Democracia, justiça social e “joie de vivre”

João de Paula.

-A nossa Bastilha hoje é …

Era o que gritava o Cláudio Pereira, em certo momento da festa que ele realizava todo 14 de julho, em sua casa azul de bolinhas brancas, pertinho do Bar do Anísio, em um dos recantos mais bonitos da Avenida Beira Mar de Fortaleza. Em seguida, uma bela convidada, escolhida secretamente por ele, era delicadamente “derrubada”, deslizando suavemente, da cadeira em que estava sentada, sob vivas e aplausos da numerosa plateia aglomerada no jardim e na calçada., Era uma encenação no estilo do Chacrinha da histórica Queda da Bastilha, deflagradora da Revolução Francesa, comemorada tão originalmente por aquele cearense apaixonado pela França e profundamente identificado com os valores da liberdade, da igualdade e a da fraternidade, bandeiras principais do movimento revolucionário de 1789.

Foi naquela famosa casa que a Ruth e eu recebemos a mais calorosa e duradoura acolhida em Fortaleza, ficando atrás apenas das ofertadas pelas nossas famílias. Nossa primeira participação em uma daquelas festas de fins de semana prolongados, foi em uma ocasião em que a faixa comunicadora da atração de cada dia, exibia o título SARAPATEL FRESCO. Anúncios alí podiam ser do ENCOPA – Encontro dos Comedores de Panelada ou de outras iguarias como buchada, feijoada, rabada, ou, ainda, de um dos muitos eventos como a Queda da Bastilha, a Confraternização dos Motoristas, o lançamento da Banda Papacu (para fazer concorrência à do Periquito da Madame, criada pelo Mincharia, outro iconoclasta cearense), Festa do Maior Abandonado, Eleição da Garota Cultural e do Míster Motorista, estas duas últimas parodiando os concursos de misses.
O carinho com que o Cláudio nos recebeu foi muito marcante, mas não era uma exceção. Caracterizava seu modo de relacionar-se com as pessoas. Ele hospedava frequentemente viajantes do Brasil e do mundo. A propósito, não esqueço de um fato ocorrido comigo, quando fiz um curso no Japão; terminada a apresentação dos participantes, o japonês que fizera a tradução, aproximou-se de mim e me perguntou baixinho: “conhece o Cláudio Pereira?” Vendo minha cara de espanto, esclareceu que quando era estudante, fizera uma viagem como mochileiro pelo Nordeste do Brasil, tendo se hospedado por alguns dias na casa azul de bolas brancas.

Poucos dias depois da nossa chegada da acolhedora, mas circunspecta, Alemanha, para a Ruth e para mim era encantador aquele ambiente efusivo, irreverente, transbordante de alegria, frequentado por pessoas das mais diversas posições político-ideológicas, que tinham no afeto pelo Cláudio seu ponto de conexão; em outras palavras, a fraternidade é que dava liga àquele grupo heterogêneo em aspectos econômicos, sociais e culturais, formado por estudantes, professores, desempregados, empresários, motoristas, jornalistas, parlamentares, governantes, socialites, artistas, intelectuais, vendedores ambulantes etc. Por mais tolerante que fosse o Pereira, sua casa não atraía antidemocratas que, aliás, àquela época, eram meio enrustidos, por vergonha dos crimes recentes e do fracasso econômico da ditadura militar agonizante. Em paralelo, o Cláudio praticava permanentemente o princípio da igualdade, tratando todos sem diferenciação, a começar com os que lhe prestavam serviços. A Confraternização dos Motoristas, realizada anualmente, era o ponto alto de expressão do modo digno como ele se relacionava com aqueles profissionais tão importantes para sua mobilidade; graças àqueles motoristas, ele maratonava os mais charmosos bares da cidade em uma só noite, sentado em sua cadeira de rodas, apelidada de “A Cadeira Voadora”, pelo colunista Lúcio Brasileiro, um dos muitos jornalistas que, apesar da sobrevivência de uma censura/autocensura mais sutil do que a da época do AI-5, repercutiam nos meios de comunicação do Ceará as manifestações que ocorriam naquele espaço libertário.

No meu modo de ver, o que guiava, de fato, as ações do Cláudio no cotidiano, era a tríade de princípios da Revolução Francesa, mesmo sendo ele admirador declarado de alguns temas da utopia comunista e tendo militado no PCB. Prova disso, é que depois de algumas doses de Cuba Libre, era frequente ele levantar os braços com os indicadores de cada mão em riste e, parodiando um conhecido jingle do Sílvio Santos, cantarolar: “lá, lá, lá, lá, lá, lá, o comunismo vem aí”. O que não lhe impedia de, algumas vezes, emendar: “pena que o comunismo acabou antes de chegar aos pobres, como diz o Augusto Pontes”. Quem não conhecesse sua história, presenciando aquela brincadeira, talvez tivesse dificuldade de imaginar o quanto ele sofrera nas mãos dos carrascos da ditadura, a pretexto daquelas ideias.

