Jean Marc von der Weid, Abril de 2024
Meu caro J., recebi a tua mensagem com um vídeo sobre o título deste artigo. O vídeo responde à pergunta pela afirmativa e faz uma muito bem argumentada narrativa para justificá-la. Vindo de você, que eu conheço desde meus 20 anos, não poderia esperar algo menos consistente. Afinal de contas, você está entre os amigos e companheiros de muitas lutas que sempre se manteve coerentemente à esquerda, com postura crítica e sem fanatismos estalinistas. A tua abordagem sobre Israel não deixa de ter uma motivação para além daquela que temos todos os militantes internacionalistas e perfeitamente justificada: você é judeu pela origem familiar, embora não crente, como bom marxista. Como tenho uma grande amizade e um grande respeito por você, estou respondendo aos argumentos do vídeo, que eu percebi como um questionamento a artigos anteriores que divulguei.
O vídeo lembrou-me de um evento de outra era. No último ano do exílio, 1979, o Comitê de Anistia de Paris, que eu então presidia, junto com o Liszt Vieira, promoveu uma série de debates onde grandes lideranças do exílio brasileiro apresentaram as suas avaliações sobre o processo de abertura em curso no país e as propostas políticas para o futuro próximo. Não me lembro de todos os debates, mas entre vários participantes destacaram-se o (Miguel) Arraes, o (Leonel) Brizola, o Apolônio (de Carvalho), o (Diógenes de) Arruda e o (Luiz Carlos) Prestes. Coordenei todos estes debates e guardei as minhas anotações até hoje. De todos eles, foi o do Prestes que mais “bombou” em termos de público e que provocou mais polêmicas.
Prestes me perguntou, antes de começar, quanto tempo ele dispunha para fazer a sua apresentação inicial introdutória ao posterior debate com o público, composto pela quase totalidade dos exilados em Paris (uns 200), estudantes da Casa do Brasil, na Cidade Universitária (uns 100) e uns 50 “brasilianistas” (franceses interessados no nosso país). E mais alguns espiões da embaixada brasileira. Respondi ao “Cavaleiro da Esperança” que eu jamais iria botar relógio de ponto no seu discurso e que ele podia falar o tempo que quisesse, lembrando apenas que tínhamos ao todo três horas para encerrar e que o público ansiava pelo debate. “Me avise com 25 minutos e eu encerro aos 30”, me disse ele. E falou exatos 30 minutos.
Não interessa, para os fins deste artigo, o conjunto da palestra do Prestes, nem as dezenas de perguntas e questionamentos que ele respondeu, sempre muito direto e conciso. A pergunta que diz respeito ao nosso debate atual foi sobre a democracia na União Soviética, em particular sobre o direito de greve da classe operária. A resposta foi a seguinte, se minhas anotações e memória estão certas:
“A democracia na URSS é total e não pode ser comparada com as democracias capitalistas”. (Murmúrios do público). “Como trata-se de um regime comunista, o proletariado está no poder e, por isso, não existe necessidade de greves pois isto seria uma ação contra este próprio poder, uma contradição absurda”. De fato, dada a premissa, o corolário está correto.
Em vários outros momentos Prestes repetiu este procedimento de definir uma premissa, não justificada ou discutida, para afirmar o seu ponto de vista.
Voltando ao nosso vídeo sobre Israel, chamou-me a atenção o uso do mesmo método. O autor parte de uma premissa: o direito dos judeus a um Estado próprio e tudo que se segue é justificado por este princípio. Para quem não viu o vídeo, adianto que ele não pretende justificar os massacres aos palestinos, muito pelo contrário. Ele defende o direito dos palestinos a um Estado próprio.
Assim como a premissa usada por Prestes para justificar a “democracia proletária” na ex-URSS, o “direito a um Estado judaico” não se sustenta.
A ideia de que este Estado é um direito do povo judeu e a sua implantação nas terras do que ficou conhecido como Palestina está na origem de toda a tragédia, que se prolonga desde 1946 até os horrores que hoje assistimos.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que nenhum direito existe sem que ele seja cotejado com os direitos de outros. A propaganda sionista, desde os tempos das origens do movimento no final do século dezenove, afirmava que a Palestina era “uma terra sem povo, destinada a ser ocupada pelo povo sem terra, os judeus”. Outra justificativa, mais de cunho religioso afirma que a Palestina era a terra que Deus tinha destinado ao seu povo escolhido. Quem se lembra da bela música do filme Exodus, nos anos sessenta? O refrão era: “this land is mine, God gave this land to me” (esta terra é minha, Deus deu esta terra para mim).
