Transferência Compulsória de Estudantes no Paraná

Uma Análise Crítica sobre Eficácia e Ética em Políticas Educacionais

Lígia Bacarin

O Contexto da Medida e suas Implicações

A Secretaria da Educação do Paraná (Seed-PR) implementou uma política que permite a transferência compulsória de estudantes considerados indisciplinados para outras unidades escolares. Apresentada como solução para casos de reincidência em situações de conflito, a medida foi classificada pela APP-Sindicato (que representa os professores paranaenses) como uma “expulsão disfarçada” e potencial violação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Sob a perspectiva freireana de educação libertadora, esta análise argumenta que tal medida não apenas se mostra ineficaz para promover mudança comportamental genuína, mas também reforça mecanismos de exclusão — próprios da “educação bancária” — e negligência as raízes socioeconômicas e institucionais dos conflitos escolares, tratando o sintoma e não a causa da questão. Este texto explorará os fundamentos teóricos que contestam tal prática, à luz de uma pedagogia que visa à conscientização, examinará experiências análogas e seus resultados, e apresentará alternativas consistentes com uma educação dialógica e verdadeiramente emancipatória.

1. Por que a Transferência Compulsória é Pedagogicamente Inviável

1.1 A Ilusão da Mudança de Ambiente Sem Transformação das Condições Objetivas

A justificativa oficial sugere que ao mudar de escola, o aluno perde “influência negativa” e tem uma “chance de recomeçar”. Conforme argumenta Morrone (2019), essa visão desconsidera um princípio básico da psicologia educacional e da sociologia: o comportamento não é um fenômeno desconectado do contexto social e material que o produz.

Transferir um aluno problemático de escola sem alterar as condições que geram sua indisciplina é como trocar um paciente de leito em um hospital insalubre esperando sua cura. O problema migra com ele. Na prática, significa basicamente “passar a batata quente pra outra escola”. A medida individualiza um problema que é, em sua essência, estrutural – relacionado a condições familiares, comunitárias, econômicas e até mesmo à própria estrutura escolar.

  • Vítima do Sistema versus Ameaça ao Sistema: O estudante em conflito com a norma é tratado não como um sintoma de disfunções sociais mais amplas (falta de apoio familiar, condições de pobreza, currículo desconectado da realidade, metodologias ultrapassadas), mas como uma ameaça isolada a ser contida e removida.
  • Falácia do “Recomeço”: A ideia de “recomeço” em uma nova escola é falaciosa se não vier acompanhada de um suporte multidimensional. O histórico de conflitos o seguirá através de registros e da burocracia, e o estigma tende a se reproduzir no novo ambiente, que muitas vezes possui problemas similares ao anterior.

1.2. A Escola Como Espaço de Disciplinamento e Controle Social

Políticas que priorizam a remoção do “elemento disruptivo” em vez de sua integração revelam uma função latente da escola que vai contra seu propósito educativo: a de ser um aparelho de controle social e disciplinamento.

A transferência compulsória opera sob uma lógica de higienização social do ambiente escolar, onde o “indesejável” é identificado e removido para preservar a ordem estabelecida. Essa prática não resolve a indisciplina; apenas a realoca geograficamente, mantendo intactas as estruturas que a geram. É uma solução que beneficia aparentemente a estatística da secretaria (que pode mostrar uma redução de ocorrências em uma escola específica), mas não o ecossistema educacional como um todo, que vê o problema se deslocar para outra unidade.

Ou seja, a transferência compulsória opera como um mecanismo de violência simbólica institucionalizada. Como analisaria Pierre Bourdieu (2014), a escola, ao invés de funcionar como instrumento de transformação, reproduz as estruturas de dominação ao classificar e segregar os estudantes que não se adaptam às normas dominantes. A transferência compulsória naturaliza a exclusão ao tratar o sintoma (a indisciplina) sem enfrentar suas causas profundas (desigualdades sociais, currículos inadequados, formação docente insuficiente).

