Ligia Maria Bueno Pereira Bacarin
Umberto Eco, alega que vir ao mundo é como entrar numa peça de teatro depois de ter começado. Essa analogia é uma maneira interessante de abordar a importância do conhecimento prévio e da orientação para os indivíduos se engajarem plenamente na sociedade.
No contexto educacional, isso destaca a necessidade de fornecer aos alunos as condições mínimas para compreenderem o mundo ao seu redor e se tornarem participantes ativos na construção da sociedade. No entanto, a Reforma do Ensino Médio desviou-se desse objetivo ao exigir que os alunos escolham entre roteiros formativos predeterminados, com uma oferta limitada de opções, e ainda, ao introduzir disciplinas e conteúdos muitas vezes desconhecidos para eles. Além de reduzir a carga horária das disciplinas consideradas como básicas.
Mas como chegamos a essa tragédia?
O seminário realizado em 2003, intitulado “Ensino Médio: Ciência, Cultura e Trabalho”, marcou um momento crucial no governo Lula ao propor uma nova política de educação básica para o nível médio. Seu principal objetivo era enfrentar a fragmentação curricular histórica nessa etapa educacional e colocar as necessidades e perspectivas das juventudes que frequentam a escola pública brasileira no centro do debate.
O evento representou um ponto de virada na busca por um novo projeto de Ensino Médio no Brasil. Isso se deu em resposta à massificação improvisada das décadas anteriores e à necessidade de democratizar o currículo nessa fase do ensino. O aumento significativo das matrículas, de pouco mais de três milhões no início dos anos 1990 para nove milhões em 2004, evidenciou a urgência de uma reforma educacional nesse nível de ensino.
Após o seminário de 2003, houve uma conscientização sobre a necessidade de construir um currículo menos fragmentado e mais integrado, capaz de abordar de forma densa as complexidades do mundo contemporâneo. Esse debate resultou em iniciativas políticas e educacionais que buscaram incorporar o eixo ciência, cultura, trabalho e tecnologia como dimensões fundamentais da formação humana e da vida em sociedade.
Algumas dessas iniciativas incluíram:
- Novas diretrizes curriculares nacionais: Foram estabelecidas pelo Conselho Nacional de Educação, refletindo uma abordagem mais integrada e holística do currículo do Ensino Médio.
- Programa Ensino Médio Inovador: Este programa visava promover práticas pedagógicas inovadoras e a integração de diferentes áreas do conhecimento, buscando uma formação mais abrangente e contextualizada para os estudantes.
- Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio: Esta iniciativa buscava melhorar a qualidade do Ensino Médio por meio de ações coordenadas entre diferentes esferas do governo e da sociedade civil.
No entanto, a atual Reforma do Ensino Médio seguiu uma direção oposta, desconsiderando os princípios de integração e densidade curricular propostos anteriormente. Em vez de promover a integração das diferentes dimensões do conhecimento, levou a uma desintegração do currículo, fragmentando ainda mais a formação dos estudantes.
Ela foi apresentada como Medida Provisória (MP 746/2016), ação controversa, especialmente devido ao seu processo de implementação e ao contexto político em que ocorreu. Poucos meses após a ascensão de Michel Temer à Presidência da República, decorrente do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a MP foi introduzida, interrompendo o processo de discussão sobre o Ensino Médio que já estava em andamento na Câmara dos Deputados desde 2012.
O uso de uma medida provisória para realizar uma reforma educacional de tal magnitude foi amplamente criticado por entidades da sociedade civil, bem como pelo então Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, que questionou sua constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.
Além disso, o ano de 2016 foi marcado por intensos protestos estudantis, com ocupações em escolas de Ensino Médio e universidades públicas em 19 estados da federação. As ocupações tinham como alvo não apenas a MP 746, mas também a PEC 241, que estabelecia um teto para os gastos primários do governo de Michel Temer.
Esses protestos refletiram a insatisfação generalizada com as políticas educacionais propostas pelo governo e a falta de participação democrática no processo de tomada de decisões. A Reforma do Ensino Médio, em particular, foi vista como uma imposição autoritária que não levou em consideração as necessidades e opiniões dos estudantes e da comunidade educacional como um todo.
A resistência à Reforma do Ensino Médio foi expressa pela juventude brasileira, mas, apesar disso, a MP 746 foi convertida na Lei 13.415/2017. O governo subsequentemente eleito, de extrema direita em 2018, aliou-se à Reforma, consolidando-a através da aprovação de documentos legais que a sustentavam normativamente.
O edital do novo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), adaptado à Lei 13.415/2017, foi estruturado e executado, juntamente com a aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio em 2018. Assim, desde 2016, a Reforma do Ensino Médio assumiu um caráter antipopular e autoritário.
