A visita de Lula, acompanhado de ministros e de lideranças indígenas, à terra Yanomani, localizada em Roraima, em 21 de janeiro, lançou luz sobre o drama vivido por essa etnia. Não que ele fosse desconhecido. As más notícias têm aparecido amiúde na imprensa: o garimpo ilegal desmata e contamina as águas, yanomamis sofrem com desnutrição, garimpeiros estupram meninas e mulheres, líderes indígenas são assassinados. Nada disso, no entanto, ocupou manchetes ou perturbou o mercado.
O genocídio dos yanomamis teve início durante a ditadura. Por habitarem uma região muito distante e isolada, tinham sido poupados, até então, do contato com representantes do mundo tido como civilizado. No entanto, o projeto ditatorial visava povoar a Amazônia, como forma de impulsionar a economia. E para isso foram incentivados os movimentos migratórios rumo ao Norte, sem considerar a população indígena que ali vivia, como se isso fosse um mero detalhe. Vale lembrar que foi necessária uma Comissão da Verdade para iluminar as mortes de aproximadamente 8.300 indígenas de diversas etnias, causadas por violência e por epidemias severas.
A construção da Perimetral Norte, a BR-210, uma das estradas feitas para “integrar o país e promover o desenvolvimento”, levou a desgraça ao povo yanomani. Com os trabalhadores da estrada chegaram as doenças e a mortandade, diminuindo muito a população indígena. E com a estrada pronta foram chegando grileiros, garimpeiros, madeireiros, migrantes pobres da região Nordeste; mas também empresários rurais, com ambições políticas. A população não-indígena foi crescendo e a transformação do território em estado, com a Constituição de 1988, realizou os desejos de poder da classe dominante local, que tem funcionado como escudo para múltiplas ilegalidades. Até por isso, muitos desses “representantes” do povo têm sido alvos de processos e prisões por crimes diversos. Para eles, as terras indígenas são um obstáculo ao desenvolvimento. O genocídio, mesmo que isso não seja dito, se apresenta como solução. Sem povo, o território estará aberto à exploração sem limites.
A gestão criminosa de Jair Bolsonaro, que já em campanha prometeu não demarcar um centímetro de terra indígena e declarou apoio aos garimpeiros ilegais – admitindo que já foi um deles – teve em seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, um comparsa à altura, que não apenas acobertou crimes, mas deles participou de forma agressiva. Quem não se lembra do Salles posando sorridente diante de toras de madeira ilegal, cuja exportação facilitava? Nossa PF foi avisada pelos EUA do escandaloso fato e o delegado que o investigava foi afastado. É bem verdade que o ministro caiu, mas para nossa desgraça, foi eleito deputado federal por São Paulo. Enquanto isso o valoroso delegado Alexandre Saraiva, também candidato pelo Rio, não se elegeu e nem pode assumir posto no governo atual por carregar uma série de processos administrativos, decorrentes de ter prestado bons serviços.
O desmonte e aparelhamento da Funai, ICMBio e Ibama determinaram o agravamento de uma situação já dramática. Com a pandemia, a intervenção do STF obrigou o Estado a prestar assistência prioritária às populações indígenas, vulnerabilizadas e constantemente violadas em seus direitos. Mas todos sabemos o que houve durante a pandemia! O Ministério da Saúde foi entregue a militares incompetentes e corruptos que se alinharam ao negacionismo do chefe do Estado para promover medicamentos sem eficácia no combate à covid. As medidas de controle e proteção foram constantemente atacadas e os índices de mortalidade no Brasil superaram, em muito, a média mundial.
No ano de 1971, a fotógrafa Claudia Andujar, que chegara ao Brasil anos antes, profundamente marcada por perdas de familiares em campos de concentração, conheceu os yanomamis, num trabalho para a revista Realidade e, nas palavras dela, encontrou uma família. Caracterizou-os como um povo alegre, descontraído, que vivia a sua cultura tradicional. As fotos idílicas, publicadas pela revista, ilustraram livros didáticos e marcaram o fim de um tempo sem males. Logo essas imagens seriam substituídas por outras, captadas pelo mesmo olhar. Fotos tristes, que retratavam seres atingidos por sucessivas epidemias, trazidas pelo contato com os invasores. A fotógrafa se tornaria ativista, levaria a causa indígena a diferentes cenários, criaria uma comissão para denunciar violações, promover a defesa da população yanomami e lutar pela demarcação de seu território.
A demarcação da terra indígena yanomami, a maior do país, foi promulgada em 1992, graças a essa luta. O xamã Davi Kopenawa, considera Claudia sua mãe, aquela que o ensinou a lutar. Ela deu visibilidade aos yanomamis, contribuindo muito para a sobrevivência deles. Infelizmente, nada que um governo genocida não possa aniquilar em pouco tempo.
A presença de Sonia Guajajara, como ministra do recém criado Ministério dos Povos Indígenas, é fruto de uma luta travada ao longo dos últimos anos. “Aldear a política e reflorestar mentes” tem sido o mote dessa liderança da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil). Ocupar espaços de poder, criar a bancada do cocar é uma alternativa que visa adiar o fim do mundo, para citar Ailton Krenak, outra liderança indígena que desde sua perfomance na Assembleia Constituinte nos assombra e encanta pela potência denunciatória. Aquela sua esperança de que existe dignidade, de que existe uma sociedade que pode respeitar os mais vulneráveis, talvez tenha sido o alicerce para que a candidatura Lula tenha sido assumida por uma frente ampla pela democracia. Os indígenas sobreviventes do genocídio continuado nunca foram obstáculos ao desenvolvimento. Pelo contrário, foram vítimas. Hoje, são aliados para conter a crise climática, que ameaça a existência humana no planeta.
As fotos chocantes dos yanomamis feitas durante a visita de Lula e ministros nos comovem e nos revoltam. Estão correndo o mundo. Dói no coração mirá-las. Muitas ações e medidas serão tomadas para que tenhamos, pelo menos, flashs que mostrem que essa crise humanitária está sendo enfrentada. O Fundo da Amazônia vem em boa hora. Pôr a mão nessa ferida aberta, para tratá-la, com 21 dias de governo, é bom sinal.
Aqui, agora, algumas fotos dos yanomamis feitos por sua mãe, Claudia Andujar. A beleza e o bem comum podem ser esmagados pela ambição sem limites, pelas ditaduras que violam os direitos humanos, por governos genocidas que se associam ao crime. Quando o Estado brasileiro pedirá perdão por estar à frente ou conivente com o genocídio de sua população originária?

Foto: Claudia Andujar

Foto: Claudia Andujar

Foto: Claudia Andujar

Foto: Claudia Andujar

Foto: Claudia Andujar
Rose Teles é professora aposentada, de Língua Portuguesa e Literatura, da rede públida estadual (SP), militante do PT, artivista do coletivo de bordados políticos Linhas do Mar, de Caraguatatuba, Litoral Norte, São Paulo.


Deixe um comentário