João de Paula
_Falas bem o português. És de Espanha ou de Itália?
Foi o que me perguntou aquele português dono de uma vendinha próxima de um pequeno povoado de zona rural, no norte de Portugal. Eu chegara ali com quatro colegas da faculdade de medicina, em uma viagem em que saíramos de Colônia com destino a Almada, cidade da região metropolitana de Lisboa para fazermos um estágio de férias em uma clínica pediátrica.
Chegados da Espanha no fim daquela tarde, acampáramos à margem de um riacho perto dali. Ao anoitecer, visualizamos uma luzinha no alto de uma suave encosta que ladeava o vale em que estávamos e para lá nos dirigimos à procura de algo para jantar. Encontramos atrás de um balcão de tijolos a pessoa que me fez aquela pergunta e que depois que lhe respondi que era brasileiro, desculpou-se, dizendo: “sou mesmo um parvo, como não identifiquei alguém do Brasil, país que muito admiro e onde tenho familiares residindo”. Em seguida, chamou sua esposa e uma filha adolescente a quem nos apresentou calorosamente. Lamentou que para comer só poderia oferecer sardinhas fritas com batatas e nos fez uma proposta: nós pagaríamos por elas, mas o vinho tinto que as acompanharia seria por conta dele. O resultado foi que sua família e nós cinco, ficamos até às três horas da manhã comendo as gostosas sardinhas portuguesas, tomando um excelente vinho da casa e conversando sobre Portugal, Brasil e Alemanha, onde eles tinham parentes trabalhando. Quando o português de iniciantes dos meus colegas alemães não bastava, eu dava uma mãozinha na tradução.
A ideia daquele estágio de férias em Portugal, começara bem lá atrás e enfeixava um aglomerado de interesses. O principal, sem dúvida, era a oportunidade de aprendizagem de medicina em um contexto de prática social, mas havia também uma grande curiosidade sobre a transição para a democracia que ocorria naquele país que vivera a experiência mais longa de uma ditadura de extrema direita na Europa durante o Século XX. E claro, também a possibilidade de curtir um pouco as belas praias de Portugal. Para mim, tinha mais um: privado das coisas do Brasil havia mais de quatro anos, afogueava-me o desejo de usufruir da proximidade linguística e de outros elementos culturais que aquele país tem em comum com o nosso.
O interesse por assuntos portugueses entre alguns estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade de Colônia era notável. Após a Revolução dos Cravos que derrubara a ditadura salazarista em 1974, fora criada em 1975 por seu Diretório Acadêmico a Sociedade Amílcar Cabral, cujo nome homenageava o líder da luta pela independência da Guiné Bissau e de Cabo Verde. O propósito desta organização, da qual participei, era ajudar financeiramente aqueles dois países africanos que eram os mais pobres entre os que haviam conquistado a independência. Aliás, àquela época, era muito aguçada a sensibilidade política da juventude alemã, ainda traumatizada pela experiência de seus pais e avós com o nazismo. Sua disposição de ajudar causas democráticas e de justiça social em outros países era muito grande, como era a vigilância com a política em seu país.
Muitos estudantes alemães acompanhavam de perto o destino das ex-colônias portuguesas e o que acontecia na metrópole, desde o dia em que capitães das Forças Armadas de Portugal se rebelaram contra o regime fascista, usando como código para deflagrar suas ações a bela canção Grândola, Vila Morena, que se tornou o hino da insurreição vitoriosa.
Aquele estágio para cinco estudantes do 5º ano da Faculdade de Medicina da Universidade de Colônia, no período de 02.08.77 a 03.09.77 na Clínica Popular de Pediatria de Cova da Piedade, freguesia de Almada, fora conseguido por um amigo meu que se encontrava refugiado em Portugal.