Ao remover o aluno “problemático”, o sistema educacional paranaense pratica o que alguns teóricos denominam de “pedagogia da exclusão, onde a resposta institucional à divergência comportamental é a segregação espacial em vez da transformação pedagógica. Esta prática ignora que o comportamento disruptivo frequentemente manifesta um conflito não resolvido entre o capital cultural do estudante e as expectativas da instituição escolar.

1.3. A Violação dos Princípios do Direito à Educação

Morrone (2019) é taxativa ao afirmar que a transferência compulsória ‘pode excluir [o aluno] de seu direito à permanência na educação básica’. O direito à educação, consagrado na Constituição Federal de 1988 (Art. 205) e no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Art. 53), não se restringe ao mero acesso a uma vaga. Trata-se de um direito social fundamental (CF, Art. 6º) que engloba a permanência e o sucesso em um ambiente escolar que respeite a dignidade da pessoa humana (CF, Art. 1º, III) e promova o desenvolvimento integral do educando. Dessa forma, os princípios constitucionais fundamentam a crítica de que a transferência compulsória viola a garantia de uma educação plena.

Uma política que prevê a remoção do aluno como última instância coloca a instituição acima do educando. Em vez de a escola se adaptar para acolher a diversidade e superar os desafios, ela se utiliza de um mecanismo que, na prática, penaliza o aluno por sua suposta inadequação, podendo levá-lo ao abandono escolar – especialmente se a nova escola for mais distante de sua residência ou se o estigma se tornar intransponível.

Tabela 1: Análise Comparativa das Perspectivas sobre a Transferência Compulsória

PERSPECTIVADISCURSO OFICIAL (SEED-PR)ANÁLISE
Objetivo PrincipalGarantir segurança e interromper “influência negativaRemover o sintoma (aluno) sem tratar a causa (estrutura)
Concepção de Aluno“Astro negativo” a ser contidoSujeito em desenvolvimento, produto e produtor de seu contexto
Mecanismo de AçãoMudança de ambiente para “recomeço”Deslocamento geográfico do problema (“batata quente”
Impacto no Direito à EducaçãoGarantia do direito em um ambiente seguroRisco de violação do direito à permanência e à não exclusão

2. Dados, Estatísticas e Experiências Análogas: O que a Evidência Mostra?

É revelador que a própria Resolução 4.308/2025-GS/SEED que institui a transferência compulsória no Paraná não apresente qualquer dado estatístico ou estudo de impacto que justifique a medida como eficaz para a melhoria do clima escolar ou do desempenho dos estudantes. Esta ausência é sintomática de uma política pautada mais no punitivismo do que na evidência científica.

Uma revisão da literatura disponível, incluindo o estudo crítico de Morrone (2019) – que alerta que a medida ‘pode excluir [o aluno] de seu direito à permanência na educação básica’ –, confirma a escassez de pesquisas robustas que quantifiquem os resultados de políticas análogas de transferência compulsória por indisciplina em larga escala no Brasil. A discussão encontrada na literatura especializada e na mídia é predominantemente qualitativa, jurídica e teórica, centrando-se nos riscos de violação de direitos e de segregação escolar, e não na apresentação de métricas de sucesso.

Portanto, a alegação de que a transferência compulsória é uma solução pedagógica eficazes opera no campo da suposição, não no campo da verificação empírica. Implementar uma política de tão alto impacto social sem uma base de evidências que a sustente configura uma grave irresponsabilidade, pois expulsa para outras unidades escolares o problema, sem gerar conhecimento sistematizado sobre suas causas e soluções.

Esta já é uma informação crucial: a medida é implementada sem uma base de evidências sólidas que demonstre sua eficácia.