O argumento religioso justificou o processo de ocupação de Canaã pelos judeus após a fuga do Egito. Mas lembremos que esta ocupação também não se fez em uma terra sem povo. Os judeus passaram o rodo nos nativos que lá viviam, massacrando cidades como Jericó, entre outras. Aliás, a história está cheia destes exemplos, ao ponto que um historiador escreveu que não existe nenhum pedaço de terra no mundo que esteja ocupado por seus povos originários.
O argumento da terra sem povo, livre para ser ocupada pelo povo sem terra também não se sustenta. A Palestina do século vinte estava ocupada por milhões de árabes, outra vertente da etnia semita, com cultura e religião próprias (muçulmanos). E aqui começam os conflitos de direitos. A Palestina é o lugar onde existiu, por mais de mil anos, um Estado onde predominava a população judaica. Com a destruição deste Estado pelos romanos, culminada pela diáspora provocada pela destruição de Jerusalém no ano 70, a ocupação das terras foi sendo feita pelos árabes, a partir da expansão do islamismo no século VII.
Quando tem início a migração sionista no século XIX, os judeus remanescentes eram uma minoria que convivia com os árabes sem maiores atritos. O processo de reocupação induzido e financiado pelo sionismo, com recursos dos financistas judeus do ocidente (Rotschilds e outros) foi feito através da compra de terras dos camponeses árabes, que foram se alojar nas cidades e aldeias dentro do mesmo território. As comunidades destes camponeses judeus, os kibutzim, constituíam uma malha dispersa em um mar de comunidades camponesas árabes. Erroneamente, escrevi em um artigo anterior que a porcentagem de judeus no território que veio a constituir o Estado judaico na resolução da ONU nos anos 40, era de 7%. De fato, este número se aplica à totalidade do território do antigo protetorado inglês, incluindo todas as terras, do Mediterrâneo ao Jordão e no imediato pós primeira guerra. No território atribuído ao novo Estado judeu a porcentagem era bem maior, embora os árabes ainda tivessem peso significativo neste pedaço de terra até a guerra de 48.
O recorte do território israelense negociado na ONU levou em conta, inclusive pelos negociadores representando os dirigentes judeus, esta ocupação mais adensada, ficando de fora o que veio a ser a Cisjordânia, Gaza e outros espaços menores onde os árabes eram largamente majoritários. Entre os dirigentes políticos chefiados por Ben Gurion, que veio a ser o primeiro presidente do novo país, houve uma forte polêmica, com os mais radicais cobrando um país incluindo todo o território da Palestina, a meta assumida pelo movimento sionista. Ben Gurion usou o argumento demográfico considerando que seria inviável garantir a estabilidade do novo país com uma ampla maioria de árabes. Mas a meta mais ambiciosa nunca deixou de ser a expansão da ocupação até a tomada de todo o espaço. E a política do governo israelense nunca deixou de ser, com altos e baixos, avanços e alguns recuos, chegar ao objetivo de um país “do Mediterrâneo ao Jordão”, com esmagadora maioria de judeus.
Esta hegemonia demográfica não podia ser alcançada sem uma imensa operação de limpeza étnica, com o deslocamento de milhões de árabes para fora do território. E isto foi sendo conseguido. Primeiro com a guerra de 48, que levou mais de um milhão para os acampamentos de refugiados nas fronteiras do Líbano, Síria e na faixa de Gaza. Depois com a ocupação da Cisjordânia e de Gaza na guerra de 67. Nestas áreas o processo de expulsão dos palestinos foi mais paulatina, com novas colônias sendo implantadas, sobretudo na Cisjordânia, onde hoje já se encontram mais de 500 mil israelenses. Gaza foi um osso mais duro de roer e o governo trabalhista de Rabin chegou a recuar e retirar colônias já implantadas, após uma das muitas negociações mediadas pelo governo americano. Mas lembremos que Rabin pagou com a vida esta ousadia, vista como uma traição pelos extremistas sionistas e os ultraortodoxos judeus.
