MEMÓRIAS | “Peripécias” – Jean Marc von der Weid

“Es usted suisso o brasileño”? A pergunta me pegou de surpresa. Tinha testado o meu espanhol em várias ocasiões e sempre os meus interlocutores me perguntavam se era chileno ou argentino. Brasileiro? Nunca.


O meu questionador era o general que comandava a empresa de petróleo da Bolívia Yacimentos Petroliferos Fiscales. Na ditadura de outro general, o Banzer, os oficiais do exército ocupavam quase tantos postos do governo, quanto no Brasil de Bolsonaro.

Corria o ano de 1974, mês de março. Estava na segunda etapa de um longo recorrido que começou em Buenos Aires, em fevereiro. Estava a caminho de volta para a França, depois de atravessar o golpe de Pinochet no Chile e uma tentativa de morar na Argentina, que durou uns 4 meses. Trabalhei como jornalista improvisado para uma revista de esquerda em Buenos Aires, ajudado por um amigo da esquerda Montonera, o professor Pepe Num, sociólogo. A direita em ascenso no governo de um Perón sombra de si mesmo, com uma Isabelita querendo ser Evita a seu lado, botou uma bomba na sede da revista, Pepe se mandou para o Canadá e eu fiquei no sal. Resolvi que não daria para ficar quando os militares argentinos, em apoio aos seus aliados brasileiros, sequestrou três companheiros do nosso grupo dos setenta banidos do Brasil e os mandou clandestinamente para morrer em alguma masmorra até hoje não identificada em território nacional.


Os brasileiros e outros refugiados do golpe chileno que estavam na Argentina tiveram o apoio da Agencia para Refugiados das Nações Unidas, ACNUR, que pagou as passagens para a Europa. Como cidadão suíço (tenho dupla nacionalidade e tinha um passaporte deste país), eu não tinha direito ao auxílio. Podia ter usado os recursos do meu partido, Ação Popular, e comprado uma passagem para Paris, mas preferi pagar a minha volta escrevendo artigos para um jornal suíço, onde um grande amigo conseguiu uma carta me credenciando como articulista.

Decidi contornar o Brasil, viajando por terra pela América Latina. Interior da Argentina, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela e México. Daí segui para os Estados Unidos e Canadá, antes de embicar de vez para a Europa. Preparando a viagem, fiz uma série de entrevistas com vários refugiados destes países que tinham ido parar em Buenos Aires, depois do golpe do Chile. Levantei pilhas de contatos em cada país e outros tantos documentos sobre a política, economia e sociedade dos países que pretendia visitar. E parti de trem para Córdoba, primeira etapa da viagem.


Em La Paz, me hospedei em uma pensão que ficava bem em frente ao regimento Tarapacá, peça chave no golpe de Banzer. Encontrei com gente clandestina do MIR, sindicalistas de vários setores, intelectuais. Entrevistei até um dos responsáveis pela segurança do próprio general Banzer. Era um tipo com cara de bandido que morava na mesma pensão e que eu via todos os dias no café da manhã. O dono da pensão era um velho espanhol que tinha escapado da derrota na guerra civil de 36/39 e ido dar com os costados em La Paz. O velho me viu lendo um livro sobre a guerra civil e puxou papo sobre o assunto.

Ficamos amigos e foi ele quem me identificou o segurança do Banzer e me sugeriu entrevistá-lo para a minha revista. Não gostei da ideia porque parecia de alto risco, mas aceitei para não gerar desconfianças. O tipo ficou envaidecido e deu uma longa entrevista, contando o golpe e a repressão contra a esquerda e até me convidou para uma festa no palácio, aniversário da filha do ditador, se bem me lembro. Achei que era tentar a sorte demais e dei um jeito de recusar.


Estava por partir para o Peru, quando li no jornal que o governo boliviano tinha assinado um acordo com o brasileiro para a exploração de gás natural e decidi que era uma matéria interessante. Fui para a sede do YPF na cara de pau e pedi uma entrevista com o presidente. Tudo na Bolívia era meio “familiar”. Todo mundo se conhecia e não havia uma hierarquia pesada como no Brasil. Depois de alguma espera o general me recebeu e logo me dei conta de que tinha dado um passo demasiado arriscado. O tipo tinha uma cara de poucos amigos, recusou a minha mão estendida e me pediu secamente as minhas credenciais. Depois de ler a carta ou a tradução em espanhol que tinha imprimido, partiu para a ofensiva.


“Es usted comunista”? Engoli em seco, fiz uma cara de surpresa e respondi: “comunista? Claro que no. Periodista”.

“Todos los periodistas son comunistas”, afirmou ele.

“No em Suissa”, respondi.

“Ah, si? E em Francia?”. “En Francia hay de todo, pero la mayoria de los periódicos son conservadores”.


