João de Paula
_Ela está melhor e dentro de uns 20 dias sairá da clínica.
Foi o que escreveu o Reinaldo Guarani, chamado de Guará pelos amigos, em uma carta datada de 18 de abril de 1976, dando-me notícia do estado de saúde da Dora. O então marido de Maria Auxiliadora Lara Barcelos, nesta correspondência, fala também da expectativa dos dois de concluírem em breve seus cursos superiores, ela, o de medicina, ele o de economia. Eu os havia conhecido em Bochum, eles chegando do México, para onde tinham conseguido escapar após o golpe de Pinochet no Chile, e eu de saída para Colônia para retomar meus estudos de medicina. Após o curso de alemão que fizeram naquela cidade, mudaram-se para Berlim para reiniciarem seus estudos interrompidos no Brasil. Junto com o Guará e a Dora, foram para Berlim outros brasileiros vindos do México, entre eles o Luís Travassos, ex-presidente da UNE, que eu conhecia bem do movimento estudantil, pois ele antecedera e apoiara a diretoria para a qual fui eleito em 1969.
Menos de dois meses depois daquele comunicado cheio de esperanças do Guará, numa estação do Metrô de Berlim, Dora jogou-se à frente de um trem que trafegava em alta velocidade. Com grande repercussão na imprensa alemã, aquele gesto extremo, após várias tentativas infrutíferas de tratamento, pôs fim a um tormento psíquico que despedaçava sua alma desde que fora selvagemente torturada por agentes da ditadura brasileira. Com Dora, ocorreu algo semelhante ao que acontecera em agosto de1974 com o frade dominicano Tito Alencar, vítima de um martírio psicológico permanente causado pelas bestiais sevícias praticadas em São Paulo por uma equipe de agentes da ditadura, comandada pelo delegado Sérgio Fleury. Para livrar-se de sua cruciante agonia, o cearense Frei Tito dependurou-se em uma árvore próxima a um mosteiro de sua ordem religiosa, onde estava abrigado, situado nos arredores da cidade francesa de Lyon.
Estes dois acontecimentos mexeram com muitos de nós brasileiros que sofrêramos diferentes formas de opressão pela ditadura, mas, certamente, ecoaram em grau mais profundo nos que foram torturados e, dentre aqueles, ainda mais profundamente, nos que tinham ficado com sequelas psicológicas. Se já não é fácil avaliar-se a verdadeira dimensão do sofrimento físico que é causado a um ser humano por instrumentos de tortura usados dia e noite por longos períodos, mais difícil ainda é compreender-se a exata medida dos danos psíquicos que eles produzem, notadamente, quando combinados com sofisticadas técnicas psicológicas empregadas para isolar, desorientar, fragmentar e marcar de modo duradouro a estrutura mental do prisioneiro.
Os problemas causados à mente de pessoas submetidas à tortura durante a ditadura militar começaram a despertar minha atenção em 1973, quando ouvi alguns relatos de amigos que estavam refugiados comigo no Chile, destacando procedimentos de cunho psicológico que lhes foram aplicados pelos torturadores. Passei a tentar compreender as consequências desta modalidade de tortura. Eu já havia lido algumas descrições dos métodos de tortura ensinados em treinamentos de atualização (sim, pois já havia em casernas e delegacias um conhecimento acumulado durante a ditadura do Estado Novo) a militares e policiais brasileiros, baseados em experiências francesas (aplicadas na Guerra da Argélia) e estadunidenses (testadas na Guerra do Vietnam), mas fiquei impressionado com a sofisticação dos recursos de guerra psicológica usados no Brasil com prisioneiros políticos e com a amplitude dos incômodos psíquicos que estas pessoas me relataram. Os impactos variavam desde casos leves, como sonhos repetidos com cenas de repressão, até casos mais graves como pesadelos recorrentes, distúrbios do sono, sensação de permanente perseguição, angústia, ansiedade e depressão, para ficar em alguns dos exemplos relatados mais frequentemente. Não tive meios para acompanhar como estas pessoas lidaram com estes problemas depois que nos espalhamos por vários países, devido ao golpe do Pinochet.
Sobre as técnicas utilizadas para produzir desagregação mental, ouvi relatos de manobras para impedir o sono e sobre isolamento por longo tempo em celas especiais, vedadas a estímulos sonoros e luminosos para provocar privação sensorial. Uma pessoa contou-me que, ao recobrar a consciência depois de uma sessão de torturas, deparou-se em sua cela com uma cadeira que fora colocada ali com um paletó dependurado no espaldar…sem uma das mangas. Esta mesma pessoa disse-me que uma noite despertou com a sensação de que seu corpo estava coberto de pelos e que, ao voltar a dormir, teve pesadelos em que se sentia virando um animal. Quando amanheceu, percebeu que estava deitada sobre uma espécie de carpete, cheio de pelos soltos, onde fora colocada ao ser trazida da sala de tortura com o corpo ensanguentado.
Outros exemplos de aplicação de técnicas psicológicas em torturas podem ser vistos no filme Entrelinhas, que começou a ser exibido nesta semana no Prime Vídeo, da Amazon. Este filme é inspirado em um fato ocorrido em 1970 com a estudante secundarista Beatriz Fortes, paranaense, então com 18 anos de idade, irmã da Elisabeth, com quem eu estivera preso em Curitiba, devido à nossa participação no Congresso Regional da UNE. Beatriz foi torturada durante oito dias para decifrar o que os militares achavam que estava escrito nas entrelinhas de uma carta entregue a ela por um companheiro de prisão de sua irmã, em uma visita que lhe fizera no Presídio do Ahú. Beatriz nada revelou aos torturadores sobre o destinatário, nem sobre o autor daquela carta e, depois de convencerem-se de que nada havia em suas entrelinhas, os militares que a prenderam devolveram-na a seus pais, desculpando-se pelo “engano”. A “perigosa” carta não passava de uma simples mensagem sobre ações e posições públicas dos estudantes universitários. Abro aqui um parêntese para esclarecer que tudo isso era desconhecido por mim até a última quarta-feira, dia 04 quando assisti ao filme Entrelinhas e, depois de obter o telefone da Beatriz com uma amiga comum, liguei para ela para solidarizar-me por seu sofrimento e parabenizá-la pelo seu comportamento heróico. Em meio às emoções de uma retomada de contato após uma interrupção de 55 anos, Beatriz contou-me que o destinatário daquela carta era eu! Foi grande a minha surpresa, pois, como no filme uma pessoa diz que ela seria para “o suíço da UNE, fiquei certo de que o destinatário era o Jean Marc, meu colega de diretoria e, então presidente da UNE, que tem nacionalidade suíça, além da brasileira.
O aprofundamento do tema das torturas psicológicas e de suas consequências não cabe no espaço desta historieta, mas, para quem tiver interesse nele, recomendo a leitura do livro Brasil: Nunca Mais, publicado pela Editora Vozes e prefaciado pelo Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, bem como a pesquisa em Auditorias Militares, onde foram registrados os depoimentos de prisioneiros políticos, pois eram nelas que ocorriam seus julgamentos durante a ditadura militar, regime que não teria existido segundo algumas pessoas.
Fico devendo o relato sobre a Semana Brasil em Colônia.
João de Paula Monteiro Ferreira

Ex-presidente do DCE da UFC, ex-diretor da UNE, médico especialista em psicoterapia e psicologia organizacional, formado pela Medizinische Fakultæt der Universitæt zu Kœln, República Federal da Alemanha


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