Março de 1973, eu estava preso no DOI-CODI / SP, juntamente com outros mais de 40 trabalhadores, estudantes, professores, donas de casa. Para quem nunca ouviu falar, DOI-CODI era a sigla de uma organização do Exército brasileiro criada com a finalidade de prender, torturar, destruir inimigos ou não amigos do regime militar que vigorava no país naqueles tempos. Traduzindo: era um centro de torturas e aniquilação de “inimigos” do regime!
Naquele espaço valia tudo, menos respeitar Direitos Humanos e direitos Individuais. Ali atuavam agentes preparados e treinados para destruir os seres humanos que ousassem discordar de qualquer coisa no Brasil, que desagradasse aos inimigos do regime.
Eu entrei lá em 01 de março de 1973, há exatos 50 anos, e logo entendi o método que quiseram me impor: a destruição física, moral, intelectual, ética, minha e de todos que porventura me cercassem, mesmo que de modo distante; até meu pai morto há 3 meses fazia parte do jogo deles, imaginem o resto!
Para eles, as primeiras 48 horas após a sua prisão, eram decisivas e valia tudo. Pau de arara, cadeira do dragão, palmatória, choques, tapas, chutes, gritos, roleta russa (praticada pessoalmente pelo demônio chefe Ustra) contra minha cabeça, enquanto eu era torturado por dois ou três…Mas isso não acontecia só contra mim, acontecia o tempo todo, contra todos os que lá estavam. Os gritos deles e os meus eram lancinantes, dia e noite. Não tinha hora para você ser chamado para mais uma sessão, era um entra e sai das celas dia e noite. Nós já estávamos condicionados, às 2h da manhã, por exemplo, ao ouvir passos e a palavra Rapazinho (nome que a repressão me deu), já levantava e ia cumprir meu destino…
E por que conto isso?
Primeiro, é dificílimo exprimir em palavras, mesmo 50 anos após, as emoções, as dores, as marcas, os horrores que todos os que passaram por lá, viveram. Mas para descrever o que vou contar a frente, é preciso colocar o leitor em desconforto para, pelo menos, imaginar a sucursal do inferno onde estávamos. Segundo, para relatar a todos que, conforme constatado e provado pela Comissão da Verdade, naquele local além das sequelas deixadas, muitos de lá saíram sem vida, muitos desses a família sequer teve o direito cristão de enterrá-los e, a muitos outros, a família só teve o direito de enterrá-los muitos anos após sua morte, como o caso que relatarei abaixo.
15 de março de 1973:
A rotina no cárcere seguia idêntica, torturas, gritos, desespero, quando a música dos carcereiros aumentou, mais uma grande festa entre os torturadores, portas batiam freneticamente,… era o sinal de que mais um preso estava chegando. Chegou, e como todos os outros recém chegados, logo entrou na emergência das primeiras 48 horas e foi torturado barbaramente, seus gritos eram horríveis, e essa tortura varou a noite, entrou no novo dia e lá pela hora do almoço do dia 16/03, a ele foi apresentada a cela forte – a solitária.
Enquanto isso, nesse dia 16/03, nós, que estávamos presos no corredor de celas em frente à cela forte, fomos todos transferidos para as celas ao seu lado. Eu logo entrei na cela imediatamente ao lado da cela forte pela conveniência de acertar depoimentos com um companheiro de lutas, antes que alguém percebesse esse movimento, e lá fiquei. Perceberam depois, mas já era tarde!
Sabíamos que o recém chegado tinha ligações com a ALN e nada mais, informação trazida pelo Vergatti, liderança de nosso partido que virava e mexia estava sendo acareado com alguém, numa frequência maior que a nossa.
17 de março de 1973
A noite tinha sido de muitas torturas para nosso colega de cárcere recém-chegado, torturado a exaustão foi trazido carregado para a cela solitária por volta das 10/11 horas. Naquele dia nos permitiram que saíssemos para tomar sol no pátio em frente às celas e, eu e o amigo JP nos postamos a frente da cela solitária onde estava aquele companheiro. Ele nos olhava pela pequena janelinha da porta de aço e nós o olhávamos, trocando olhares como se quiséssemos achar um espaço para nos comunicarmos, até que…
Um irmão meu, muito “sem noção”, tentou me visitar no DOI/CODI e, enquanto estávamos no pátio, um carcereiro chegou com uma caixa em formato de circunferência de uns 40 cm, repleta de bombons de cereja com licor e me disse: Seu irmão iria visitá-lo, mas devido a situação agitada aqui (leia-se torturas no Alexandre, além de que aguardavam novas prisões a qualquer momento), não pôde. Deixou essa caixa para você. Quando eu vi do que se tratava, depois de fazer joça com a ideia estapafúrdia do meu irmão de trazer aquilo para um preso, sai distribuindo chocolates para o povo que estava preso e, ao perceber que os carcereiros estavam confusos, fui direto ao rapaz da solitária.
Nessa hora travei um rápido diálogo com ele, vi-o com o rosto machucado, achei-o mais novo que eu, entreguei o chocolate em solidariedade e os carcereiros me empurraram rapidamente de volta para a minha cela, proibindo-me de ampliar o diálogo com aquele rapaz. Esse episódio fugaz, que nada tem de heroico ou significante, só tem um sentido de ser contado: o episódio aconteceu entre 12 e 13 horas do sábado, 17/03/1973 e foi o último contato daquele rapaz com um ser humano.
17 de março de 1973 – 15/16 horas (as horas são estimadas)
Novo bater de portas, música aumentada, festa na carceragem, sinal de que mais um preso entrava no DOI/CODI. Hoje sei que era o companheiro Adriano Diogo. Passados alguns minutos, vieram buscar o rapaz, que hoje sabemos se chamava Alexandre Vannucchi Leme, estudante da Geologia da USP e que daqui para frente tratarei pelo seu nome em respeito a ele e aos seus familiares, mas que eu só vim a saber o seu nome após a missa do dia 30/03.
Eu estava na grade da cela imediatamente ao lado da solitária, quando vieram buscar o Alexandre e o encontraram morto. Ele morreu lá, sozinho, sem nenhum apoio. Descoberta a morte do Alexandre, em total desrespeito ao morto, encenaram um suicídio, vieram falando nas celas que o Alexandre tinha se suicidado por material cortante, nos jogaram no fundo das celas, revistaram nossos poucos pertences em busca de materiais cortantes e ao não encontrarem nada, entraram na solitária e puxaram o Alexandre pelos pés, com a cabeça e o tronco arrastando pelo chão para dentro do prédio principal do DOI/CODI. Esse é o fato, a montagem da Rua Bresser, apresentada em nosso julgamento na 1 ª JM SP era fantasiosa e montada, era mais uma tentativa de encobrir que eles assassinaram o Alexandre, como consequência das intensas torturas infringidas a ele, e não se sustenta porque a versão dada apontou como horário em que a ocorrência montada se registrou, um momento em que o Alexandre estava vivo na minha frente, e eu e muitos companheiros vimos quando ele foi retirado morto da cela solitária.
Após a retirada do Alexandre da solitária, os carcereiros jogaram vários baldes de água no espaço e lá jogaram o companheiro Adriano Diogo, em mais um ato de extrema crueldade.
Eu estava lá.
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Amaury Monteiro Junior, engenheiro civil, militante ambientalista, presidente Conselho Deliberativo Engenharia pela Democracia, participante da Comissão Facilitadora do Geração 68.



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