Sua implementação teve continuidade natural no governo de viés conservador de Jair Bolsonaro, que venceu as eleições após uma campanha marcada pela desinformação. Nem mesmo a pandemia de Covid-19 e a gestão federal desastrosa, que resultou em 667 mil mortes no Brasil, foram suficientes para deter os esforços reformistas. Pelo contrário, os defensores da reforma aproveitaram a suspensão das aulas presenciais para acelerar a aprovação de currículos estaduais sem a participação adequada das comunidades escolares, violando flagrantemente o princípio constitucional da gestão escolar democrática.
A implementação da Reforma do Ensino Médio pelos estados durante a pandemia expõe mais uma face perversa dela, dificultando o debate democrático, minando o controle social e intensificando processos de precarização e privatização da educação pública. Quando a MP 746/2016 foi publicada, o governo Temer justificou a medida com três objetivos principais, que seriam alcançados pela Reforma:
1-Atratividade do Ensino Médio para os jovens: Permitir que os alunos possam escolher itinerários formativos diferenciados.
2- Ampliação da oferta de ensino em tempo integral: Proporcionar mais oportunidades para os estudantes frequentarem a escola em tempo integral.
3- Aumento do aspecto profissionalizante do Ensino Médio: Incorporar uma maior ênfase na formação profissional dos alunos.
Entretanto, a implementação acelerada da Reforma em estados como São Paulo revela a falácia por trás da justificativa de reduzir o número de disciplinas no Ensino Médio. Com a introdução dos itinerários formativos, surgiram novas disciplinas sob a orientação de institutos e fundações da sociedade civil vinculadas ao capital, enquanto disciplinas tradicionais ligadas aos campos científicos, culturais e artísticos foram eliminadas do currículo. Isso representa um claro movimento de desmonte das possibilidades de formação científica e humanística da juventude que estuda nas escolas públicas.
Essa abordagem revela não apenas uma falta de consideração pelas necessidades educacionais dos estudantes, mas também uma tendência preocupante em direção à privatização e mercantilização da educação pública, minando assim o acesso equitativo a uma educação de qualidade para todos os jovens brasileiros.
A implementação da Reforma do Ensino Médio revelou uma série de implicações negativas que a desvirtuam dos objetivos proclamados inicialmente. Algumas dessas implicações incluem:
- Restrição da liberdade de escolha dos estudantes: A suposta liberdade de escolha se restringe aos itinerários formativos disponibilizados pela escola, os quais muitas vezes não abrangem todas as possibilidades educacionais. Isso é especialmente problemático em municípios com apenas uma escola pública de Ensino Médio.
- Fragilização do conceito de Ensino Médio como parte da educação básica: A Reforma desvincula o Ensino Médio da formação geral para todos, revertendo uma conquista importante do processo de democratização da educação.
- Ampliação do modelo de Ensino Médio em Tempo Integral sem investimentos suficientes: Isso exclui estudantes trabalhadores e de baixo nível socioeconômico, além de estimular o fechamento de classes noturnas e da Educação de Jovens e Adultos (EJA).
- Indução de jovens de escolas públicas a itinerários de qualificação profissional de baixa complexidade: Isso limita o acesso ao conhecimento científico e humanístico.
- Risco ao modelo bem-sucedido de Ensino Médio Integrado praticado pelos Institutos Federais: A Reforma rebaixa a educação profissional à condição de “itinerário formativo”, dissociando-a da formação geral básica.
- Aumento do número de componentes curriculares e fragmentação curricular: Contrariando a justificativa original da Reforma de reduzir o número de disciplinas obrigatórias.
- Desregulamentação da profissão docente: Ao desvalorizar a formação e atuação dos professores, compromete-se a qualidade do ensino.
- Ampliação da Educação a Distância e comprometimento da qualidade do ensino: A experiência durante a pandemia demonstrou a exclusão digital e as dificuldades de acesso dos estudantes mais pobres a essa modalidade de ensino.
- Segmentação e aprofundamento das desigualdades educacionais: A diversificação curricular por meio de itinerários formativos priva estudantes do acesso a conhecimentos básicos necessários à sua formação.
- Delegação aos sistemas de ensino sem consolidação de um Sistema Nacional de Educação: Torna mais distante a construção de um sistema educacional unificado e equitativo.
Diante dessas evidências, é crucial que o próximo governo revogue a Reforma do Ensino Médio e inicie um amplo processo de discussão baseado nos princípios estabelecidos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996 e nas contribuições do campo progressista e democrático, garantindo um processo participativo e democrático para qualquer mudança na educação brasileira.
ALGUMAS DISPARIEDADES ENCONTRADAS NOS ITINERÁRIOS FORMATIVOS PRESENTES NO NOVO ENSINO MÉDIO
Os itinerários formativos, são um conjunto de disciplinas que os estudantes podem escolher, mas aumentaram a distância entre a escola privada e a pública. Pois, a oferta desses itinerários pode variar de acordo com a capacidade das redes de ensino e das escolas em implementá-los. Isso pode resultar em disparidades na disponibilidade de opções educacionais entre diferentes regiões do país e até mesmo entre diferentes instituições de ensino.
