Maria, Jorge, Jundiai

Tomás Togni Tarquínio

O jovem casal que me escondeu em Jundiai conhecia os riscos que corriam ao abrigar um clandestino. Não pertenciam a nenhuma organização, mas eram simpatizantes da luta contra a ditadura e por um mundo mais justo. Maria estudava Sociologia na capital. Não éramos completamente estranhos, nos cruzamos algumas vezes em assembleias estudantis. Fui conhecer seu marido assim que cheguei em sua casa. Jorge dirigia uma empresa de maquinas agrícolas e contava com a ajuda da esposa. Moravam em casa novinha em folha com várias dependências, além de jardim, piscina e quintal situada em bairro abastado, igualmente novo.
Após minha condenação a dois anos de prisão, a repressão me procurou onde havia morado e trabalhado em São Paulo. Sem condições para seguir na direção do DCE, eu pretendia dar continuidade às atividades políticas sendo deslocado para outra região do país. Propus essa solução à organização como uma forma de correr menor risco usando documentos falsos. Eu aguardaria a resposta durante duas semanas em Jundiai, tal como havia combinado com Maria.
Ao longo do tempo, eu encontrava o casal a noite e nos finais de semana. Eles chegavam tarde do trabalho, enquanto que Maria, duas vezes na semana, atravessava os setenta quilômetros que separavam Jundiai do campus da USP. Ela era o único contacto com militantes da Ação Popular com quem ela deveria encontrar por ocasião de suas idas à Universidade.
No decorrer da estadia, eu não fui ao jardim, ao quintal, não me postei nas janelas, tampouco atendi a porta ou telefone. Evitava me informar pelo o rádio e televisão quando estava só na residência, evitando o ruido que poderia ser tido como suspeito em uma casa vazia. Preparava minhas as refeições. O enclausuramento foi mais longo do que o previsto, atenuado pela leitura compulsiva do que havia na biblioteca da casa, além dos jornais que o casal assinava.
O tempo de permanecia que havia combinado com Maria expirou. Fiquei sem resposta sobre meu futuro como militante. A espera passou a ser penosa, tanto para mim, quanto para o casal. A cada vez que Maria retornava de São Paulo, ela não escondia a angustia causada pela ausência de resposta. Esse embaraço perdurou por mais de mês. A circunstância se agravou com a visita inopinada de familiares do casal ao constataram minha presença. Não sei se em consequência desse encontro, o inesperado se manifestou mais uma vez numa manhã. Antes de partir ao trabalho, Jorge me despertou aflito. Segurava uma carta anônima e datilografada que alguém a depositou na caixa postal durante a noite. Em dois breves parágrafos, o missivista, sem esquecer as escusas, afirmava que, a boca pequena, corria o boato que escondiam um clandestino em sua casa. O outro parágrafo dizia que o assunto já teria chegado aos ouvidos de indivíduo pouco recomendável.
Jorge me levou de volta para São Paulo. Pouco nos falamos durante o trajeto. Antes de partir, o casal me entregou uma quantidade de dinheiro suficiente para me hospedar uns dias em hotel modesto. Jorge estacionou o Fusca na Avenida Doutor Arnaldo, próximo ao Cemitério do Araçá. Nossa viagem ali terminava. Já fora do veículo, quando me inclinei na janela para uma vez mais lhe agradecer, Jorge, com os olhos marejados, despediu-se com movimentos de cabeça, sem dizer uma só palavra. Desde então, só me restaram as lembranças do casal.


Tomás Togni Tarquínio

Formado em Antropologia e Prospectiva Ambiental na França. Desde 1977, trabalhou em diversas instituições francesas e europeias pioneiras sobre: energia, ecologia política, meio ambiente, decrescimento e colapso da sociedade termo-industrial. Foi Secretário do Governo do Amapá, por ocasião da execução do pioneiro Projeto de Desenvolvimento Sustentável do Amapá (PDSA); trabalhou no MMA e Senado.



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