Liberdade, igualdade e fraternidade?

João de Paula

_Paulo Lincoln, estou passando mal.
Ao ouvir esta frase da Ruth, Paulo Lincoln, que dirigia seu Fuscão Vermelho, perguntou se ela queria que ele estacionasse o carro mas, ao invés de responder-lhe, ela deu uma gargalhada, dizendo: “é brincadeira, é porque eu comparei a emoção que estou sentindo agora com uma que a Batana sentiu”. Explicou, então, que a Batana era uma lavadeira de roupa em sua casa, na Pedra Branca, que pegara uma carona para Fortaleza com o médico Chico Barreto, seu irmão. A certa altura daquela viagem, perguntada pelo Chico, porque se calara de repente, a Batana respondeu: “Dr. Francisco, eu vinha muito bem, mas quando o senhor disse que a gente ia entrar no Quixeramobim, me deu uma emoção tão grande que eu passei mal e perdi a fala. Segundo a Ruth, com seu habitual senso de humor, era algo semelhante o que ela estava sentindo ao avistar Paris.

Em paralelo à brincadeira da Ruth, ao entrarmos em Paris, pensando sobre a sociedade com a qual iríamos ter o primeiro contato pessoal, perguntava-me sobre o efeito que teria produzido nela a tríade de valores que celebrizara a revolução ocorrida ali quase dois séculos antes. Como estariam naquele país a liberdade, a igualdade e a fraternidade? E, principalmente, como, estaria andando o trabalho feito ali por alguns brasileiros e franceses interessados na vigência destes valores no Brasil, do qual eu tinha notícias em Colônia por meio de cartas. Neste sentido, reuniões com integrantes de alguns grupos e com pessoas que atuavam nos movimentos de solidariedade aos perseguidos pela ditadura brasileira era um dos objetivos daquela viagem; outro, que ninguém é de ferro, era conhecer as belezas da Cidade Luz.

Mesmo tendo passado poucos dias em Paris naquela primeira vez, houve tempo suficiente para curtirmos seus encantos e para fazermos os contatos políticos que planejáramos. Levados por um cearense que lhe era muito próximo, tivemos uma conversa proveitosa sobre a situação do Brasil com o ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes, o primeiro político brasileiro a ser preso pelos golpistas de 1964.

Ruth e eu nos reunimos com o José Luís Guedes, ex-presidente da UNE e com o hoje renomado historiador Manuel Domingos Neto, que fazia uma pós-graduação em história na Universidade de Paris, ambos membros do Comitê França-Brasil que desenvolvia um amplo trabalho de apoio à luta contra a ditadura brasileira. A convite da estudante cearense Elia Rola, conhecemos na residência universitária Casa do Brasil outros estudantes refugiados que moravam ali.

Paris foi tornando-se um centro cada vez mais relevante das articulações para denúncias dos crimes da ditadura brasileira e de apoio à luta pela democracia no Brasil. Voltei lá várias vezes para participar de reuniões de integração das atividades que ocorriam em vários países europeus e de estabelecimento de conexões com manifestações de resistência política que começavam a ocorrer no Brasil. Nestas reuniões reencontrei-me com o Vitório Sorotiuk, liderança destacada do movimento universitário do Paraná, que tinha sido meu companheiro de prisão em Curitiba e com o Jean Marc, presidente da UNE na gestão em que eu fora diretor. Meu deslocamento era fácil e barato. Bastava pegar um trem às 23 horas da sexta-feira na Estação Central de Colônia e, depois de uma noite bem dormida, desembarcar às 06 da manhã do dia seguinte na Estação do Norte de Paris e fazer o inverso no domingo. Em Paris, um ponto de apoio muito acolhedor era o apartamento da Walkíria e do Aécio. Ela, pernambucana, ele um destes cearenses que os conterrâneos dela costumam pernambucanizar, como fizeram com o Miguel Arraes e o sociólogo Arlindo Soares, só para citar alguns poucos de muitos exemplos. O casal Walquíria- Aécio será protagonista em algumas das próximas historietas.