No entanto, experiências análogas, opiniões da categoria nas mídias sociais e a literatura especializada permitem extrapolar os prováveis resultados:

  • Efeito “Rotatividade de Problemas”: Uma análise das reações à medida em reportagens e redes sociais (como na matéria do Brasil de Fato, 2024) revela um padrão discursivo recorrente entre profissionais da educação: a percepção de que a transferência compulsória opera como um mero deslocamento espacial do conflito. Frases como ‘É um rodízio de alunos problemáticos’ e ‘Vamos passar a batata quente pra outra escola tentar resolver’ sintetizam a crítica prática de quem vivencia o cotidiano escolar. Essa percepção unânime entre os educadores – os principais agentes afetados pela medida – indica que a política não é percebida como geradora de mudança comportamental, mas sim como um mecanismo de terceirização do problema.
  • Aprofundamento das Desigualdades: É plausível supor que alunos transferidos compulsoriamente tendam a ser enviados para escolas com menor demanda, pior infraestrutura ou localizadas em áreas mais vulneráveis, aprofundando a segregação educacional. Escolas “depósito de indisciplina”, se tornariam realidade, concentrando os estudantes com maiores dificuldades e conflitos, o que sobrecarregaria seus profissionais e prejudicaria o aprendizado dos demais.
  • Custo Humano e Pedagógico: Morrone (2019) adverte que a transferência compulsória “pode excluir [o aluno] de seu direito à permanência na educação básica”. O rompimento de vínculos com professores e colegas, o estigma de ser “transferido por problema” e a possível dificuldade de adaptação à nova escola são fatores que elevam o risco de evasão escolar, especialmente entre adolescentes já em situação de vulnerabilidade.

2.1 Experiências Internacionais: Lições de Políticas Malsucedidas

  • O Caso dos Estados Unidos: “Tolerância Zero” e o Pipeline Escola-Prisão

Nos Estados Unidos, as políticas de “tolerância zero” (zero-tolerance) implementadas nas décadas de 1980 e 1990 oferecem um paralelo histórico alarmante. Essas políticas, que previam suspensões e expulsões automáticas para infrações disciplinares, resultaram em:

  • Aumento exponencial das taxas de suspensão e expulsão, afetando desproporcionalmente estudantes afro-americanos, hispânicos e com deficiência
  • Fortalecimento do que se denominou school-to-prison pipeline), onde práticas disciplinares excludentes encaminhavam jovens para o sistema de justiça criminal
  • Nenhuma melhoria significativa na segurança escolar ou no clima educacional

Pesquisas do Justice Policy Institute demonstraram que escolas com altas taxas de suspensão tendiam a ter pior desempenho acadêmico e climas mais negativos, indicando que a exclusão se correlaciona com pior qualidade educacional, não com melhoria.

  • A Experiência Argentina: Inclusão versus Exclusão

Embora a Argentina não tenha implementado políticas de transferência compulsória em larga escala, seu investimento em políticas de inclusão educacional oferece um contraponto valioso. A Asignación Universal por Hijo (AUH), programa de transferência condicional de renda implementado em 2009, trouxe impactos significativos: 

  • Aumento de 3,9 pontos percentuais na probabilidade de adolescentes entre 15-17 anos frequentarem o ensino médio 
  • Impacto particularmente relevante para meninos de famílias numerosas com baixa escolaridade do chefe de família 

Este caso demonstra que políticas que atacam as causas materiais da exclusão (pobreza, vulnerabilidade social) são mais eficazes para garantir permanência e sucesso educacional do que medidas punitivas.

3. A Transferência Compulsória como Mecanismo de Segregação e Precarização Neoliberal

Para além de sua ineficiência pedagógica, a política de transferência compulsória deve ser compreendida como um instrumento de gestão neoliberal da educação pública, que aprofunda a segregação socioespacial e transfere para o indivíduo a culpa por problemas estruturais.

3.1. A Lógica da “Segregação por Capacidade” e a Criação de Escolas-Depósito

A medida não opera no vácuo. Ela se insere em um contexto mais amplo de desmonte do projeto de educação pública inclusiva e de qualidade. A transferência compulsória funciona como um mecanismo de triagem e segregação que, sob o discurso de “preservar o ambiente escolar”, na prática cria um sistema de dupla via:

  • Escolas “Centro”: Unidades com melhores indicadores, localizadas em áreas centrais ou com maior capital político, que podem se ver “liberadas” de estudantes considerados “problema”, tornando-se ilhas de aparente excelência.
  • Escolas “Periferia” ou “Depósito”: Unidades com menos recursos, localizadas em áreas vulneráveis e com menor capacidade de pressionar a secretaria, que se tornarão o destino preferencial das transferências compulsórias, aprofundando sua sobrecarga e estigmatização.

