“Dona Regina, fui eu quem sequestrou o embaixador.” Margarida dos Santos Rilas, a Gaída, foi babá de meu tio Domingos Álvares de Azevedo Sodré, filho temporão de meus avós maternos, Fábio de Azevedo Sodré, deputado federal pelo Rio de Janeiro em 1934 e Irene Lopes Sodré, ambos bisnetos do Visconde de Mauá. Depois de cuidar do tio Domingos, a Gaída foi adotada pela nossa família quando minha avó morreu e ela foi morar com o meu avô.
Gaidinha tornou-se uma querida figura da família, a única avó que tivemos por perto, já que a paterna vivia na Suíça. Veio de Paraty muito nova para trabalhar na fazenda da minha avó, o Engenho do Mato, hoje um bairro de Niterói. Depois de cessarem as suas funções de babá ela ficou “agregada”, costurando para todos nós, da minha mãe a todos os cinco filhos. E fazendo doces, sua segunda especialidade. Usei camisas, calças e cuecas costurados por Gaída até os 18 anos, quando passei a comprá-los. Diria que as roupas das lojas da moda não eram melhores do que os produtos caseiros, apenas tinham grife.
Não sei que idade tinha aquela figura tão carinhosa e doce. Ela tinha suas preferências entre os cinco filhos da minha mãe e eu não estava entre elas. Mas Gaída não deixava de dar carinho a cada um de nós, apesar do amor mais evidente pelo meu irmão Jean Pierre. Talvez, como ela dizia, porque ele era tomado por “nervi”, ou a forma como ela descrevia os acessos de raiva do meu irmão mais novo.
Gaída nunca saía de casa, embora tivesse os fins de semana livres. Dormia no mesmo quarto de minha irmã Betty e roncava horrores, segundo a maninha. Não tinha relações, senão muito esporádicas, com a família dela, que tinha vindo de Paraty para Nova Iguaçu, em geral para pedirem o dinheiro do salário que ela guardava no colchão.
Com esta vida isolada que só se relacionava com o mundo através do rádio, Gaída era um personagem da nossa paisagem familiar que, no fundo, não conhecíamos. Nunca fiquei sabendo como é que ela comprou um loteamento no céu, próximo do trono de Jesus. Um dia encontrei na porta dos fundos do nosso apartamento na Barão de Icaraí, 44/22, no Flamengo, um cobrador da prestação perpétua deste lugar privilegiado no além.
Desconfiando do personagem, interroguei a Gaidinha e fiquei sabendo da falcatrua. Eu devia ter uns 16 anos e não tinha a necessária sabedoria para não a decepcionar e botei o tipo para correr. Ela ficou tristíssima ao descobrir que tinha sido enganada, mas acho que não me agradeceu por ter revelado a falcatrua. Devia ter deixado que continuasse acreditando que tinha um lugar privilegiado junto a Deus, mas fiquei orgulhoso da minha façanha, desmascarando o pilantra que eu nunca soube como tinha conseguido enganar a minha babá que nunca se encontrava com ninguém.
Pois bem, quando me meti na política estudantil e virei a vida da minha família pelo avesso, a Gaída passou a me ver como um paladino dos pobres e oprimidos. Depois que fui preso pela primeira vez em junho de 1968, um troglodita, coronel do Exército chamado Helvécio Leite, passou a ligar para a minha casa para tentar aterrorizar a minha família. Depois de uma destas ligações encontrei a Gaída aos prantos, em pânico depois de ter atendido a chamada do coronel ameaçando de mandar me matar. Na chamada seguinte passei uma descompostura no coronel por aterrorizar a minha doce babá e o idiota parou com as chamadas.
Pouco tempo depois, a barra pesou e eu fui condenado pelo tribunal militar e fui para a clandestinidade. Nunca mais vi a minha querida Gaidinha, que morreu antes que eu voltasse do exílio. Na parede dos apartamentos em que morei na França tinha pendurada uma foto, tirada pelo meu irmão Roger, com a Gaidinha fazendo as deliciosas cocadas que tanto nos encantavam. Não sou de chorar, mas uma das poucas vezes em que o fiz foi quando chegou uma carta da minha mãe, dizendo que ela tinha partido para o além, quem sabe buscando o lugar privilegiado a que tinha direito pela bondade.
Quando estava preso na Ilha das Flores, toda semana meus pais me levavam coisas de comer e sempre havia um docinho mandado pela Gaída. Segundo me disse depois a minha mãe, a Gaída sofria muito com a minha situação e rezava pela minha libertação. Ao ser anunciado o sequestro do embaixador suíço e o pedido dos revolucionários da VPR com uma lista de militantes a serem libertados em troca do personagem, Gaída entrou em pânico. O Rio de janeiro vivia sob o terror das ações dos militares, revistando gentes e procurando o local onde estaria escondido o embaixador. Foi neste momento que Gaída se abriu com a minha mãe e disse: “fui eu quem sequestrou o embaixador”. Mamãe pensou que Gaidinha tinha ficado gagá, mas perguntou como ela tinha feito isso. “A senhora lembra que eu pedi um fim de semana de licença há dois meses atrás?” Mamãe tinha estranhado muito este pedido, pois Gaída nunca tinha saído de casa ao longo de mais de cinquenta anos, mas respeitou o pedido sem outras perguntas. “Decidi soltar o nosso menino e fui para Paraty encontrar uma figura poderosa que eu conhecia quando lá morei. Paguei por um despacho um galo preto, um bode preto e um porco preto e ela me garantiu que em dois meses a pessoa estaria livre.” Embora não tenha sido registrada a informação sobre quem era a entidade para a qual ela apelou, desconfio que se tratava de Exu. Pouco tempo depois, deu-se o sequestro e o pedido da minha libertação e Gaída ficou convencida que ela tinha gerado toda aquela confusão, e estava com medo de ser presa como comunista. Não sei como mamãe lidou com esta situação, mas quando voei para Santiago para ser libertado a Gaída ficou orgulhosa do seu feito e aliviada por não ter sido presa pelo sequestro.
Os compas da VPR nunca souberam, mas quem comandou o sequestro foi Gaída. Não apenas por terem soltado 70 presos, mas por terem me incluído no grupo. Sempre me intrigou ter sido parte da lista da VPR. Afinal, eu poderia ter sido solto na lista dos 40, trocados pelo embaixador alemão, mas não o fui. Por que no do suíço? Segundo o Alfredo Sirkis, quando a lista foi discutida no comando que fez o sequestro, ele propôs o meu nome e ele foi recusado por 10 ou 9 a 1. A decisão final foi do Lamarca e ele decidiu incluir o meu nome como um gesto para os suíços, já que eu tinha dupla nacionalidade, era meio suíço e meio brasileiro. O fato de que eu era presidente da UNE não teve a menor importância. Fosse qual fosse a razão, eu entrei na lista e os orixás mobilizados pela Gaída devem ter tido um papel na decisão do Lamarca.
Sou muito grato à Gaída e ao Lamarca pela escolha, que não só me poupou de uns cinco anos, pelo menos, de cana, mas deu um sentido à minha vida que não teria sido possível se tivesse ficado para trás.
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Jean Marc von der Weid
Ex-presidente da UNE (69/71)
Preso político entre setembro de 1969 e janeiro de 1971
Banido pela ditadura até a anistia de 1979.





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