João de Paula
Toquei na porta da madame sonnerie, mas lá também ninguém responde.
Foi o que disse a Ruth, mãe da Mariana, ao grupo que esperava pela Lucila e o Edinaldo, diante do apartamento deles em Grenoble, cidade situada no sudeste da França, no sopé dos alpes. Ela e eu só entendemos a razão das risadas das pessoas que falavam francês naquele grupo de brasileiros ao ouvirem aquela frase, quando alguém esclareceu que sonnerie significava campainha, não sendo, portanto, o nome da vizinha dos nossos amigos. O engano dela, em parte, foi devido ao costume alemão de colocar o sobrenome do morador na porta das residências, mas, convenhamos, Sonnerie, poderia muito bem ser o nome de uma gentil madame francesa, não é mesmo?
Recém-chegados de vários lugares, estávamos naquela porta aguardando os donos da casa para mais um encontro de brasileiros unidos por laços de companheirismo e amizade, alguns desde o Brasil, outros a partir do Chile e outros ainda, que foram se agregando ao grupo já na Europa. Estes encontros aconteciam nas férias de meio ou de fim de ano, em cidades onde residisse alguém com condições de hospedar os visitantes, pois o dinheiro pouco não possibilitava gastos com hotéis. As despesas e as tarefas domésticas eram compartilhadas e os deslocamentos eram feitos pelos meios de transporte mais baratos. A título de exemplo, a Ruth, mãe da Mariana, e eu, chegáramos ali viajando na segunda classe de um trem de Colônia a Paris e de lá, pegando uma carona até Grenoble com a Valquíria e seus dois filhos pequenos (Manu e Osael) em um carro inglês de segunda mão que, mesmo quebrando no caminho, a duras penas conseguiu alcançar nosso destino. Nos seis anos de exílio europeu, ocorreram encontros daquele tipo em Bochum, Copenhague, Colônia (repetidos), Utrecht, Paris e, naquele momento em Grenoble, com variações na configuração de cada um e algumas mudanças das pessoas que deles participavam. Em Colônia eles foram mais frequentes por ser favorecida por sua posição geográfica no centro da Europa ocidental e, talvez, por contar com um forte tripé de apoio logístico (modéstia à parte, pelo que me toca) formado pelos casais Ângela-Paulo Lincoln, Ruth, mãe da Mariana-João de Paula e o onipresente casal alemão, quase brasileiro, Bárbara e Fred. Com o risco (sempre grande) de esquecer alguém, cito mais alguns nomes de anfitrioas e anfitriões destes encontros: em Bochum, a paulistana Neusa e o boliviano-brasileiro Carlos Soliz, em Copenhague os goianos Valéria e Madureira e os irmãos pernambucanos (originais) Rosane, Rildete e Rubão, em Utrecht, o paulista Percy e sua família , em Paris, a pernambucana (original) Valquíria e o cearense pernabucanizado Aécio. Havia traços comuns a todos os encontros. Inicialmente aconteciam as trocas de iguarias como rapadura, alfenim, batida, doce de goiaba, farinha e goma de mandioca, cachaça, café em pó do Brasil etc. O convívio era sempre a prioridade número um. Quem quisesse fazer turismo, que aproveitasse outra ocasião. A atração principal eram as conversas que se estendiam pelas madrugadas, muitas acompanhadas de café, vinho (“sempre amargo, do exílio”, citado pelo Sérgio Buarque) ou cerveja, dependendo do país. Saídas de casa, só depois de longas negociações entre os mais conversadores e as mães mais atentas à necessidade de as crianças brincarem em algum parque das proximidades. Dentre estes mais conversadores destacava-se o Aécio Matos que, em um destes encontros, chegou a tomar a palavra do Edinaldo (que também era muito conversadorzinho), quando este fez uma pausa para espirrar, depois de ter pronunciado a conjunção “mas”. Em uma fração de segundo, o cearense pernambucanizado, engatou: “por falar em mas, lembrei-me de uma história…”. Gargalhada geral. Sem querer diminuir o mérito do Aécio, os outros participantes não ficavam muito atrás dele na ânsia de falar. A vontade de conversar sobre coisas do Brasil era ampla, geral e irrestrita, como a anistia que a gente estava começando a reivindicar.
Em Grenoble, moravam dois casais de pernambucanos (também originais), que conhecêramos no Refúgio de Padre Hurtado, em Santiago: Ana e Renato, Lucila e Edinaldo. Contra o Ednaldo, a ditadura cometera uma de suas grandes farsas: ele foi acusado, juntamente com Ricardo Zaratini, um engenheiro seu colega, de ter participado de um atentado a bomba ocorrido no Aeroporto de Guararapes, no Recife, que teria como alvo o Marechal Costa e Silva, que não chegou a desembarcar ali. A propósito, em seu livro O Cristo do Povo, o jornalista e ex-deputado Márcio Moreira Alves conta o seguinte episódio: depois de muito pressionado pelo coronel do Exército que lhe interrogava a respeito do paradeiro de Ricardo Zaratini, um trabalhador respondeu: – sei não, senhor; o nome mais parecido com esse, que eu ouvi falar em toda minha vida, foi chuveiro Lorenzetti. Furioso, o militar o dispensou.
Aquela acusação forjada pesava muito sobre o Edinaldo que, inconformado, lutava permanentemente para provar que nada tinha a ver com aquele ato tresloucado, o que só foi possível dois anos antes de sua morte, ocorrida em 1997, em consequência da recidiva de um câncer que lhe acometera no período do exílio. Em 1995 uma reportagem do Jornal do Comércio, esclareceu, sem deixar margem a qualquer dúvida, que Edinaldo e Ricardo Zaratini não tinham nenhuma relação com o Atentado do Aeroporto de Guararapes. Guardo comigo uma foto que ele me enviou, de cujo verso transcrevo literalmente o que ele escreveu: – 23/7/95. Dia do resgate da verdade. “É engraçada a força que as coisas parecem ter, quando elas precisam acontecer.” – Caetano Veloso. João de Paula, a foto foi feita para marcar o evento. Serve também para compartilharmos a alegria e o privilégio de viver momentos como este. Afetuosamente, Edinaldo.
Em 2013, Emília Miranda, filha da Lucila e do Edinaldo, que conheci menininha, recebeu da Comissão Estadual da Verdade de Pernambuco um documento inocentando oficialmente seu pai daquela vil acusação. Documento igual foi recebido por Ricardo Zaratini, que naquela ocasião exercia mandato de Deputado Federal. O autor do atentado tinha sido um integrante de uma dissidência da Ação Popular, organização política originada na igreja católica. A AP lutava contra a ditadura, mas a sua direção nacional nada sabia do planejamento daquele ato e não apoiava aquele tipo de ação. Para mim, aquilo que causou a morte de duas pessoas e ferimentos em 14, não pode ser justificado moral e politicamente. Aliás, além das terríveis consequências para as pessoas vitimadas e suas famílias, aquela ação serviu para dar mais um pretexto para a ditadura cometer mais atrocidades contra os que se opunham a ela, coisa que ela já vinha fazendo, mesmo quando não tinha pretexto algum. Sempre tive certeza de que o Edinaldo e o Zaratini não tinham participado daquilo.
De Maranguape,
João de Paula Monteiro Ferreira

Ex-presidente do DCE da UFC, ex-diretor da UNE, médico especialista em psicoterapia e psicologia organizacional, formado pela Medizinische Fakultæt der Universitæt zu Kœln, República Federal da Alemanha


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