Jean Marc von der Weid, fevereiro de 2024
Em dezembro de 1972, no meu segundo ano de exílio/banimento, eu tinha Paris como base para a minha intensa atividade de denúncia da ditadura militar no Brasil. Morava em um pequeno apartamento na cidade universitária, na Casa da Suíça. Viajei por toda a Europa e América do Norte, convidado por entidades de defesa de direitos humanos, organizações estudantis, sindicatos, igrejas, partidos políticos e outras. Quando não estava viajando eu regressava ao meu quartinho e vivia dos recursos amealhados em coletas feitas nas muitas conferências. Era pouco dinheiro, mas meus gastos básicos eram mínimos: o aluguel do quarto custava 80,00 francos mensais, o almoço e o jantar nos restaurantes universitários custavam um franco (cinquenta centavos cada um) por dia ou 30 francos por mês, o transporte pelo metrô custava, no máximo, 5 francos por semana ou 20 francos por mês. Meus irregulares estudos em um curso de história na Sorbonne eram gratuitos, assim como eventuais necessidades (raras) de assistência médica. Custo total mensal de 130 francos, em um tempo em que o salário-mínimo na França era de 1500,00 francos. Outros gastos com lazer ou o café da manhã eram reduzidos. Assistia concertos gratuitos e filmes que custavam 10,00 francos, com amplíssimas opções em cinemas de arte. Era uma vida espartana em que tomar um grand créme com croissant ou uma taça de beaujolais eram luxos mui eventuais. Bebia mais nas casas de amigos brasileiros ou franceses em festas ou visitas.
Quando minha mãe veio me visitar, no inverno de 72/73, ganhei dinheiro para comprar um capote para enfrentar o frio desalmado que sempre perturbou a minha existência de exilado. Fui ao mercado das pulgas e encontrei um capote militar usado em muito bom estado, que me serviu por muitos anos. Este capote tinha virado uma moda entre alguns amigos exilados, por ser baratíssimo e muito quente, embora pesado.
Minha querida mãe era uma católica fervorosa e praticante. Nunca foi carola, militava na Ação Católica do Rio de Janeiro, em um grupo de senhoras orientadas pelo frei Eliseu, militante da Ação Popular (embora não soubessem disso), mas nunca faltava a missa dominical. Em um domingo qualquer, ela resolveu assistir a missa das nove na igreja do Marais, acho que era São Thomas de Aquino e fui acompanhá-la. Não me lembro porque o Reinaldo (José de Melo), meu amigo da prisão na Ilha das Flores, também libertado no sequestro do embaixador suíço, juntou-se a nós. Era uma manhã gelada e nevoenta e a igreja estava quase totalmente vazia. Mamãe foi sentar-se em um banco perto do altar e eu e o Reinaldo ficamos dando voltas para conhecer aquela obra arquitetônica linda, enquanto esperávamos o fim da missa.
Em algum momento reparei em um senhor, baixinho e magricela, ajoelhado sozinho no meio de um banco comprido. “Reinaldo, acho que aquele cara é o embaixador brasileiro na França, o general Lira Tavares”. Reinaldo duvidou e demos uma volta para ver o tipo de frente. Tinha uma cara de ave de rapina, uma cara de mau. “É ele”, disse eu, mas Reinaldo continuava duvidando. Saímos da igreja e, bem em frente da escadaria, estava estacionado um carro com a bandeira do Brasil. Bingo!
O general Lira Tavares tinha sido comandante do Exército quando o ditador Costa e Silva teve um piripaque que o levaria para o túmulo meses depois, e participou do minigolpe que afastou o vice-presidente civil, Pedro Aleixo, e participou de uma junta militar que tomou o poder até a “eleição” do chefe do SNI, general Médici. Depois disso ele ganhou esta sinecura parisiense como embaixador. Tínhamos falado nele na véspera porque uma prima da minha mãe era a secretária da embaixada e contou que o general estava meio senil e que dormia em pleno ditado de cartas. Entre parênteses, este exemplar de brutalidade castrense tinha pretensões literárias e foi até eleito para a Academia Brasileira de Letras, mais tarde e para vergonha eterna dos nossos “imortais” da época. O general tinha escrito um conjunto de poemas e pagou a edição de um livro do próprio bolso (ou com dinheiro do exército, vai saber…). A pequena editora que ele escolheu pertencia a um colaborador do velho Aurélio Buarque de Holanda, pai de um amigo de infância e militante do PCBR, o Aurelinho. Eu estava na casa do Aurélio quando o Campelo chegou um dia com uns poemas que ele ia editar e morrendo de rir. “Ouçam como ele começa o seu primeiro verso”, disse ele, às gargalhadas: “eu sou a abelhinha do amor, zum”. E continuou: “e o melhor de tudo é como ele assina o livro: Adelita”. “É um nome literário?”. “Isso mesmo, e significa Aurélio de Lira Tavares, o general comandante do exército”. Cai o pano.
De volta a Paris, eu e o Reinaldo entramos na igreja e ficamos olhando aquele representante do regime de assassinos e torturadores entregue a suas orações. “Temos que fazer alguma coisa, Reinaldo”. “Vamos abordá-lo e acusá-lo pelas suas barbaridades”. “Não, o melhor é dar um susto nele”.
Eu e o Reinaldo usávamos o mesmo capote militar verde escuro e ambos usávamos barbas compridas. “Vamos nos sentar cada um em uma ponta do banco, sem olhar para ele. Na hora que ele levantar e se dirigir para um ou outro vamos simplesmente encará-lo, sem deixar ele passar”. Dito e feito. E quando o general quis sair do banco para ir comungar eu me levantei o encarei fixamente e impassível e ele se voltou para o outro lado para ser encarado pelo Reinaldo. O general arregalou uns olhos que já eram esbugalhados e virou-se para trás, mas a igreja estava vazia e não havia auxílio visível. Ele voltou a se ajoelhar, remexendo um pescoço de urubu, comprido e pelancudo, de um lado para outro, buscando salvação sem a encontrar. Olhando de lado, vimos que ele se pôs a suar e tremer. Foram uns 10 minutos de terror para ele e de imensa satisfação para nós dois, até que a missa terminou e mamãe veio falar comigo e eu saí com ela, liberando o caminho. O general se precipitou igreja a fora, correndo tropego (será que se mijou?), e quase caiu nas escadarias da igreja, olhando para nós, que paramos no alto para ver a cena. Ele bateu na janela do carro e saiu um ajudante de ordens fardado, que ouviu o que ele dizia enquanto apontava para nós três, parados e conversando na porta da igreja. O militar abriu a porta traseira e ajudou o trêmulo general/embaixador a entrar, virou-se para nós com um sorriso e fez o gesto típico, girando um dedo junto à têmpora, como quem diz, está gagá.
Mais tarde a secretária da embaixada, tia Marília, contou que ele chegou ainda aterrorizado no escritório no dia seguinte e foi um esforço dos seus assessores evitar que fizesse uma denúncia de atentado terrorista às autoridades francesas.
É lamentável que após todos os horrores perpetrados por estes criminosos fardados que torturaram até a morte centenas de companheiros e companheiras, tudo o que tenhamos para colocar na balança sejam estes minutos em que um dos bandidos sentiu o frio do medo escorrer espinha abaixo em uma igreja deserta em Paris. A maioria foi recompensada por suas barbaridades e até incensada por um presidente e seu vice, em tempos recentes que lutamos para que não voltem. Ah! A falta que faz uma justiça de transição!
Jean Marc von der Weid
Ex-presidente da UNE, entre 1969 e 1971
Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983
Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016
Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta



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