De volta a Colônia, a viagem transcorreu muito bem até nos aproximarmos da entrada da cidade, quando começou uma chuva com uma forte ventania, que sacudia de um lado para o outro o velho Fuscão Vermelho. Notamos que a autoestrada estava quase deserta, mas só nos demos conta de que algo grave estava acontecendo quando caiu ao nosso lado uma placa destas de beira de estrada, que viera voando lá de trás. O Paulo Lincoln estacionou e ficamos parados dentro do carro até a situação normalizar-se. No dia seguinte, chegado de Copenhague na noite anterior, recebemos a visita do casal Valéria e Madureira, que havíamos conhecido no refúgio chileno de Padre Hurtado. Juntando informações, compreendemos que o acontecido na véspera conosco , também ocorrera com eles e, se tivesse sido filmado, daria uma cena daquelas de filmes de segunda categoria, como a seguinte: certa noite, na autoestrada que margeia Colônia, trafegavam apenas dois carros; um vindo do sudoeste com cinco brasileiros ( a Daniela, com cinco aninhos, estava com a gente) e o outro, procedente do norte, com um casal de goianos, ambos os veículos ocupados por pessoas tranquilas que, sem aparelhos de rádio, não ouviam as repetidas instruções de abandonar aquela via de trânsito devido a uma perigosa tempestade. Ou seja, reinava entre os brazucas aquela serenidade diante de certos perigos, que só a traiçoeira ignorância pode propiciar.

Retomando meu relato sobre Colônia, havia em todos os seus bairros bares (Kneipes) com grande frequência de seus moradores, mas a Cidade Velha, a Cidade Sul e o entorno da Praça Barbarossa, tinham uma concentração especial destes estabelecimentos de grande importância para a vida noturna da cidade. Na Praça Barbarossa, que ficava bem próxima da universidade, existia um bar de um argentino que era ponto de concentração de estudantes latinos. Ali, misturando alemão com seu próprio idioma, costumavam encontrar-se para tomar cerveja e conversar portugueses, espanhóis, franceses, italianos e latino-americanos de quase todos os países. O barman, de nome Carlos, mas chamado de Charles, era um simpático português que durante o dia trabalhava como sonoplasta na rádio Deutsche Welle (conhecida no Brasil como Voz da Alemanha). Convidado por ele, fiz lá um teste de voz e fui aprovado, passando a atuar como freelancer na locução de programas em língua portuguesa. Pouco depois, recebi convite da sua congênere Transtel para atuar na tradução e narração de filmes que eram transmitidos para países lusófonos. Nestas duas empresas, em que havia tempo trabalhavam brasileiros, portugueses e angolanos, foram se agregando alguns refugiados do Brasil. Quando lá cheguei, já estavam a Ruth e o Sérgio Buarque na Deutsche Welle e a Cristina Buarque na Transtel. Este trabalho não atrapalhava em nada minhas atividades de estudante de medicina, pois era feito em horário muito flexível.

Enviados pela Deutshe Welle, a Ruth e o Sérgio foram à Bélgica entrevistar Paulo Freire, que já era famoso na Europa como grande educador e cujo método de alfabetização ela conhecia bem, pois o havia aplicado em várias atividades pedagógicas no Ceará.

E por falar em personalidades brasileiras na Europa, a Deutsche Welle convidou-me como radialista freelancer para entrevistar Dom Adriano Hypólito, , que estava hospedado em um Mosteiro Franciscano, na cidade de Mettingen. O Bispo de Nova Iguaçu-RJ, acabara de chegar do Brasil, após ser libertado de um sequestro feito por um grupo paramilitar de extrema direita que, depois de vários maltratos, o abandonou desnudo e com o corpo pintado de vermelho em um matagal nos arredores da sede de sua diocese. Nesta entrevista, que teve grande repercussão no meio religioso do Brasil, Dom Adriano responsabilizou a ditadura militar por seu sequestro, apontando as ligações de vários grupos paramilitares que atuavam no país com os porões de repressão do regime. O Bispo de Nova Iguaçu demonstrou que o motivo daquela violência era o incômodo do governo ditatorial com o trabalho social que ele realizava em sua diocese e com as críticas que fazia às atividades repressivas que ocorriam no país.
A propósito do Mosteiro de Mettingen, sob a liderança de seu Superior, Frei Osmar Gogolok, além das atividades pastorais e educacionais de cunho local, era feito pelos franciscanos um trabalho de grande amplitude e profundidade na área de estudos e divulgação da realidade brasileira.

