AGRO É TECH, AGRO É TUDO, MAS NÃO É POP – ISABEL PEREZ

Em final de fevereiro deste ano, no decurso de menos de uma semana, ficamos sabendo de dois episódios deploráveis, aparentemente dispersos e sem ligação entre si, mas que na verdade têm como base a forma de produzir de uma parte do agronegócio brasileiro. Em geral, o agronegócio se estrutura em grandes latifúndios, utilizando maquinário moderno que depende de poucos trabalhadores diretos; recebe incentivos fiscais para produzir; exporta quase tudo que produz, ao tempo em que importa volumes consideráveis do que chamam de “defensivos agrícolas”, além de fertilizantes. Entretanto, além destes aspectos, segmentos do agronegócio não hesitam em lançar mão do trabalho análogo ao escravo em suas lavouras e abatedouros, ou em produzir impactos ambientais deletérios ao meio ambiente por meio do uso exacerbado de agrotóxicos.

No primeiro episódio[i], divulgado em 23 fevereiro, uma operação conjunta entre Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) com o Ministério Público do Trabalho (MPT-RS), a Polícia Federal (PF) e a Polícia Rodoviária Federal resgatou cerca de 200 trabalhadores em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves/Rio Grande do Sul. A maioria destes trabalhadores são egressos da Bahia e foram convocados para atuar na colheita de uvas e abate de frangos. Lá chegando foram submetidos a torturas e passaram fome.

Dormindo em alojamentos insalubres, com atrasos no pagamento de salários, executando jornadas exaustivas, submetidos a violência física, alimentação péssima e até passando fome, um dos trabalhadores denunciou que recebiam castigos com choque elétrico e spray de pimenta[ii]. Por trás destas práticas abomináveis estariam marcas famosas fabricantes de vinho e suco de uva sulistas tais como Salton, Garibaldi e Aurora.

Pelo visto, a escravidão em algumas regiões do Brasil ainda não acabou, tendo a denúncia se tornado ainda mais grave desde que o Centro da Indústria, Comércio e Serviços (CIC) de Bento Gonçalves veio a público afirmar que tal situação ocorre por falta de mão de obra local, em virtude de se manter “um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”.[iii] Ou seja, justificou tal prática pelo fato de não haver trabalhadores locais dispostos a se submeter a regime de escravidão porque recebem benefícios sociais do governo. Além desta escandalosa opinião, ouviu-se o vereador Sandro Fantinel (Patriotas), de Caxias do Sul (RS), despejar impropérios contra os nordestinos que denunciaram a situação de escravidão a que estavam submetidos. Entre as xenófobas opiniões deste vereador estava a de que se deveria contratar argentinos, ao invés de nordestinos.  O que mais impressiona neste caso é a total falta de pudor e ética, tanto do CIC de Bento Gonçalves, como do reacionário vereador.

Se tudo isso não fosse suficientemente infame, foi divulgado uma semana depois mais uma denúncia envolvendo o episódio em Bento Gonçalves[iv]. Desta feita, um trabalhador denuncia que os trabalhadores baianos foram ameaçados de morte por “capangas” que andavam armados, prendiam e torturavam os trabalhadores, alegando o fato de serem baianos. A empresa que contratava e fornecia os trabalhadores para as vinícolas era a Fênix Prestação de Serviços. Tal denúncia levanta a gravíssima suspeita de que as ameaças e torturas impingidas aos trabalhadores baianos tinha motivações eleitorais e fascistas, haja vista que Bento Gonçalves rendeu ao então candidato Jair Bolsonaro a vantagem de 75,8 % dos votos nas eleições de 2022, enquanto o estado da Bahia votou maciçamente em Lula, dando-lhe 72% dos votos, tendo sido o segundo melhor desempenho eleitoral de Lula em todo o país. Além do trabalho análogo ao escravo, acrescenta-se ao modo de agir de setores politicamente conservadores do agronegócio, financiadores prioritários da extrema direita nesse país, as práticas de xenofobia, de racismo e a postura fascista de ameaçar com eliminação física aqueles ou aquelas que estão em oposição política.

 No segundo episódio[v], divulgado em 24 de fevereiro, os trabalhadores do Movimento sem Terra (MST) assentados no Pontal de Paranapanema /São Paulo denunciam mais uma vez os ataques de agrotóxicos espalhados por avião que seus assentamentos estão sofrendo. Essa região possui 117 assentamentos resultantes de reforma agrária de terras devolutas. Ali, a produção de peixes, abelhas e as plantações orgânicas vêm sofrendo ataques sistemáticos de “grileiros” a mando de “coronéis” interessados única e exclusivamente no aumento do próprio capital e na especulação imobiliária.

Os assentamentos de Martinópolis e de Sandovalina tiveram suas plantações orgânicas e suas casas pulverizadas com veneno despejado por avião pertencente a fazendeiros locais, plantadores da monocultura de cana-de-açúcar. Além de envenenar as plantações orgânicas do MST e matar peixes e abelhas, essas ações criminosas envenenaram os próprios habitantes, uma vez que vários deles precisaram de ajuda médica após as pulverizações. Conforme a reportagem denuncia, casos semelhantes ocorreram nos municípios de Mirante do Paranapanema, Pirapozinho, Teodoro Sampaio, entre outros.

