Jean Marc von der Weid, maio de 2023
Procurando a integração na revolução chilena.
Ao voltar para Paris, duas semanas após o Tancaço, me reuni com os militantes da base da AP na Europa para comunicar a minha decisão de voltar ao Chile o mais rápido possível para me integrar na resistência ao golpe que já se previa para breve. Foi uma discussão difícil que chegou a ser áspera. Silvio Almeida, que estava na Argentina no momento da tentativa de golpe e tinha regressado a Santiago pouco depois da minha partida, trouxe uma avaliação bastante pessimista do quadro político por ele observado em apenas uma semana a mais no país. Segundo ele, após um recuo imediato dos golpistas, a direita tinha retomado a ofensiva em todas as frentes, desde os “paros” na economia e nos transportes até uma crescente repressão nos quartéis,bases navais e aéreas, passando por atentados do grupo de extrema direita Pátria e Libertad. Informado pelo Serra, membro do governo e dirigente de um dos partidos da Unidade Popular, o MAPU, Silvio apontou para a tentativa de Allende de encontrar uma forma de desarmar o confronto com os militares, mas a pressão da caserna sobre o legalista comandante do Exército, general Carlos Prats, levou à sua renúncia, sendo substituído pelo general Pinochet, que viria a comandar o golpe.
A discussão acabou com o Silvio aceitando a minha decisão, mas me pedindo que,antes de me enfronhar de novo nos cordões industriais e seus preparativos para o enfrentamento, eu me desse um tempo de três dias e olhasse de perto o panorama político para ver se havia alguma chance do golpe não ser um massacre. Jurei de pés juntos que faria isso.
Passei as minhas tarefas e contatos da AP para o Silvio e a Ana Galano (que me acusou,sem papas na língua, de aventureiro) e fui até Friburgo (Suíça) me despedir da família do meu pai. As velhas tias ficaram preocupadas com a minha partida inopinada para o Chile, mesmo com a minha cândida e falsa afirmação de que pretendia estudar economia na Escolatina, mas fizeram uma coleta para me ajudar na nova empreitada e saí com 3 mil dólares no bolso. Silvio também me passou outro tanto em recursos da AP, condicionados a uma aplicação na retirada da base do partido em Santiago, caso a situação degenerasse, levando todo mundo para a Argentina. Era muito dinheiro no Chile, onde a taxa de câmbio negro do dólar estava em ascensão vertiginosa estimulada pelos “platudos” e pela ação da CIA.
Nas despedidas na Suíça lembro em especial do jantar com a família Emmery, Paul e Marguerite. Ele era um líder sindical dos transportes urbanos em Genebra, equivalente aos nossos bondes aqui no Rio de Janeiro, e um raro militante do Partido Comunista da Suíça. Depois de assistir uma conferência que eu fiz em 1971, em Genebra, Paul aderiu ao nosso comitê de solidariedade com a luta do povo brasileiro, apesar do nariz torcido dos seus chefes partidários que me viam como um perigoso subversivo. Ficaram muito amigos do Zé Barbosa e depois de toda a família do Zé, quando ele voltou para o Brasil.
Neste jantar o Paul, que já era um cinquentão avançado, serviu uma dose de aguardente de pera, fabricada caseiramente com peras do quintal. Era uma Poire espetacular, digna de ser tomada pelo seu mais famoso apreciador, no Brasil, Ulisses Guimarães. Depois de todos provarmos um pouco, ele selou a garrafa e escreveu no rótulo o meu nome e a data daquele dia. E prometeu: “se vocês fizerem a revolução eu irei levar a garrafa até onde você estiver. Se não a fizerem sempre podes voltar aqui para bebê-la”. Por razões que não cabem aqui eu só voltei para tomar a poire vinte anos depois.
Em Paris foram várias despedidas, inclusive uma mais íntima com uma namorada uruguaia que me disse ser um disparate a minha “romântica aventura de brigadista internacional” e deixou claro que não tinha essa de me esperar. Moça de muito bom senso.