Dorothee, Johana, Thomas e Ludger, meus companheiros de viagem, eram colegas muito próximos, pertencentes a um grupo de estudo que criáramos em 1975, logo que retomei meus estudos de medicina em Colônia. Havia uma amizade muito sólida entre nós. A viagem foi planejada para termos o deslocamento de ida como um prazer adicional. O percurso através da Bélgica, França e Espanha foi traçado inteiramente por estradas vicinais, coincidindo em muitos trechos com a chamada Route Vert, com paradas conforme a vontade do grupo. Viajamos em uma Kombi emprestada por uma amiga da Johana, que a havia adaptada para dormitório de três pessoas e com todos os equipamentos de suporte para acampar. Compramos uma pequena barraca complementar, suficiente para abrigar duas pessoas.
Saímos de Colônia no início da segunda quinzena de julho, com boa folga de tempo para a data de início do estágio. Acampávamos costumeiramente em áreas rurais, onde pernoitávamos, tomávamos café da manhã e caso houvesse alguma atração local prolongávamos a estadia. Encontramos lagos, onde nadávamos, fazendas onde parávamos algum tempo e comprávamos queijos e vinhos. Na ida atravessamos lugarejos, vilas, algumas cidades de tamanho médio, mas evitamos entrar nas grandes. Na Bélgica e na França nada nos pareceu muito diferente do que conhecíamos na Alemanha, mas na Espanha nos chamou a atenção a diversidade arquitetônica e, principalmente, as marcas da longa presença árabe em algumas áreas por onde passamos.
Nosso estágio na Clínica Popular de Pediatria foi supervisionado pelo Dr. Francisco Marques Açucena, médico jovem, competente e atencioso, que desde o primeiro dia esteve muito próximo de cada um de nós, orientando, dando suporte e tirando nossas dúvidas. O trabalho da clínica era muito direcionado para o envolvimento dos pais no atendimento às crianças. Grupos de mães recebiam orientação sobre a prevenção de doenças, identificação dos primeiros sinais das mais frequentes, cuidados básicos de saúde e primeiros socorros. Como estudantes de medicina, participávamos deste trabalho integrando uma equipe multidisciplinar constituída por médico, profissionais de enfermagem, de assistência social e de nutrição. Na sistemática de atenção primária, cuidávamos dos casos mais simples e fazíamos o devido encaminhamento dos mais complexos. Fomos convidados para algumas reuniões noturnas dos funcionários que estavam estruturando o que eles chamavam de Colectivo de Colaboradores. Mesmo com algumas escapadas à noite para nos deliciarmos com os famosos frutos do mar de Portugal em companhia de funcionários da clínica, aquele mês foi de muito trabalho, de intenso engajamento em atividades comunitárias e de rica aprendizagem de uma medicina humanizada.
Em 04 de setembro, deixamos aquele país que estava vivendo o quarto ano de grandes mudanças políticas e sociais, desde que abolira um regime ditatorial que o sufocara por mais de quatro décadas. Portugal ainda não chegara a uma situação de robustez em sua governança, sendo governado por uma coalizão de forças sociais-democratas e democratas liberais minoritárias, após um período de intensos embates políticos e ideológicos entre as forças que haviam sido reprimidas pela ditadura salazarista. O ambiente político era de plena liberdade e de grande efervescência de ideias, formulações de propostas, proposições de projetos de desenvolvimento, com tudo o que caracteriza um regime democrático, mas a situação econômica ainda não era boa, só vindo a estabilizar-se na década de 1980. As forças de extrema direita que haviam exercido uma longa tirania, como costuma acontecer após serem derrotadas, tinham se recolhido, esperando oportunidades de aparecerem com alguns disfarces no futuro.
A volta por autoestradas, foi rápida, com pernoites em Madrid e Barcelona. Atravessamos os Pirineus por Andorra, entramos na França pelo Sudeste, passamos nos arredores de Lyon, cruzamos a Suíça e entramos na Alemanha pelo Sudoeste, levando poucas horas da fronteira até Colônia, onde a Mariana, antecipando em quase dois meses a previsão do obstetra, chegaria no dia 10, pouco depois que a Ruth chegara das férias que passara em Paris com amigos nossos.
De Maranguape
João de Paula Monteiro Ferreira

Ex-presidente do DCE da UFC, ex-diretor da UNE, médico especialista em psicoterapia e psicologia organizacional, formado pela Medizinische Fakultæt der Universitæt zu Kœln, República Federal da Alemanha


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