Como apontado por um comentarista crítico à medida, isso criaria na prática “escolas depósito de indisciplina”. Essa segregação espacial do “problema” é uma solução administrativa barata e superficial que evita o investimento massivo necessário em apoio psicoeducacional, redução de turmas e formação docente. É a terceirização do conflito para as unidades mais fracas do sistema.

3.2 A Abdicação do Estado e a Culpabilização do Indivíduo

A retórica oficial do secretário Roni Miranda é reveladora: ele menciona a “baixa participação das famílias” e a necessidade de “encaminhar ao Ministério Público as famílias que não comparecem”. Este quadro desloca a responsabilidade do Estado e da estrutura escolar para a família e o indivíduo estudante.

O Estado, que deveria ser o garantidor do direito à educação e oferecer suporte multidimensional, abdica de sua função. Por exemplo, Conselhos Tutelares estão sobrecarregados e repletos de práticas da extrema-direita neopentecostal, conforme analisa Pollyanna Xavier; o Ministério Público é lento e as Varas da Infância não dão conta da complexidade do problema. A escola pública é deixada sozinha e desassistida para lidar com conflitos que são, em última instância, de origem social.

Essa terceirização do conflito corrobora a análise de Henry Giroux (1997) para quem, na lógica neoliberal, a escola deixa de ser um espaço de formação crítica para se tornar uma empresa, e o professor é esvaziado de seu papel de intelectual transformador para se tornar um gerente de sala de aula, um técnico responsável por implementar protocolos e controlar comportamentos que possam afetar os ‘indicadores de qualidade’ da instituição. A transferência compulsória é, neste sentido, o protocolo definitivo de ‘gestão de risco’: a remoção do ‘ativo problemático’ do portfólio da escola.

A transferência compulsória é a culminância dessa lógica: em vez de fortalecer a rede de apoio, o Estado pune o sintoma. Ele transforma um desafio pedagógico e social complexo em um mero problema de gestão de comportamento e logística de realocação. É a manifestação de um projeto neoliberal conservador que, incapaz ou sem vontade de resolver as causas profundas (desigualdade, falta de suporte mental, currículos inadequados), opta por gerenciar e contiver suas consequências mais disruptivas, ainda que à custa da segregação e da violação do direito à educação.

3.3 A Crítica à Governamentalidade Neoliberal

Essa análise encontra eco na obra do sociólogo Stephen J. Ball. Ele argumenta que as reformas neoliberais na educação promovem um processo de “lógica do mercado” e “responsabilização” onde escolas e indivíduos são pressionados a performar excelência em indicadores quantitativos, muitas vezes em detrimento de processos educativos profundos e inclusivos.

Nessa lógica, o aluno “indisciplinado” se torna um “ruído” no sistema, um obstáculo à eficiência administrativa e aos bons resultados em índices de rendimento. Sua remoção não é vista como uma falha educacional, mas como uma solução gerencial para otimizar o funcionamento da “empresa-escola”. Ball diria que isso representa uma mudança profunda na ética educacional: da formação de sujeitos críticos e intelectualmente autônimos para a gestão de populações e riscos.

Da mesma forma, a filósofa Nancy Fraser ajuda a entender a medida como parte de uma “política progressista neoliberal” que, mesmo apresentada sob um discurso de “proteção” e “segurança”, na prática aprofunda desigualdades. A política parece “progressista” ao se preocupar com o bem-estar da coletividade escolar (proteger professores e outros alunos da “influência negativa”), mas é neoliberal em sua execução, pois individualiza a solução e penaliza o indivíduo vulnerável em vez de modificar as estruturas que produziram sua vulnerabilidade.