O general abriu uma gaveta e sacou um recorte de jornal e me mandou lê-lo. Era um artigo do jornal de direita Aurore, de Paris. O articulista metia o pau na ditadura boliviana, falando de torturas e assassinatos de presos políticos.


“E que le parece? No es comunista”? Respondi que estava surpreso com o tom do artigo porque o jornal era um dos mais conservadores da França. E disse que o meu interesse não era por política, mas por economia e que estava curioso com o acordo com a Petrobras para a exploração do gás.


Foi nesse momento que ele fez a fatídica pergunta que iniciou este artigo.


Apesar de manter uma cara de jogador de pôquer, senti uma gota de suor descer pela minha espinha e pensei: o medo é isto, uma gota de suor escorrendo pelas costas. Por sorte não foi no rosto que ela escorreu.


“Porque brasileño?”.

“Habla usted muy bien el español, pero hay um arrastre de português en tu pronúncia”.

Expliquei que tinha aprendido português antes do espanhol, quando visitei o Brasil anos atras. E perguntei como tinha percebido, já que nunca tinham me vinculado ao Brasil antes.


“Vivi en Rio de Janeiro por um año, estudiando en la Escuela Superior de Guerra y hablo português perfecto”. Rezei para ele não passar a conversa para o português, pois não há nada mais difícil do que falar mal o seu próprio idioma, mas ele seguiu o interrogatório em espanhol.


“Y que le parece Brasil”? Fiz um longo discurso sobre o milagre econômico dos militares, sobre o carnaval e as mulheres brasileiras, enquanto ele me olhava cada vez mais desconfiado.


“Da-me el passaporte”, ordenou secamente. Estou frito, pensei, mas não tinha alternativa. Ele folheou o documento, que tinha múltiplas entradas em muitos países, inclusive nos Estados Unidos.


“Este passaporte ha sido emitido en Chile. Porque”? Expliquei que tinha ido cobrir as eleições de 1970 e a posse de Allende e que tinha perdido o anterior. O passaporte suíço, felizmente, não diz onde você nasceu, no meu caso no Rio de Janeiro, mas a comuna de origem da sua família, no meu caso Fribourg.


Ainda desconfiado o general, verdadeiro cão policial farejando comunistas, perguntou: “escribió usted artículos sobre Brasil?” Quando confirmei ele disparou: “soy muy amigo del adido militar brasileño. Voy llamarlo para perguntar si tiene informaciones sobre usted”.


O outro sintoma do medo apareceu na forma de uma contração do estômago. Mantive a cara de pau e assisti o general discar para a embaixada brasileira. “Está el coronel fulano? Habla el general cicrano”. Para minha sorte o coronel tinha saído para almoçar e só voltaria às 4 da tarde. O general pediu que o chamasse assim que regressasse e desligou.


“Vuelva a las quatro y, si el coronel te abona, concederé la entrevista”. Engoli o suspiro de alívio e me despedi do general.


Saí zonzo da YPF e voei para a minha pensão, recolhi minha malinha e a máquina de escrever e pensei em qual seria a melhor rota de fuga. O coronel certamente ia lembrar de quem eu sou, nem que seja pelo nome diferente. Se pusessem a mão em mim, eu estaria a caminho do Brasil no primeiro vôo e com o destino fatal da “ponta de praia”, ou uma casa da morte onde tantos desapareceram. Buscar o aeroporto me pareceu arriscado, pois seria a primeira providência que tomariam, vigiar os vôos para o exterior. Fui para a rodoviária e tomei um ônibus para Cusco. Lembro do nome da empresa até hoje: Morales y Moralitos. Sete horas depois estava na fronteira com o Peru, em um lugar perdido nas montanhas a 4 mil metros de altitude. Ninguém estava de tocaia à minha espera e passei para o lado peruano só para ficar apreensivo com um cartaz de procura-se, onde a cara de um dos meus entrevistados em Buenos Aires estava retratada, anunciando que se tratava de perigoso terrorista. Era Hugo Blanco, líder da guerrilha do MIR peruano e eu tinha uma carta dele para o irmão em Cusco. Mas passei incólume por uns guardinhas sonolentos e meu ônibus seguiu caminho.

Foi uma viagem desconfortável, mas estava eufórico por ter escapado de um cruel destino, por puro excesso de confiança.

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Jean Marc von der Weid
Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971
Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983
Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016
Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta


Respostas

  1. Avatar de judite maria barboza trindade

    Muito bom este relato de memória. Estou entusiasmada com o crescente número de memorias que surge a cada dia, no Movimentos Geração 68.

  2. Avatar de Bernardete Wrublevski Aued

    relato incrível. precisa ser divulgado para que a juventude conheça!!!
    Bernardete

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