Artigo José Manoel

A VERGONHOSA RENOVAÇÃO ANTECIPADA DE CONCESSÕES FERROVIÁRIAS, HERANÇA DO GOVERNO BOLSONARO: Vantagem para quem?

José Manoel Ferreira Gonçalves

A notícia

A prática, pela qual o governo estende contratos com concessionárias ainda durante sua execução em troca de um volume maior de investimentos não é recente. Contudo, as renovações antecipadas foram intensificadas na gestão Bolsonaro, quando o hoje governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) era ministro dos Transportes.

Agora Renan Filho (MDB), novo ministro dos Transportes do governo Lula, instituiu grupo de trabalho com a declarada missão de “aprimorar as premissas, parâmetros e metodologia do modelo econômico-financeiro afeto às prorrogações antecipadas” de concessões de infraestrutura realizadas no âmbito da pasta. Isso inclui as ferrovias e as rodovias. Vamos nos ater aqui às ferrovias.

Desde que assumiu, o ministro Renan Filho sinalizou que poderá dar continuidade às renovações antecipadas de contratos de concessões ferroviárias, mas que antes pretendia aprofundar as discussões sobre o assunto: “Renovações antecipadas podem continuar. Nós vamos continuar discutindo com o TCU (Tribunal de Contas da União) as melhores práticas para renovação. E tenho muita curiosidade para saber quanto valem os ativos. Precisamos avançar na curva de aprendizado”, foi o que disse em entrevista coletiva logo depois de assumir.

Presidido pelo secretário executivo do Ministério dos Transportes, um grupo criado para discutir o assunto já está trabalhando e mantendo várias reuniões com os mais diferentes atores do setor. O fórum envolve a Secretaria Nacional de Transporte Ferroviário, a Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) e a Infra S.A (estatal que resultou da junção de EPL e Valec). O grupo terá 45 dias para apresentar seu relatório.

O escândalo

Segundo o consenso de vários outros especialistas, as antecipações de renovações das concessões ferroviárias feitas no governo Bolsonaro foram realizadas por valores pífios, oneram em muito a infraestrutura e o custo logístico do transporte de carga no Brasil e liquidam de vez a possibilidade do retorno de trens de passageiros no país.

São três as empresas que formam o oligopólio das ferrovias no Brasil. Vamos a elas:

Rumo

  1. A Rumo nada fez a não ser renovar a concessão da Malha Paulista.
  2. 99% do que é a Rumo foi feito pelos antecessores dela, desde o século XIX.
  3. De acordo com a cotação das suas ações na Bolsa de Valores de São Paulo, em janeiro de 2016, quando começou o processo de impeachment da então presidente Dilma, a Rumo valia R$ 3 bilhões. Com a renovação da concessão da Malha Paulista promovida por Tarcísio e Bolsonaro, a empresa passou a valer R$ 40 bi.
  4. Essa foi a valorização líquida; do valor de R$ 40 bilhões, já está descontado o valor de R$ 2,9 bi que a Rumo terá que pagar pela outorga, e algumas pequenas obras com as quais se comprometeu.
  5. A assinatura da renovação da Malha Paulista da Rumo se deu sem que os acionistas tivessem que colocar qualquer tostão, uma vez que todo o dinheiro foi fornecido pelo BNDES.
  6. Ou seja, seus acionistas é que tiveram “vantajosidade” com a renovação da Malha Paulista.
  7. Assim sendo, para relicitar a Malha Paulista, o Governo Federal poderia hoje cobrar esses R$ 40 bi como outorga, para empregar em novas ferrovias. Ou então que aplique em saúde, educação e segurança pública, em vez de dar esse dinheiro para os acionistas da empresa, que nada fizeram para o merecer.
  8. A oportunidade de licitar novamente é agora, aproveitando a janela que existe a cada dois anos para analisar os contratos de renovação da malha, e a Rumo não vem cumprindo o seu compromisso de investimento. O TCU foi claro na exigência: se não cumprir os compromissos, perde a concessão.
  9. São Paulo, que na época da Fepasa nos anos 1990 tinha mais de 5.500 km quando foi privatizada, hoje tem menos de 1.000 km.
  10. A Rumo não transporta carga em São Paulo, a não ser o açúcar da Cosan, que pertence ao mesmo grupo econômico.
  11. Ela, Rumo, só usa a Malha Paulista como passagem para soja e outros produtos de outros estados.
  12. Difícil evitar a tristeza ao pensar que a gloriosa ferrovia de São Paulo, a Companhia Paulista, a Estrada de Ferro Sorocabana, a Araraquarense, todas tenham sido  sucateadas, prejudicando a indústria, o agronegócio e, principalmente, o povo.
  13. A Rumo não está cumprindo as suas obrigações na Malha Paulista, como não cumpriu na Malha Oeste.
  14. Mais grave: na Malha Oeste, ela erradicou todo o trecho entre Campo Grande e Ponta Porã, arrancando os trilhos e dormentes, isolando o acesso ao Mato Grosso do Sul por linha férrea;
  15. Essa paralisação da Malha Sul gerou uma multa de mais de R$ 3 bi. Especialistas calculam que o valor do estrago não se recupera nem com R$ 20 bi.
  16. Em Corumbá, ainda na Malha Oeste, ela foi autuada por ter jogado trilhos e dormentes podres no Rio Piraputanga. Por este descalabro, foi aplicada a ela a maior multa pelo Ibama do atual Governo Lula.
  17. Na Malha Sul, a Rumo só opera um corredor, que é Londrina/Maringá a Paranaguá, e mesmo assim, só com soja.
  18. A Rumo abandonou definitivamente o resto da malha paranaense e a totalidade das malhas de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Outras dezenas de bilhões de reais devem vir de multas pelo sucateamento da Malha Sul.