Essa análise encontra eco na obra do sociólogo Stephen J. Ball e é radicalizada por Peter McLaren (2000), para quem o neoliberalismo não é apenas uma política econômica, mas uma teologia de mercado que coloniza todas as esferas da vida, incluindo a educação. Nesta lógica perversa, o aluno ‘indisciplinado’ se torna um ‘ruído’ no sistema, um obstáculo à eficiência administrativa e aos bons resultados em índices de rendimento. Sua remoção não é vista como uma falha educacional, mas como uma solução gerencial para otimizar o funcionamento da ‘empresa-escola’. McLaren denuncia que isso representa a morte da escola como um espaço de humanização e sua conversão definitiva em uma mercadoria.

Tabela 2: A Lógica Neoliberal por Trás da Transferência Compulsória

DIMENSÃODISCURSO OFICIAL (FACHADA)LÓGICA ESTRUTURAL (REALIDADE)
ObjetivoProteger a comunidade escolar e dar uma “segunda chance” ao alunoOtimizar indicadores de disciplina e rendimento, removendo “ruídos” do sistema
MeioTransferência como último recurso pedagógicoTransferência como solução gerencial de baixo custo para conflitos complexos
ResponsabilidadeDo aluno e de sua família (pela falha em se adaptar)Do Estado e da estrutura escolar (pela falha em incluir e educar)
ResultadoAmbiente escolar seguro e suposto recomeço do alunoSegregação socioespacial, aprofundamento de desigualdades e culpabilização da vítima

3.4. Os Dados que Comprovam o Abandono: Pandemia e Evasão

Os próprios índices sobre o abandono escolar durante a pandemia, citados na pesquisa publicada em 2022 pela FGV Social, a partir dos dados coletados pelo PNAD–Covid, mostra que a taxa de evasão escolar foi maior entre os estudantes mais novos. São um testemunho cruel do abandono do Estado em relação aos mais vulneráveis. A pesquisa mostrou que a evasão atingiu patamares históricos, saltando de 1,41% para 5,51% entre crianças de 5 a 9 anos, com pico de 22,4% entre as de 5 anos.

Mais grave ainda é a disparidade de renda: a pesquisa mostrou que estudantes da Classe E (renda per capita inferior a R$ 245,00) dedicaram em média 2h05min por dia a atividades escolares, enquanto os da Classe AB dedicaram 3h18min. Isso evidencia um abismo no apoio e no acesso à educação.

A transferência compulsória é a continuidade dessa lógica de abandono. Ela é aplicada justamente sobre aqueles que, em sua maioria, já são vítimas desse mesmo Estado ausente: jovens pobres, muitas vezes negros e periféricos, que carregam para a escola as mazelas de uma sociedade profundamente desigual. Em vez de lançar sobre eles uma rede de proteção, o Estado os empurra para as margens do sistema, criando um circuito que, como nos mostra a experiência americana, pode levar da escola à prisão.

4. As Alternativas Pedagogicamente Válidas: Para Além da Punição

A própria resolução paranaense, em sua descrição ideal, prevê etapas anteriores à transferência que são, de fato, os caminhos pedagogicamente corretos. O problema é que a transferência compulsória, como última instância, acaba se tornando o foco da política e o símbolo de sua lógica. As alternativas reais devem ser o cerne de qualquer ação:

  • Práticas Restaurativas e Mediação de Conflitos: Envolver todos os atores (aluno, ofendidos, família, equipe pedagógica) em um processo de diálogo que vise reparar danos e restaurar relações, e não apenas punir. A Seed-PR chega a mencionar “atividades restaurativas”, que devem ser a regra, não uma etapa protocolar para uma punição futura.
  • Apoio Psicoeducacional e Social Integrado: Investir em equipes multidisciplinares (psicólogos, assistentes sociais) dentro das escolas para identificar e trabalhar as causas profundas da indisciplina, que muitas vezes estão relacionadas a traumas, dificuldades de aprendizagem não diagnosticadas ou problemas familiares graves.
  • Revisão do Projeto Político-Pedagógico (PPP): A indisciplina massiva pode ser um sintoma de um currículo desconectado da realidade juvenil, de metodologias ultrapassadas ou de uma escola que não consegue engajar seus estudantes. Repensar o PPP para torná-lo mais dialógico e significativo é atacar a raiz do problema.
  • Fortalecimento do Apoio Sociofamiliar: A queixa do secretário sobre a ‘baixa participação das famílias’ desconsidera a complexidade dos contextos sociais brasileiros. Muitos estudantes estão inseridos em realidades marcadas por extrema vulnerabilidade, como lares disfuncionais, violência doméstica, drogadição, envolvimento com o crime organizado, além de pais e responsáveis com deficiências intelectuais ou saúde mental comprometida.