No momento presente a limpeza étnica continua, inexorável, quer pela violência mais aberta do exército de Israel, quer pela violência permanente contra os palestinos nos territórios sob seu controle. Lembremos que, desde a fundação do Estado de Israel, a população palestina vive em um limbo de cidadania. Sem ter os direitos dos cidadãos plenos do novo Estado, os palestinos estão sujeitos a todo o tipo de agressões e pressões, aplicadas com o intuito não disfarçado de provocar a sua exclusão e migração.
Esta limpeza étnica, no presente momento, está se acelerando, sobretudo (mas não somente) na Faixa de Gaza.
“Discordo que a ofensiva militar israelense signifique um genocídio. Seria o caso se os bombardeios tivessem como objetivo matar todos os palestinos.
(…)
Embora o objetivo não seja, como no holocausto, o extermínio de todos os palestinos, o efeito pode ser esse mesmo, se o processo não for sustado”.
Discordo que a ofensiva militar israelense signifique um genocídio. Seria o caso se os bombardeios tivessem como objetivo matar todos os palestinos. Se este fosse o objetivo, o método seria o que se chamou, no fim da segunda guerra mundial, de bombardeio de saturação, onde o alvo é a população em geral. O governo de Israel ameaçou a população da zona norte de Gaza e comandou a sua migração para fora da zona de combate, levando quase um milhão de pessoas a se comprimirem na zona sul. Os bombardeios não deixaram de arrasar as construções da zona norte, matando 10% dos 300 mil remanescentes. O segundo movimento do exército foi levar a guerra total para a zona sul de Gaza, e o objetivo agora é expulsar todos para as terras fronteiriças do Egito. De forma sinistramente hábil, a pressão maior agora alia os bombardeios ou combates no solo com a redução da população palestina a uma situação de penúria extrema, com a interdição da entrada de alimentos, remédios e de assistência médica e sanitária. Dados da ONU apontam para uma ingestão calórica média de 250 calorias por dia entre os sobreviventes da zona norte, sem dados equivalentes para a zona sul. Sabendo-se que a ingestão mínima de calorias para a sobrevivência dos humanos é de 2 mil calorias por dia, o que está ocorrendo é uma cruel matança por inanição e doenças correlatas, muito além do número de baixas por bombas ou tiros. Embora o objetivo não seja, como no holocausto, o extermínio de todos os palestinos, o efeito pode ser esse mesmo, se o processo não for sustado.
Para concluir, o “pecado original” nesta catástrofe provocada pela ação humana é a própria existência do Estado de Israel, que autodefiniu como objetivo vital da nação o amplo predomínio populacional dos judeus sobre os palestinos dentro do território “histórico” que Deus lhes atribuiu. Sem uma brutal limpeza étnica, que vem ocorrendo desde a fundação do Estado de Israel, tal meta seria inalcançável.
Israel tem direito a ter um Estado próprio? Em tese, sim. Mas onde? Em um território já amplamente ocupado há mais de um milênio por outro povo? A história poderia ter sido diferente se a proposta tivesse sido a criação de um Estado multiétnico, multicultural e laico, mas isto significaria dividir o poder com uma população majoritariamente árabe e muçulmana e isto era inconcebível pelo movimento sionista. Já a “solução” dos dois Estados, proposta na resolução da ONU que criou o Estado de Israel, parece inviável, mesmo supondo que o poder dominante entre os israelenses aceitasse esta saída, contrária a toda a pregação centenária do sionismo. Qual o território a ser atribuído a este Estado palestino? A Cisjordânia já está dividida meio a meio entre as duas populações. Israel aceitaria retirar 500 mil colonos que lá habitam? E para onde estes iriam? E que Estado Palestino seria esse, com um território dividido em dois (Gaza de um lado e Cisjordânia de outro, separados pelo território israelense) e com mais de um milhão de refugiados querendo voltar?
O preço que os judeus em todo o mundo estão pagando pelo sonho do renascimento do Reino de Israel está sendo o isolamento político e ideológico e a cruel mudança de ser percebido como um povo oprimido que passou a ser um povo opressor. E, sim, no rastro desta tragédia estamos vendo renascer o velho antissemitismo, às vezes apenas encoberto sob a capa do antissionismo.
Jean Marc von der Weid
Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971
Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (ASPTA) em 1983
Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016
Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta

Jean Marc von der Weid


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