Apesar dos grandes produtores da agroindústria propagandearem que o agro é pop, na verdade esta indústria, na ânsia de aumentar a produtividade e retorno rápido de lucro, abusa do uso de agrotóxicos e, em consequência, contamina a água, o solo e os alimentos e, pelo visto, parece pretende agredir diretamente os trabalhadores do MST. Os crimes ambientais, a produção de transgênicos, a grilagem de terras, o uso inadequado e intensivo de agrotóxicos, a maioria deles proibidos em países de respeitável conhecimento científico, tudo isso entra na conta da conduta predatória e sem controle do Estado, ampliada enormemente durante o governo Bolsonaro, a serviço de interesses de grandes produtores rurais exportadores.

Entretanto, é fundamental não confundir a política agrícola implantada nos últimos quatro anos de governo, e ainda vigente, com a falta de políticas para a proteção e incentivo à agricultura familiar. Na verdade, a visibilidade e o brilho que o agronegócio desfruta no Brasil vem da não aplicação de legislações restritivas ao mau uso de agrotóxicos, da destruição dos instrumentos de fiscalização do Estado, além de fortes mecanismos de isenção fiscal, assim como das políticas de incentivo à produção (crédito de 340 bilhões do Plano Safra em 2022[vi], isenção de IPTU, isenção de ICMS na exportação). Sua produção em grande medida é de produtos in natura, como soja, milho, café, açúcar, carne bovina e de aves – as chamadas commodities agrícolas – apenas para exportação e que não se destinam a alimentar a sociedade brasileira. Por outro lado, quem produz grande parte dos alimentos para a sociedade é a agricultura familiar que não recebe os mesmos benefícios concedidos para os grandes empresários da agroindústria.

Além destas, há que chamar a atenção para outra forma de produzir alimentos por meio das plantações orgânicas, técnicas muitas vezes baseadas em agroflorestas,  mantidas por produtores menores, que atuam sem incentivos fiscais de qualquer natureza, notadamente pelas famílias assentadas do MST que se empenham em evitar o uso de agrotóxicos, produzindo e vendendo produtos de reconhecida qualidade, tais como milho e soja livres de transgênico, arroz orgânico, sucos de uva orgânicos, entre outros inúmeros produtos. Dessa forma, contribuem para redução do uso de agrotóxicos, para a minimização da degradação ambiental e evitam graves prejuízos à saúde humana, além de baratear o preço dos alimentos, tornando-os mais acessíveis a todos. Já está mais do que provado que outra forma de agricultura e pecuária é possível, de forma rentável, saudável e acessível para todos.


[i] Fonte: https://sul21.com.br/noticias/geral/2023/02/operacao-resgata-trabalhadores-em-situacao-analoga-a-escravidao-em-bento-goncalves/

[ii] Fonte: https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2023/02/25/escravizados-na-producao-de-vinho-no-rs-recebiam-choques-e-spray-de-pimenta.htm

[iii] Fonte: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2023/02/28/entidade-industrial-de-bento-goncalves-diz-que-trabalho-escravo-esta-associado-a-falta-de-mao-de-obra-e-sistema-assistencialista.ghtml

[iv] Fonte: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/havia-ordem-de-matar-os-baianos-diz-trabalhador-resgatado-em-bento-goncalves-rs/

[v] Fonte: https://mst.org.br/2023/02/24/pulverizacao-aerea-de-agrotoxicos-atinge-familias-assentadas-no-pontal-do-paranapanema-sp/

[vi] Fonte: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/noticias-2022/plano-safra-disponibiliza-r-340-8-bilhoes-para-o-setor-agropecuario

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Isabel Perez: Assistente Social, professora universitária, mestre e doutora em Educação. Compõe a equipe de redes sociais do Movimento Geração 68.


Respostas

  1. Avatar de ROSE MARY TELES SOUSA

    O agronegócio transformou o Brasil num celeiro para o mundo, enquanto por aqui se passa fome. Replicando nosso passado dos ciclos econômicos, da pobreza da monocultura em áreas extensas, do não reconhecimento do direito originário às terras, da destruição do meio ambiente, do uso da violência para expandir seus limites e, claro, da escravização da mão de obra. Não à toa os grandes proprietários encontraram um espelho perfeito no capitão genocida. A arma faz parte do agronegócio.

  2. Avatar de Elizabeth Maria Costa de Oiveira

    Ótimo texto

  3. Avatar de Maria Selma de Castro Araujo

    Excelente explanação sobre contínuas injustiças no meio rural. O agro não é mesmo pop, é mais uma atividade que leva a concentração de renda e poder de uns poucos grandes empresários.

  4. Avatar de crisrealramos

    O Agro é morte!
    Parabéns, pelo ótimo texto!

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