Diante dos enormes desafios que o país terá que vencer para superar o atraso educacional, o desemprego e a desindustrialização questionamos qual o papel da educação nesse processo e que modelo de educação desejamos instaurar para dar conta de tão grande tarefa. Obviamente, não será com um rápido artigo que iremos encontrar respostas para tão graves questões. A proposta aqui é abrir o debate franco e honesto, haja vista que muita tinta já foi gasta analisando tal temática complexa e conflituosa.
Não é novidade o grande interesse do capital privado em interferir nas políticas públicas de educação e também não é prerrogativa do Brasil. Internacionalmente, sob a égide da ONU e do Banco Mundial, e já de algumas décadas, estes organismos supranacionais buscam intervir nas políticas educacionais dos países tidos como “em desenvolvimento” a partir de empréstimos e consultorias tendo como contrapartida a formulação de políticas educacionais, segundo suas concepções neoliberais. Isto quer dizer, entre outras coisas, que o modelo de consultoria adotado concebe o educando como um “cidadão empreendedor”, interfere na construção dos currículos, apregoa a redução do papel do Estado na sociedade, defende a desregulamentação da economia, influi nas relações de trabalho por meio de incentivo às reformas trabalhista e previdenciária. Nada de novo no front, uma vez que pudemos observar todas essas concepções e políticas sendo implementadas no Brasil, especialmente na última década.
No Brasil, conforme atestam especialistas, pesquisadores, organizações estudantis e sindicatos dos trabalhadores em educação, o risco de mercantilização da educação é real e parece mais próximo do que gostaríamos. As políticas educacionais estão sob forte influencia e intermediação de setores importantes do capital privado. Como bem coloca o Coletivo Juntos (grupo de jovens organizados em escolas, comunidades, universidades) “os alertas estão piscando, a educação não deve estar no balcão de negócios de Jorge Paul Lemann, o maior magnata do país.”
E por falar em Jorge Paul Lemann, é bom lembrar que ele aparece envolvido no escandaloso rombo das Lojas Americanas por ser um dos grandes acionistas deste e de outros grupos empresariais de grande peso nacional e internacional, como a Ambev. Banqueiro, considerado em 2019 o segundo capitalista mais rico do Brasil, Lemann está por trás da privatização da Eletrobrás e é criador da Fundação Lemann em 2002, voltada para educação e filantropia. Será? Segundo consta, essa Fundação oferta bolsas de estudos em famosas universidades fora do país e almeja melhorar a educação pública. Perguntamos novamente: será? Entre os pupilos mais conhecidos da Fundação Lemann estão os deputados federais Tabata Amaral, Felipe Rigoni e Tiago Mitraud, eleitos em 2018. Estudaram em universidades como Harvard, Oxford e Yale, custeados pela Fundação Lemann. E, adivinhem? Todos votaram favoravelmente em projetos de interesses do mercado nas votações em plenário.
Desde 2012 a Fundação Lemann esteve diretamente envolvida na criação da nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que define todos os currículos educacionais em todas as escolas do país. Conseguiu que em 2017, sob o governo Michel Temer, essa BNCC fosse aprovada, apesar dos protestos dos educadores e especialistas da área.
Uma observação certeira do Coletivo Juntos atesta que: “A disputa da educação é também uma disputa de modelo de sociedade, pois, como subsistema do capitalismo, é desenvolvida para a manutenção do seu modo de produção e para formar gerações a partir de princípios éticos e morais.” Sendo assim, o modelo proposto por esta Fundação e similares (Todos pela Educação, Fundação Bradesco, Fundação Estudar etc) se fundamenta nos paradigmas neoliberais de gestão empresarial, de incentivo ao empreendedorismo e ao individualismo, de valorização da meritocracia, de privatização das estruturas escolares e universitárias, de criação de ranking escolar, de homeschooling (ensino domiciliar), de escolas cívico-militares, oferecendo espaço para o surgimento do malfadado projeto conhecido como “Escola Sem partido”.
Outra questão importante é a do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) detentor de valiosos recursos muito cobiçados pela iniciativa privada. Somente para 2023, estima-se recursos na ordem de R$ 263,2 bilhões, sendo que o valor anual mínimo por aluno Fundeb (VAAF-MIN), definido nacionalmente para o ano de 2023, é de R$ 5.208,46 e o valor anual total mínimo por aluno (VAAT-MIN), também nacionalmente definido, fica estabelecido em R$ 8.180,24, de acordo com a Confederação Nacional dos Municípios. Ora, diante destes valores, a cobiça do capital privado, em sua ânsia inesgotável de expansão, fica justificada.