Entre outras celebrações, lembro de uma, sobretudo pelo vaticínio que um amigo angolano fez sobre as duas revoluções que nos interessavam: no Chile ele achava que as chances de haver uma guerra civil com um racha nas Forças Armadas era grande, enquanto na sua Angola ele achava que o MPLA, do qual era dirigente, estava derrotado e que a única chance era negociar uma paz que permitisse um mínimo de legalidade para os militantes nacionalistas. Isto foi em agosto de 1973 e, em menos de 8 meses cairia o governo português e com ele o império do ultramar e o Zé Gonçalvez, conhecido por nós da AP como o Zé Angolano, foi parar no primeiro ministério do novo governo do MPLA. O Zé provou não ser muito bom de prognósticos…
Para poupar os meus recursos, procurei a forma mais barata para chegar a Santiago e descobri um caminho tortuoso e longo: fui de trem para Luxemburgo e de lá de avião para a Islândia, não me lembro por qual microempresa. De Reykjavik voei pela Icelandic Airlines, da qual nunca tinha ouvido falar, até Nassau, nas Bahamas. De Nassau, após dois dias de espera por uma conexão, voei para Santiago, via cidade do México, por uma empresa mexicana. Nos meus cálculos, incluindo as despesas de estadia em Nassau e a alimentação ao longo deste esticado trajeto, economizei a metade do custo de uma viagem direta de Paris, via Miami ou Cidade do México, pela Air France.
Cheguei em Santiago ao final da manhã do dia 3 de setembro, a exatos 8 dias do golpe de Estado. Vai errar o timing assim no raio que me parta!
Fiz o longo trajeto de táxi de Pudahuel até as Torres de San Borja, quase na praça Itália e bem perto do centro, onde eu fiquei hospedado em um apartamento dividido pelo casal Luiz Travassos e a Marijane Lisboa e o então solteiro José Duarte dos Santos, todos grandes amigos. Na conversa com o taxista, que não era “momio”, mas tinha críticas à esquerda, fui percebendo uma sensação de exasperação/desespero. Segundo ele, um golpe militar já estava em marcha e ele temia por seus filhos sindicalistas radicalizados. Pensei com os meus botões: “será um caso representativo?” e torci para que não fosse. Mas ao chegar no meu destino, meus amigos assumiram as mesmas preocupações, noves fora não terem filhos. No mesmo dia encontrei com o Serra e o Betinho e ambos buscaram me tranquilizar. Não chegaram a assumir o bordão do “en Chile no pasa nada”, mas deram um spoiler do que o Allende ia fazer em mais uns dias:declarar estado de emergência e chamar uma eleição parlamentar geral. Segundo eles, isto esvaziaria o golpe e conduziria a crise para um desfecho político, possivelmente com o afastamento legal de Allende, mas com a manutenção das instituições democráticas e um poderoso instrumento político, a Unidade Popular, com forte presença no futuro parlamento. Por puro espírito de porco, eu argumentei que, se fosse da direita chilena, não trocaria um golpe que limparia a sociedade da militância de esquerda por uma “solução parlamentar” que manteria o poder de choque, daquilo que a imprensa momia chamava de escória comunista. Ambos os meus interlocutores desprezaram meus argumentos, afirmando que eu não tinha ideia do peso quase sagrado das tradições democráticas no país. Quando apontei para a gravidade da saída do general Prats do comando do exército, me foi assegurado que o seu sucessor era do mesmo calibre! Também afastaram as minhas preocupações com o que tinha lido na imprensa europeia antes de viajar, repercutindo rumores de expurgos em curso dentro dos quartéis e, sobretudo nos navios da Armada. Segundo meus amigos tratava-se de exageros e fofocas (fake news…). Encontrei nos dias seguintes meus conhecidos do MAPU e a sensação de desorientação foi ficando cada dia mais forte. Havia uma grande expectativa com uma super manifestação convocada pelos partidos da UP, na prática convocada pelo governo. Se não me enrolei nas datas acho que ela foi no anoitecer do dia 5 ou 6. Opiniões de vários lados diziam que era o momento decisivo para barrar o golpe e fui participar para ver como isto ia acontecer.