Neste cenário, a solução punitiva de ameaçar acionar o Ministério Público contra essas famílias é não apenas ineficaz, mas profundamente cruel e excludente. Ela ignora que a ‘não-participação’ é, frequentemente, um sintoma de incapacitação social e não de desinteresse.

A verdadeira solução, portanto, não é punir, mas investir. É imperioso que o Estado, por meio da escola, crie programas de apoio e vinculação que atuem na raiz do problema: assistentes sociais e psicólogos escolares para fazer a ponte com essas famílias, entender suas dificuldades concretas e conectar também à rede de proteção social (CRAS, CREAS, CAPS). Só se constrói corresponsabilidade quando se oferece suporte real, e não ameaças.

5. Considerações Finais: A Educação como Prática de Liberdade

A transferência compulsória, em sua essência, é a antítese do processo educativo. Enquanto a educação busca incluir, transformar e emancipar, a transferência punitiva exclui, estagna e segrega. Ela não é apenas pedagogicamente ineficaz; é eticamente indefensável em um projeto que almeje uma educação pública verdadeiramente democrática e de qualidade para todos.

A medida adotada pelo Paraná, embora embalada em um discurso de proteção e ordem, revela uma visão superficial e imediatista dos complexos fenômenos que ocorrem no espaço escolar. Ela culpa o aluno e sua família, eximindo o poder público de sua responsabilidade de fornecer às escolas condições plenas para um trabalho educativo que seja, de fato, transformador.

Investir em soluções fáceis e visíveis, como a transferência, pode até render manchetes positivas para um governo, mas o custo social é altíssimo: a naturalização da exclusão e a renúncia ao papel transformador da escola. O caminho é mais longo, complexo e menos populista, mas é o único validado pedagogicamente: investir massivamente em apoio socioemocional, formação de professores, redução do número de alunos por turma, práticas restaurativas e em um currículo que dialogue com a vida real dos estudantes. Só assim se construirá uma escola onde a indisciplina seja cada vez menos frequente porque a educação, de fato, terá cumprido seu papel.

A política de transferência compulsória implementada no Paraná não é um fato isolado ou um mero equívoco administrativo. Ela representa a expressão mais cristalina de um projeto político articulado que, sob a égide de uma aliança neoliberal-conservadora, promove o sistemático desmonte da educação pública brasileira. Este projeto, longe de ser acidental, é profundamente ideológico e encontra na escola pública seu principal campo de batalha.

5.1 A Aliança Neoliberal-Conservadora e a Metamorfose da Função Social da Escola

Como analisam Santos e Pereira (2024), há uma nítida articulação entre os princípios neoliberais e a pauta neoconservadora na agenda das políticas educacionais brasileiras. Esta convergência “intensifica o controle do trabalho docente e difunde uma concepção de qualidade da educação vinculada a interesses privados e dissociada de laços de solidariedade social”.

Neste contexto, a transferência compulsória é a ponta de um iceberg muito maior:

  • Plataformização do Ensino: A educação é reduzida a produtos e resultados mensuráveis, desprezando processos formativos complexos. O aluno “indisciplinado” é um anômalo que prejudica os indicadores de “eficiência” da escola-empresa.
  • Militarização: Imposição de uma disciplina autoritária e hierárquica, substituindo a construção democrática de normas coletivas pela obediência cega. A transferência é o corolário punitivo deste modelo.
  • Adoecimento Docente: Professores, espremidos entre a precarização das condições de trabalho e a pressão por resultados, veem na remoção do aluno conflituoso uma válvula de escape imediatista, porém vazia, que não resolve a raiz do problema.
  • Exclusão como Gestão: A segregação do “problema” para unidades periféricas é a solução gerencial barata para um conflito de natureza social e pedagógica. É a terceirização da exclusão educacional.