Os problemas começam quando há uma inaceitável ingerência na gestão e definição de políticas públicas por parte destes organismos privados. Esta ingerência não acontece necessariamente de forma impositiva sobre os governos. Ocorre aquilo que Rebecca Tarlau e Kathryn Moeller (2020) – no artigo intitulado O consenso por filantropia: como uma fundação privada estabeleceu a BNCC no Brasil -, denominam de “consenso por filantropia”: ele se dá pela via da influência política e midiática, para obter o consenso entre gestores e governantes públicos, evitando assim o confronto. Embutido nessa ingerência não há apenas o desejo de lucro; há especialmente a intenção de ajustar o modelo escolar aos pressupostos neoliberais.
Essa discutível ingerência passa também por avaliações meritocráticas do desempenho escolar, pautadas em modelos de gestão comercializados por estas organizações, incluindo-se aí material didático, formação profissional, organização curricular. Um exemplo dos riscos e do alcance que esta ingerência pode atingir reside no fato das fundações de Lemann terem financiado líderes do MBL e do movimento Vem Pra Rua, organizações que participaram dos protestos antigovernamentais em 2013 e pavimentaram o caminho para o golpe jurídico-parlamentar de 2016.
Diante disso, soa ameaçador que o MEC, sob a nova direção de Camilo Santana, assuma esses riscos ao colocar nos postos chaves do segundo escalão do ministério uma rede de intelectuais orgânicos do capital privado. Conforme denuncia a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE), há “predominância de indicações alinhadas às pautas defendidas por fundações empresariais que não mantêm quaisquer elos com os movimentos sociais que deram sustentação à eleição do atual governo, mas que têm orientado decisivamente a política ministerial.” Estas fundações mantêm um território bem demarcado no MEC, indicando gestores, consultores, membros dos comitês etc. Desta forma, mantêm grande influência nas decisões tomadas pelo ministério. Além de usar o sistema público para fomentar concepções neoliberais, preparando novas gerações para aceitação dócil desta visão de mundo, há também o projeto intrínseco de privatizar amplamente o ensino básico, se apropriando dos recursos do FUNDEB.
São muitos os riscos iminentes, e os problemas reais, já existentes, são tantos e tão complexos que não seria possível abordar neste artigo. Aqui pretendemos chamar atenção para as escolhas políticas que os gestores indicados pelo novo governo precisam/devem fazer para dar conta da problemática educacional brasileira, país com pouco incentivo à pesquisa e à ciência, com incomensurável desigualdade social, com vastos bolsões de pobreza, com graves sequelas sociais resultantes da pandemia e com altos índices de abandono escolar e analfabetismo, além do processo acelerado de desindustrialização e desemprego. Frente a esse quadro, postulamos por uma educação pública, gratuita, inclusiva, de qualidade e socialmente referenciada. Uma educação com a qual os paradigmas neoliberais não se coadunam.
Já no início do novo governo lhe foi entregue uma CARTA DA EDUCAÇÃO INTEGRAL, PÚBLICA E DEMOCRÁTICA AO PRESIDENTE LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA E AO MINISTRO DA EDUCAÇÃO CAMILO SANTANA, tendo dezenas de educadores e suas entidades representativas e sindicais como signatários, onde estão registrados as esperanças e os projetos de uma educação integral em moldes inclusivos e de perfil democrático.
Por tudo isso, referendamos o que diz a Carta de Maceió (2000), resultante do XXIX Encontro Nacional CFESS/CRESS (Conselho Federal de Serviço Social e Conselhos Regionais de Serviço Social), que defende a ampliação da ideia de Seguridade Social Pública na qual, além da Assistência Social, da Previdência e da Saúde, estejam incluídas outras áreas fundamentais tais como Moradia, Lazer, Segurança, Trabalho e Educação. Pode soar como um sonho impossível, mas que o seria das lutas e conquistas no campo dos direitos políticos e sociais sem os sonhos aparentemente impossíveis?
Isabel Perez: Assistente Social, professora universitária, mestre e doutora em Educação. Compõe a equipe de redes sociais do Movimento Geração 68.



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