A Alameda Bernardo O”Higgins foi invadida por, segundo alguns cálculos, certamente exagerados, um milhão de pessoas. Seria algo como 10% da população do país! Mas mesmo “cortando o rabo do jacaré” a multidão era gigantesca e eu nunca tinha visto nada parecido no Brasil, nem no comício do dia 13 de março de 1963 ou nas marchas da família com Deus pela liberdade, versão católica das equivalentes neopentecostais dos dias de hoje. Era um mar de bandeiras e faixas com consignas contra o golpe e pela continuidade das reformas promovidas pelo governo de esquerda. A ultraesquerda se fez representar, com as alas do MIR formadas em ordem militar, marchando com passo ritmado e gritando a consigna: “Pueblo, consciência, fuzil, MIR, MIR”. Os comunistas também se apresentaram em fileiras compactas, sobretudo os jovens das JJCC que gritavam a palavra de ordem que dominou a manifestação: “Allende, Allende, el pueblo te defiende”.
O discurso do Allende, que se fez acompanhar no palanque pelos três comandantes das FFAA e dos carabineiros, me pareceu confuso e cauteloso, com apelos à paz e manifestações de confiança nos militares. Os quatro milicos foram apresentados pelo presidente ao povo, com pedidos de aplausos que foram respondidos com entusiasmo pela maioria, esmagando as vaias dos miristas. Me preocupou, sobretudo, a ausência de qualquer consigna indicando o que fazer no caso de uma tentativa de golpe.
Depois da manifestação encontrei-me com um grupo de exilados em um local no centro que não consigo localizar. Era um dos muitos grupos de debate político de brasileiros e dele faziam parte o Serra, o Betinho, o Airton Fausto e vários outros intelectuais da nossa esquerda. O clima era de euforia e lembro de um deles dizer, com acenos aprovativos dos outros: “o golpe, pelo menos por um tempo, foi afastado por esta manifestação”. No jantar com o Serra e o Betinho depois da reunião eles completaram a análise com a já citada decisão de Allende convocar eleições extraordinárias, a ser anunciada nos próximos dias. Ao dizer que multidões desarmadas não seguram golpes militares fui criticado por todos. “Não é a ação física das massas o que interessa, mas o impacto político do apoio ao Allende sobre a soldadesca”, foi a resposta. Lembrei que em dois momentos em que houve uma ameaça as massas foram convocadas a agir: no tancaço e em um outro episódio em que o povo cercou pacificamente os quartéis e confraternizou com os soldados. Agora não havia qualquer orientação sobre o que fazer. A posição do governo era defensiva e ele transmitiu esta postura para os manifestantes. Pior ainda, declarou-se um voto de confiança nas FFAA.
Meu pessimismo não afetou meus companheiros, mas eu tomei a decisão prometida ao Silvio: devíamos retirar a base da AP para Buenos Aires. O grupo dissidente do partido, composto por gente muito mais nova do que os capos históricos da AP que estavam no Chile, concordou com a ideia depois de muita discussão e ficamos de marcar as viagens começando já na semana seguinte. Eu partiria na frente para organizar o apoio na chegada à Argentina e comprei minha passagem para o dia 12 de setembro.
Tive ainda uma discussão com o Serra, num jantar na casa dele, no dia 8, se não me engano. Ao chegar deparei-me com grupos de militantes de direita agrupados em cada esquina da rua, sem saída, onde o Serra morava. A casa dele era uma das últimas e ele estava, literalmente, no fundo da armadilha. Serra nem quis ouvir falar de sair do Chile e disse confiar na “muñeca” do Allende, isto é, na sua capacidade de conciliação e habilidade política. Implorei para que ele, pelo menos, saísse daquele lugar por uns dias, até a “muñeca” mostrar seus efeitos. “Você vai ser preso pelos seus vizinhos”, cuja hostilidade eu tinha sentido ao caminhar em direção à casa do meu amigo. Serra não disse nada, mas acabou aceitando o conselho e saiu de casa no dia 10, indo se instalar em um apartamento no centro. Foi o que o salvou no dia do golpe, quando os vizinhos invadiram a casa dele e a saquearam.
Apesar do clima pesado, sobretudo no apartamento do Luíz, da Mari e do Duarte, fomos dormir no dia 10 sem preocupações particulares para o dia seguinte, quando Allende faria sua declaração pela saída eleitoral. Apesar de todo o meu pessimismo, o golpe no dia seguinte me pegou de surpresa.
Continua…
Jean Marc Von der Weid

Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971. Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983. Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016. Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta




Deixe um comentário