MRS

  1. A MRS funciona mais como um centro de custo, já que mais de 95% do volume que transporta é produto dos seus acionistas, Vale e CSN.
  2. A tarifa desse transporte é a menor tarifa ferroviária possível, para que o lucro fique nas empresas contratantes.
  3. Este volume de transporte é quase que na sua totalidade minério de ferro, transportado da região de Belo Horizonte para o Porto de Itaguaí (RJ).
  4. Apesar de ter a concessão ferroviária do trecho entre o Rio de Janeiro e São Paulo, a empresa nada transportou desde que assumiu a concessão, em 1996, entre as duas maiores cidades do Brasil, dando preferência para usar as suas linhas para transportar minério de ferro dos seus acionistas.
  5. Vale perguntar: se a Rumo, que transporta 25 milhões de toneladas por ano, vale na Bolsa de Valores de São Paulo o equivalente a R$ 40 bi, quanto vale a outorga da MRS, que transporta 180 milhões de toneladas?
  6. Mas, acredite, a MRS vai pagar algo em torno de R$ 7 bi para renovar a sua concessão durante o período de 30 anos.

Vale

  1. As duas ferrovias da Vale, a Estrada de Ferro Carajás e a Estrada de Ferro Vitória-Minas são dois centros de custos para transportar minério da própria Vale.
  2. O transporte da Vale não tem frete, é feito a preço de custo.
  3. Se a Vale transporta em cada uma destas ferrovias 150 milhões de toneladas, usando a mesma analogia que usamos para a RMS-Rumo, quantas dezenas de bilhões deveria ser a outorga?

Em todas as concessões, parte significativa do custo de manutenção está lançada como investimento. Uma manobra que significa, na prática, tirar proveito de contrato público firmado sob a premissa de que teremos realmente investimentos na infraestrutura e não a realização de obras que, na verdade, significam apenas a simples preservação das condições das linhas férreas atuais (sem as quais as concessionárias não conseguiriam operar).

Uma situação que a longo prazo contribuirá para o virtual sucateamento das ferrovias, entregues sob concessão para as empresas por um extenso período de tempo. É perpetuar atraso a partir da exploração gananciosa.

Em última análise, é lucrar com o dinheiro de todos nós, cidadãos.

José Manoel Ferreira Gonçalves é engenheiro, membro do Conselho Deliberativo do movimento Engenharia pela Democracia – EngD e presidente da FerroFrente, Frente Nacional pela Volta das Ferrovias


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