NEVES, 2023).
La Discotèque é uma das facetas das graves violações dos direitos humanos que sempre acontecem em regimes ditatoriais, que também ocorreram na última ditadura militar brasileira, de 1964 a 1985, especialmente após a edição do Ato Institucional n° 5, em dezembro de 1968.
Os regimes ditatoriais são invariavelmente marcados por violências físicas e psicológicas, repressão, torturas, desaparecimentos forçados, restrição de direitos e silenciamento da oposição política.
Objetivando coibir uma nova tentativa de instauração de um estado de violência no Brasil, o Código Penal brasileito foi alterado pela Lei nº 14.197/2021, sancionada pelo então presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, que também foi subscrito pelos seus auxiliares Anderson Gustavo Torres, Walter Souza Braga Netto, Damares Regina Alves e Augusto Heleno Ribeiro Pereira, com a inclusão do Título XII – Dos Crimes contra a Estado Democrático de Direito, cujo Capítulo II arrola os possíveis crimes contra as instituições democráticas, a saber: os delitos de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e Golpe de Estado, respectivamente transcritos:
Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: (Incluído pela Lei nº 14.197, de 2021) (Vigência)
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência. (Incluído pela Lei nº 14.197, de 2021)
Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: (Incluído pela Lei nº 14.197, de 2021) (Vigência)
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência. (Incluído pela Lei nº 14.197, de 2021)
Neste ensejo, em que pese a visão ingênua de boa parte das pessoas comuns, de que pintar uma estátua do STF com batom – como no caso de uma mulher que foi condenada por ter danificado uma estátua do STF – não pareça uma conduta danosa, a merecer uma pena elevada, tal análise busca esconder que, aquele gesto, aparentemente inofensivo, fazia parte de uma gravíssima tentativa de instauração de uma nova ditadura no país.
Um mesmo ato pode representar condutas diversas no âmbito do Direito Penal, a depender do objetivo, do contexto.
Ora, o mero de ato de encontrar-se sentado em um veículo, aguardando o desfecho de um roubo, para servir como meio de fuga dos assaltantes, torna o motorista igualmente partícipe do assalto, mesmo que este não esteja armado, nem tenha atuado diretamente nos atos de execução do roubo.
Aparentemente, encontrar-se sentado numa veículo não apresenta nada de grave. Todavia, não é o ato aparente, mas sim o contexto que delimita a responsabilidade penal.
De sorte que é coerente ponderar que o ato de pintar de batom estátuas do Supremo Tribunal Federal, no contexto de se reclamar da lentidão da reforma agrária, não assume a mesma gravidade penal quando tal prática pretenda a abolição pela violência do Estado Democrático de Direito e um golpe de Estado. O intento de exigir uma reforma agrária não traz consigo a possibilidade da criação de novas La Discotèque, à brasileira.
BIBLIOGRAFIA
CÁDIZ, Pablo (2020). Sentença histórica contra o centro de tortura de mulheres na ditadura de Pinochet. Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2020-11-18/sentenca-historica-contra-o-centro-de-tortura-de-mulheres-na-ditadura-de-pinochet.html. Acesso em: 18/04/2025.
CHORNIK, Kátia (2019). Violência sexual, centro de tortura e luta pela memória histórica no Chile. Disponível em: https://www.opendemocracy.net/pt/venda-sexy-violencia-sexual-memoria-chile/. Acesso em: 18/04/2025.
NEVES, Ian (2023). Por que odiamos? Ep. 4: Augusto Pinochet. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VPFQRdo_s2E. Acesso em: 18/04/2025.
VENDA SEXY (2024). In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2024. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Venda_Sexy&oldid=68718391. Acesso em: 18/04/2025.
Gláucio Tavares

Analista judiciário no TJRN, mestrando em Direito pela Universidad Europea del Atlántico, graduado em Farmácia pela UFRN e ativista político pela democracia.


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