5.2. O Colapso Financiado: Austeridade como Projeto Político

Este modelo não opera sem condições materiais. Ele é viabilizado por um subfinanciamento crônico da educação pública, que beira o colapso. Como detalhado no artigo publicado no Brasil de Fato, intitulado “O colapso do orçamento da educação e a urgência de romper o ciclo da austeridade”, o governo federal, em 2025, “impulsiona o sucateamento das instituições federais de ensino” através de um decreto que libera apenas “1/18 do orçamento discricionário até novembro”, paralisando a máquina educacional.

Este estrangulamento orçamentário não é um acidente, mas uma estratégia política deliberada. Ao negar recursos para formar equipes multiprofissionais, reduzir o número de alunos por turma, investir em infraestrutura e formar professores, o Estado fabrica a falência da escola inclusiva. A transferência compulsória surge então como a “solução” precária e excludente para um problema que o próprio Estado ajudou a criar através do desinvestimento. É a profecia autorrealizável: a escola pública é sabotada para depois ser declarada “ineficiente” e “violenta”, justificando assim medidas autoritárias de “gestão de crise”.

5.3. A Escola como Mercadoria e a Commoditização do Direito à Educação

Sob esta lógica, a escola deixa de ser um direito social e um espaço de formação humana integral para se tornar uma mercadoria (commodity). Seu valor não é medido por sua capacidade de emancipação, mas por sua eficiência em produzir resultados padronizados e manter a ordem. Neste mercado educacional perverso, o aluno indisciplinado é um defeito de fabricação, um produto irregular que deve ser descartado ou realocado para o “estoque” das escolas periféricas, que funcionam como depósitos dessa nova linha de produção educacional falida.

O teórico Gaudêncio Frigotto ajuda a elucidar este processo. Ele argumenta que a “reforma empresarial da educação” impõe uma lógica mercadológica que subordina completamente o projeto formativo aos interesses do capital, esvaziando a escola de sua função crítica e transformadora. A transferência compulsória é um instrumento desta reforma, pois trata o conflito educacional não como uma questão pedagógica e social a ser resolvida coletivamente, mas como um ruído operacional a ser eliminado para que a “linha de produção” não pare.

5.4. Resistir é Defender uma Função Social Emancipatória

Portanto, a transferência compulsória no Paraná é muito mais que um erro pedagógico. É a sintomia de um projeto político que busca:

  1. Desresponsabilizar o Estado pelas condições objetivas que geram a violência e a indisciplina nas escolas;
  2. Culpabilizar individualmente o estudante e sua família pela sua própria exclusão;
  3. Segmentar e hierarquizar a rede escolar, criando guetos de excelência para poucos e depósitos de humanidade descartável para muitos;
  4. Esvaziar a função social da escola de formar cidadãos críticos, reduzindo-a a um aparato de controle e disciplinamento.

Este projeto, articulado entre o neoliberalismo que mercantiliza e o conservadorismo que moraliza, é o verdadeiro inimigo a ser combatido. Resistir à transferência compulsória é, assim, defender que a escola pública cumpra sua função social histórica: ser um território de emancipação, onde os conflitos da sociedade se manifestam e devem ser pedagogicamente transformados em diálogo, e não em exclusão. É lutar por um projeto de educação que entenda que a única disciplina verdadeiramente educativa é aquela que se constrói coletivamente, com dignidade, respeito e justiça social – nunca com violência, segregação e abandono.

