Uma historieta sobre as historietas

João de Paula

-Achei a escrita meio burocrática. Tens que encontrar teu estilo de escrever.

Foi o comentário particular de um assíduo leitor do que venho postando com o nome de historietas em algumas plataformas digitais, referindo-se à BRASIL EM COLÔNIA publicada na semana passada. Ao ler esta mensagem, veio-me à cabeça a frase “Enfim, um escritor sem estilo”, do Millor Fernandes, mas ela não desviou-me da intenção de aprender algo com a dica daquele meu amigo. Afinal, análises e sugestões sobre estes textos têm ocorrido em grande quantidade e, muitas com excelente qualidade e pertinente utilidade. Havendo refletido muito sobre elas, pensei em tornar públicas algumas constatações e interrogações que me produziram, objetivando manifestar minha gratidão, suscitar debates e provocar algumas reflexões.

O primeiro questionamento que recebi foi sobre o nome historieta, que começou aqui em casa com a Maurícia, abrindo a fila dos que afirmaram que ele desvalorizaria o conteúdo dos escritos. De fato, no sentido mais corrente deste termo, há esta acepção de historieta como relato desimportante. Mas existe outro que é o de uma história curta que, considerando o sufixo “eta”, entendo como uma historinha, que também poderia ser o nome escolhido, já que um dos meus objetivos é justamente o de contar historinhas que algum dia possam ser conhecidas por meus netos, no momento possível a cada um. Ainda do ponto de vista do público a interessar, pensei que, para chegar com menos dificuldades aos jovens atuais, que leem pouco, conteúdos apresentados com um nome despretensioso como historieta pudessem ser considerados menos chatos à primeira vista. Esta escolha tem muito a ver também com a minha mãe, pouco escolarizada e muito inteligente, que tinha na contação de histórias curtas sua ferramenta predileta para transmitir lições de vida aos filhos. Então o nome poderia ser historinha ou historieta e não sei dizer por que preferi a última. Talvez, Freud explique, mas aí já é assunto para meus colegas Barbosa Coutinho e Sérgio Telles e para a Marina, minha filha.

Em sua imensa maioria, os comentários e sugestões que me chegam são instigantes, instrutivos e enriquecedores. Várias pessoas relatam a evocação de lembranças soterradas, associações com fatos que vivenciaram à mesma época, outras relembram-me de coisas que eu esquecera e sugerem temas para novas historietas. Algumas espantam-se com a ocorrência de certos fatos que lhes pareciam inconcebíveis. Com exceção de uma, todas incentivam-me a prosseguir. Vêm várias vezes na ponta da minha língua nomes de pessoas que muito me ajudam com suas análises e interpretações, mas me contenho para não os citar, com medo de ser injusto por omissões.

Uma pergunta muito frequente que me fazem é como consigo lembrar-me de tantas coisas tão distantes no tempo. Na verdade, não lembro de todas. Inicialmente, lembro das mais marcantes, mas não em todos os seus detalhes. Para complementá-las recorro a duas fontes: às pessoas que as viveram comigo e a registros escritos ou fotografados que passei a guardar a partir do exílio no Chile, pois no Brasil, desde o golpe de 1964, no meu caso, isso seria uma temeridade. Alguns exemplos: sobre pessoas com quem venho conversando para relembrar, checar, corrigir e completar lembranças, destaca-se a Ruth Cavalcante que contribuiu com praticamente tudo o que publiquei até agora. Com outras, depende das historietas. Para escrever a FUMAR, NÃO ouvi o Aristeu Holanda e o Fausto Nilo, dois dos meus oitocentos colegas presos no XXX Congresso da UNE; Sobre TEJE PRESO e ESTUDANTES NO AHÚ, conversei muito com o Vitório Sorotiuk, um dos principais líderes do movimento estudantil do seu estado à época da nossa prisão no Congresso Regional do Paraná. Para CONSULADOS CEARENSES EM SAMPA contribuíram muito o Genoíno e o Ronald, dois colegas da diretoria da UNE e o Rodger, que me ajudou a relembrar algumas coisas sobre aquela espécie de consulado do Ceará que funcionava no apartamento dele e da Téti, aonde cheguei por meio do Belchior, que era seu vizinho de andar. A Nazaré Antero, que junto com o marido João nos deu carinhosa acolhida no Rio, ajudou muito na reconstituição de um episódio de MARAVILHOSA, MAS. A partir de CLIMA DEMOCRÁTICO, HORIZONTE CARREGADO entram em cena o Paulo Lincoln e o Pedro Albuquerque, com os quais a Ruth e eu vivemos intensamente todo o período do Chile. A interlocução sobre as historietas interrompeu-se com o Pedro depois que elas passaram a tratar de fatos posteriores à nossa partida do Refúgio de Padre Hurtado, quando tomamos destinos diferentes, mas a com o Paulo Lincoln continuou durante todo o período em que estivemos juntos na Alemanha. Quanto às historietas referentes ao período europeu do exílio, venho tendo também a ajuda dos amigos alemães Bárbara e Fred, da Cristina, Sérgio Buarque, Valquíria, Aécio Matos, Arnou Holanda e, na BRASIL EM COLÕNIA, do Fagner. Na PODE SER FELIZ?, depois de ler a versão preliminar que lhe enviei, a Mariana, minha filha, contribuiu para preencher uma lacuna, quando me lembrou que “eu não mencionara os dois anos em que ela ficara como apátrida”, em consequência de diretriz dos patriotas da ditadura militar. Para escrever ALMAS DESPEDAÇAS fui muito ajudado pela correspondência com o Guarani, marido da Dora e pelas informações do filme Entrelinhas, que relata um terrível episódio da juventude de Ana Beatriz Fortes, que as complementou em uma conversa telefônica que tive com ela.