As disparidades no acesso à educação entre diferentes classes sociais é um problema grave e reflete as desigualdades estruturais presentes na sociedade brasileira. E as políticas educacionais que construíram o novo modelo de Ensino Médio acentuam essas disparidades, em vez de mitigá-las.
Enquanto os alunos da escola pública enfrentam uma redução significativa no tempo de aula para disciplinas fundamentais como Língua Portuguesa e Matemática, Sociologia, Filosofia, Artes e História. Enquanto os alunos das classes mais privilegiadas têm acesso a recursos adicionais, como aulas de reforço, revisão e simulados, além de frequentarem cursinhos no contraturno para se prepararem para o ensino superior. Por exemplo, na terceira série do ensino médio, os alunos da escola pública passaram a ter, por semana, apenas três aulas de Língua Portuguesa e duas de Matemática. Todas as demais matérias são de disciplinas dos itinerários com quase nada de conteúdo.
Essas disciplinas dos itinerários são de assuntos bem gerais e vagos. Pelo Brasil, já foram identificados temas como ‘Brigadeiro caseiro’, ‘Mundo PET’, ‘RPG’ etc. Em São Paulo e no Paraná, na parte diversificada, há desde Empreendedorismo, Projeto de Vida (obrigatórias) até eletivas para ensinar maquiagem.
Essa discrepância no acesso à educação não apenas perpetua as desigualdades sociais, mas também mina os princípios fundamentais de equidade e justiça educacional. É necessário um compromisso sério e contínuo para enfrentar essas disparidades, garantindo que todos os alunos tenham acesso a uma educação de qualidade, independentemente de sua origem socioeconômica. Isso requer políticas educacionais que priorizem a inclusão, o acesso equitativo a recursos educacionais e a valorização dos professores e das escolas públicas.
Essa abordagem pode levar os alunos a se sentirem perdidos e desorientados, sem a devida preparação para enfrentar os desafios do mundo contemporâneo. Além disso, ao restringir as escolhas dos alunos e limitar a oferta de itinerários formativos, a reforma pode impedir que eles explorem plenamente seus interesses e habilidades, e acabar por reforçar as desigualdades educacionais.
Portanto, é importante repensar e revisar as políticas educacionais para garantir que os alunos tenham acesso a uma educação de qualidade, que os capacite não apenas para seguir um roteiro predefinido, mas para se tornarem agentes de mudança e participantes ativos na sociedade. Isso requer uma abordagem mais flexível e inclusiva, que valorize a diversidade de interesses e trajetórias dos alunos e os prepare adequadamente para enfrentar os desafios do mundo contemporâneo.
Os efeitos deletérios do Novo Ensino Médio (NEM) na maior rede pública de ensino do país são preocupantes e podem ter várias consequências negativas. Alguns desses efeitos incluem:
- Aumento das desigualdades escolares dentro da rede pública: A implementação do NEM pode agravar as desigualdades educacionais, uma vez que as escolas públicas podem ter dificuldades para oferecer uma variedade de itinerários formativos e recursos adequados para os alunos, ampliando assim as disparidades entre as instituições de ensino.
- Estudantes sem aulas por falta de professores: A precarização do trabalho docente pode levar à falta de professores em algumas disciplinas ou áreas, resultando em alunos sem aulas ou com aulas substituídas por atividades menos eficazes.
- Maior precarização do trabalho docente: A ampliação do ensino a distância e outras medidas adotadas pelo NEM podem contribuir para a precarização do trabalho dos professores, reduzindo sua autonomia pedagógica e aumentando sua carga de trabalho.
- Ampliação do ensino a distância: Embora o ensino a distância possa oferecer algumas vantagens, como a flexibilidade de horários, ele também pode apresentar desafios, como a falta de interação face a face e a necessidade de acesso à internet e a dispositivos tecnológicos, o que pode excluir alguns alunos e aprofundar as desigualdades educacionais.
Esses efeitos destacam a importância da REVOGAÇÃO DO NONO ENSINO MÈDIO, para garantir que educação não apenas promova a inovação e a melhoria da qualidade, mas também garanta a equidade e a inclusão de todos os alunos, especialmente os mais vulneráveis.
Em resumo, o Novo Ensino Médio é criticado por sua abordagem centralizadora e fragmentada, suas promessas não cumpridas, sua desorganização das redes de ensino e seu baixo investimento. Esses aspectos contribuem para tornar o NEM uma política educacional problemática que requer revogação e reformulação para atender adequadamente às necessidades dos alunos e das escolas brasileiras.

Ligia Maria Bueno Pereira Bacarin é da equipe de comunicação do Geração 68. Militante do Psol. Professora de História na rede estadual do Paraná e professora da pós-graduação na rede privada de ensino. É doutora em Educação e especialista em Educação Especial.


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