Para isso, tinha sido fundado o Institut für Brasilienkunde (Instituto de Brasilologia, como eles chamavam), que publicava matérias de grande relevância sobre a situação social e política do Brasil, sem preocupação com eventuais incômodos que pudessem causar à ditadura brasileira. Conheci em Mettingen duas pessoas muito ligadas ao Ceará: um primo do Renê Barreira, ex-reitor da UFC, o Juarez Barreira, que tinha sido frade, mas continuava ligado ao Mosteiro como professor de um colégio dirigido por aquela ordem e o Hupsy (Hubertus Rescher), que também ensinava ali e que, em uma curta viagem ao Brasil, apaixonou-se por uma cearense de Canindé e voltou já casado para a Alemanha. Os dois professores eram engajados nas atividades de solidariedade aos perseguidos pela ditadura brasileira.

Aquele ano de 1976 foi de grande expansão de ações de solidariedade aos brasileiros e de apoio às lutas pela democracia no Brasil. Entidades leigas, evangélicas e católicas foram criadas com essa finalidade em várias cidades. Estudantes católicos organizaram uma federação com o nome de Aktion Brennpunkt Brasilien (Ação Ponto Focal Brasil), integrando atividades de vários grupos municipais e lançando uma publicação chamada Brasilien Nachrichten (Notícias do Brasil). Os evangélicos também tinham forte atuação solidária. Em Bochum foram acolhidos muitos refugiados brasileiros na Ökumenisches Studienwerk, (Obra de Estudos Ecumênicos) dirigida pelo pastor Heinz Dressel, que lhes proporcionava um curso básico de alemão e hospedagem gratuitos. Foi recebido alí um grupo que escapara do Chile para o México, mas que não pudera ficar naquele país. De mudança para Colônia, tive ainda um rápido contato com algumas pessoas deste grupo. Nele, estavam o Travassos, ex-presidente da UNE com quem eu tinha uma relação próxima e a Dora, de Minas Gerais, estudante de medicina, sobre cuja tragédia falarei em outra historieta.

Na retomada dos seus estudos universitários, a Ruth, teve que fazer desde o início o curso de Psicopedagogia de quatro anos de duração, igualando-se assim o tempo que levaríamos para nos formar. Resolvidos os problemas de estudo, moradia e manutenção (tínhamos bolsas de estudo tipo Fies, somadas ao que nós dois passamos a ganhar na Deutsche Welle e eu na Transtel), nossa vida entrou em “voo de cruzeiro, depois de muito tempo de seguidas turbulências”.

Nesta última sexta-feira, ao tomar conhecimento da triste notícia da morte do Sebastião Salgado, lembrei-me de um fato ocorrido depois da maioria dos acontecimentos que estou narrando nesta historieta. Como o curso dos relatos que venho fazendo está mais ligado a temas do que a uma ordem cronológica rígida, resolvi deixar-me guiar pelo sentimento e falar logo dos telefonemas que ele deu de Paris para Colônia, para conversar com a Ruth e comigo quando nasceu um filho seu com Síndrome de Down. Por meio de um amigo em comum, ele soubera da boa evolução que estava tendo nossa filha Mariana e queria informações sobre ela e a respeito da nossa experiência como pais dela. Trocamos muitas ideias sobre nossas emoções, sobre as peculiaridades do desenvolvimento dos nossos filhos especiais e sobre as novidades em Colônia na estimulação precoce de crianças com esta síndrome. Nestas conversas muito proveitosas para todos nós, Ruth e eu, que já conhecíamos a fama do Sebastião Salgado como grande artista, ficamos sabendo que ele era também um ser humano excepcional.

Sobre minha primeira viagem a Berlim, agora só dá para adiantar a decepção com o que vi e com o que não pude ouvir na parte a que tive acesso da Alemanha Oriental. Em próxima historieta falo sobre isso e sobre aquela cidade que à época ainda era dividida.


João de Paula Monteiro Ferreira Ex-presidente do DCE da UFC, ex-diretor da UNE, médico especialista em psicoterapia e psicologia organizacional, formado pela Medizinische Fakultæt der Universitæt zu Kœln, República Federal da Alemanha



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