Cartas tem sido muito valiosas para a recordação de muitos fatos que estavam encobertos em camadas mais profundas da minha memória. Além das que comecei a guardar a partir de Santiago, recebi dos meus familiares um maço com tudo que eu havia escrito desde que começou a perseguição da ditadura contra mim e que tinham sido corajosamente armazenadas por eles em local secreto. Para checagem de datas, tenho recorrido a buscadores na internet.

Um subproduto muito importante da publicação destas historietas tem sido a retomada por meio delas de contatos entre pessoas que tinham perdido suas conexões havia muito tempo, em alguns casos a meio século atrás. A título de exemplo, acabo de receber um telefonema do hoje Monsenhor Assis Rocha, pedindo-me os telefones de dois amigos comuns, citados em uma historieta e que, como tantos outros perseguidos pela ditadura, ele ajudara na comunicação com suas famílias na década de 1970.

Quanto a um outro objetivo destas historietas, que é o de combater o negacionismo sobre a existência da ditadura militar instalada em 1964 no Brasil, quero fazer alguns esclarecimentos. Depois de retornar do exílio por conta da anistia decretada em agosto de 1979, fui muito procurado para fazer palestras, dar entrevistas e para escrever em jornais e revistas sobre as minhas vivências nos anos de regime ditatorial. Outros perseguidos pela ditadura também fizeram isso, tendo havido vários que escreveram livros bem documentados sobre o assunto. Esta triste página da história do Brasil parecia ter sido virada e eu cheguei a pensar que não era mais necessário falar sobre ela, bastando que ela fosse tratada nos livros didáticos. Mas um oficial do exército, que fazia proselitismo salarial nos quartéis, ao ser forçado a sair da corporação, tornou-se político e fez da negação da existência da ditadura uma das principais bandeiras de sua propaganda. Eleito com votos inicialmente do meio militar e policial, ao longo de vários mandatos como parlamentar do chamado baixo clero da Câmara Federal, conseguiu atrair mais pessoas e angariar recursos para criar uma máquina altamente eficiente de divulgação desta e de outras teorias mentirosas, máquina esta que o levou ao que é hoje. Aqui não interessa o personagem, mas sua obra, uma engrenagem de desinformação, cujo conteúdo básico foi fornecido por um ideólogo tupiniquim, que começou sua carreira como astrólogo e se autopromoveu a filósofo. O aparato de fabricação e disseminação de mentiras sofisticadas completou-se com o suporte técnico fornecido por um ex-assessor do atual presidente dos EUA, acusado pela imprensa mundial de ter ajudado a enganar os ingleses com o BREXIT e de ter orquestrado uma campanha de difamação do Papa Francisco. Em resumo, o que começou com a negação da existência da ditadura, ampliou-se para a contestação da pandemia, das vacinas, da crise climática, da preservação do meio ambiente, do valor dos nossos artistas e da credibilidade do sistema eleitoral do país. Ou seja, passou a desconsiderar a história, a ciência e a cultura, substituindo-as por versões fantasiosas sobre o passado, pela exaltação de soluções ilusórias para os problemas do Brasil e pela demolição de importantes pilares do processo civilizatório.

Observando estes riscos no presente, decidi tratar em minhas historietas também de fatos do passado que não podem jamais ser repetidos e tem gente querendo repeti-los.

As poucas pessoas que os algoritmos deixam receber estas historietas, parecem gostar delas, mas muito poucas se dão conta de que para combater o negacionismo não basta ler, curtir e comentá-las: se estiverem convencidas de que os acontecimentos relatados são verdadeiros e se quiserem que eles sejam conhecidos por mais pessoas, poderão fazê-lo compartilhando-os. Mas se, por qualquer razão, a pessoa não quiser fazer o compartilhamento público, é possível fazê-lo de modo particular por meio da tecla ENVIAR, que está ao lado da COMPARTILHAR.

Para que este texto não deixe de ser uma historieta, finalizo aqui, assegurando aos incentivadores da publicação de um livro que ele virá, mas bem mais na frente.

Quanto ao tema da próxima historieta, ele dependerá das reações a esta.

De Maranguape,
João de Paula
P.S: 1) Enviei à Ana Beatriz Fortes uma versão preliminar desta historieta, perguntando-lhe se ela autorizava a publicação da citação que fiz do nome dela. Eis a resposta dela:

“Olá, João. Acabei de ler Uma Historieta Sobre As Historietas e autorizo, sim, a inserção do meu nome. E, na minha opinião, acho bem simpático o termo Historieta, soa lusitano. mas não desvaloriza a escrita; espero que essas pequenas estórias sirvam de guia para que as futuras gerações não embarquem mais em projetos de extrema direita. Obrigada e para mim é uma honra fazer parte delas, ainda que involuntariamente, e sobreviver apesar das lembranças que marcaram, mas não conseguiram apagar o amor pela vida e pelas pessoas do nosso país.”

P.S: 2) A Ruth mandou-me um áudio, com retorno aos meus pedidos de sugestões sobre esta historieta, perguntando-me o que eu achava de colocar seu sobrenome quando eu me referisse a ela, para evitar dúvidas, como acontecera na anterior em que eu falara também sobre a Ruth Escobar e, em uma das menções, algumas pessoas ficaram sem saber sobre a qual das duas eu estava me referindo. Dois minutos depois, a Mariana, que ouvira a Ruth gravando, sem a mãe saber, enviou-me a seguinte mensagem: “pai, é só botar Ruth, mãe da Mariana”.

Que tal?


João de Paula Monteiro Ferreira

Ex-presidente do DCE da UFC, ex-diretor da UNE, médico especialista em psicoterapia e psicologia organizacional, formado pela Medizinische Fakultæt der Universitæt zu Kœln, República Federal da Alemanha



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