Certo dia, chegou à acolhedora casa azul de bolinhas brancas uma linda francesa, que passou a fazer parte da vida do Cláudio até quando ele exalou o último suspiro. A partir da inclusão da Martine em sua existência, a alegria de viver, que sempre foi a fonte quase inesgotável de energia para o Cláudio, mereceu ser chamada também de “joie de vivre”. A história deste amor está belamente contada no Cherrizinho, livro em que a escritora Martine Kunz descreve o que chamo de processo de fusão de partes de duas pessoas e de duas culturas, resguardando suas respectivas soberanias.

Para a Ruth e para mim, reencontrar o Cláudio Pereira depois de uma separação forçada de 11 anos, era a retomada de uma intensa relação de companheirismo exercida na luta estudantil contra um regime opressivo. As suas contribuições a essa luta no terreno da cultura e da comunicação nos vinham constantemente à memória. Não tínhamos como esquecer o GRUTA – Grupo Universitário de Teatro e Arte, criado por ele e o trabalho realizado ali em parceria com o Augusto Pontes, que projetou muitos universitários cearenses no cenário local e nacional, tanto na música como nas artes cênicas; recordávamos também das instigantes excursões culturais organizadas pelo Pereira com destinos ao interior do Ceará, a cidades de outros estados e a países sul-americanos. Inesquecível igualmente era o BISU – Boletim Informativo Semanal Universitário, concebido, redigido, impresso e distribuído por ele nos jantares do Restaurante Universitário, não sendo rara a cobertura de uma passeata reprimida pela polícia na manhã do mesmo dia da sua publicação. Já o impressionante trabalho do Cláudio como animador e empreendedor cultural, incluindo suas atividades como Presidente da Fundação Cultural de Fortaleza na gestão da Maria Luíza na prefeitura e que seguiu ao longo de vários mandatos de prefeitos de distintas posições político-ideológicas, é assunto que só cabe em um livro e não em uma historieta como essa aqui.

Tendo contrariado prognósticos médicos sombrios após um grave acidente de carro e superado várias sequelas, em abril de 2010, o Cláudio teve que ser internado em uma UTI com um quadro clínico de muita gravidade. Apesar de rigorosas restrições, devido à minha condição de médico, consegui visitá-lo. Com a voz bem fraquinha, ele sussurrou: “canta aquela musiquinha da Mundita”. Com a garganta quase travada, não foi fácil cantarolar a paródia que ele adorava sobre uma paixão não correspondida de uma moça de Crateús por um vereador da cidade.

Poucos dias depois, em um trem que saíra de Berlim com destino a Praga, meu celular tocou. Era o hoje bem-sucedido empresário Paulo Roberto, ex-motorista-auxiliar do Cláudio, comunicando-me a morte daquele querido amigo. Com o aconchego da Maurícia, minha atual mulher, das minhas filhas Mariana, Marina e Maíra e dos meus genros Nicola e Nonato, na cabine daquele trem, fui sendo consolado da imensa dor provocada pela perda de uma pessoa com quem mantivera profundos laços de companheirismo e amizade por quase meio século.

A casa azul de bolinhas brancas foi finalmente vencida pelo assédio implacável da especulação imobiliária. Martine e Cláudio passaram a morar por um período no bairro do Castelo Encantado, que faz jus a esse nome ao oferecer uma das mais belas vistas naturais do litoral de Fortaleza. Dali, o casal foi para uma casa na Praia do Futuro. Naquele novo espaço, a Martine conseguiu consolidar a mudança que, com habilidade e energia, vinha fazendo gradualmente naquela mistura de albergue juvenil com clube suburbano que encontrara na Beira Mar, transformando-a em um lar aconchegante, onde duas pessoas apaixonadas pudessem desfrutar daquele grau mínimo de privacidade que todo amor requer. A ordem estabelecida foi bem dosada, de modo que a alegria de acolher amigos continuou. Ao invés de serem recebidas em um jardim (inexistente), como na Avenida Beira Mar, eles passaram a ser festejados em um magnífico quintal, todo arborizado e de frente para o mar, em dias marcados com antecedência razoável. É neste ninho, onde a Martine e o Cláudio viveram amorosamente até maio de 2010, que ela ainda mora, curtindo o que construíram juntos e cultivando carinhosamente a memória dele.


João de Paula Monteiro Ferreira

Ex-presidente do DCE da UFC, ex-diretor da UNE, médico especialista em psicoterapia e psicologia organizacional, formado pela Medizinische Fakultæt der Universitæt zu Kœln, República Federal da Alemanha



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