Mordente (2023), em sua dissertação “Sobre voos e gaiolas: uma análise de processos de subjetivação em escolas democráticas”, argumenta que o modelo pedagógico hegemônico atual, opera através de processos de subjetivação baseados em massificação, serialização e individualismo, que são exatamente os mesmos princípios que sustentam a transferência compulsória.

A autora demonstra, a partir de pesquisas em mais de 30 escolas no Brasil, Portugal e Israel, que a educação democrática surge como contraponto a essa lógica, promovendo processos de subjetivação baseados em três analisadores fundamentais: singularização, autonomia e participação coletiva. Seu trabalho revela que:

  1. A singularização do sujeito é antagônica à padronização comportamental: Enquanto a transferência compulsória trata os estudantes como casos padronizados de “indisciplina” a serem administrados, a educação democrática valoriza as singularidades e contextos específicos de cada aluno, entendendo que o comportamento disruptivo muitas vezes é uma resposta a contextos de exclusão e não-aceitação da diferença.
  2. A autonomia se constrói com responsabilidade coletiva, não com segregação: Mordente mostra que as escolas democráticas bem-sucedidas não segregam os “problemáticos”, mas criam mecanismos de corresponsabilização onde os conflitos são resolvidos coletivamente. Esta abordagem gera autonomia com responsabilidade, diferente da pseudo-autonomia imposta pela transferência compulsória, que apenas isola e estigmatiza.
  3. A participação coletiva transforma o conflito em aprendizado democrático: Seu estudo revela que nas escolas onde os estudantes participam ativamente da construção das normas e da resolução de conflitos, os comportamentos disruptivos se transformam em oportunidades de aprendizado sobre democracia, cidadania e convivência. A transferência compulsória, ao contrário, nega qualquer potencial pedagógico ao conflito, tratando-o apenas como ameaça a ser eliminada.

A perspectiva de Mordente é particularmente relevante porque ela identifica como as lógicas neoliberais-empresariais na educação intensificam o controle sobre o trabalho docente e difundem uma concepção de qualidade educacional dissociada de laços de solidariedade social. A transferência compulsória é a expressão máxima desta lógica, onde a eficiência administrativa se sobrepõe ao projeto formativo e a educação perde sua função emancipatória.

Seu trabalho conclui que a verdadeira transformação educacional só ocorre quando rompemos com os modelos que reproduzem a “gaiola” do disciplinamento normativo e investimos em processos que permitam o “voo” da singularidade e da autonomia coletiva. A transferência compulsória, neste sentido, é a reafirmação das “gaiolas” institucionais, enquanto as alternativas restaurativas e democráticas representam a possibilidade de voos coletivos em direção a uma educação verdadeiramente emancipatória.

Esta perspectiva corrobora e amplia a tese central desta análise: a transferência compulsória não é apenas um equívoco pedagógico, mas a expressão de um projeto político que deliberadamente abandona o potencial transformador da educação em nome de uma gestão empresarial excludente e segregadora.

Este projeto, articulado entre o neoliberalismo que mercantiliza e o conservadorismo que moraliza, é o verdadeiro inimigo a ser combatido. Resistir à transferência compulsória é, assim, defender a escola como uma esfera pública democrática (GIROUX, 1997), um território de emancipação onde os conflitos da sociedade se manifestam e devem ser pedagogicamente transformados em diálogo, e não em exclusão.


REFERÊNCIAS

APP-SINDICATO. Nota da APP-Sindicato sobre a transferência compulsória de estudantes. Curitiba, 2024. Disponível em: https://www.appsindicato.org.br/nota-da-app-sindicato-sobre-a-transferencia-compulsoria-de-estudantes/. Acesso em: 10 set. 2024.

BALL, Stephen J. Educação global S.A.: novas redes políticas e o imaginário neoliberal. Ponta Grossa: UEPG, 2014.

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. 7. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2014.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990.

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Ligia Maria Bueno Pereira Bacarin 

Professora de História na rede pública de ensino. Com mestrado em Fundamentos da educação, pós-graduação em Educação Especial e doutorado em Fundamentos da Educação. Militante do Psol-PR e colaboradora nas mídias sociais da Geração 68.



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