Câmara de Gilead: a extrema-direita e controle do corpo feminino pela Bancada da Bíblia

Ligia Maria Bueno Pereira Bacarin

No livro Conto de Aia, a república de Gilead era o regime totalitário e teocrático que teve origem em um golpe de Estado perpetrado por extremistas que se autodenominaram ‘Filhos de Jacó’.

Gilead é uma sociedade patriarcal, com apenas homens tendo acesso à educação e mantendo posições políticas. As mulheres são vistas como pessoas de segunda classe, pois não podem ter propriedades ou ser empregadas, e devem submeter-se à autoridade dos homens. Mulheres, exceto as Tias, são proibidas de ler ou escrever.

No Conto de Aia, em Gilead, e na Câmara dos Deputados é o discurso teocrático fundamentalista que se apropria da capacidade reprodutiva feminina. Porém, numa análise histórica materialista, a apropriação da função sexual e reprodutiva das mulheres pelos homens ocorreu antes da formação da propriedade privada e da sociedade de classes: nesse sentido, a transformação dessa capacidade em mercadoria está no alicerce da propriedade privada, portanto, a narrativa em defesa vida usada pelos deputados, é falaciosa.

E ao analisarmos os Projetos de Lei apresentados pelos deputados da extrema-direita, percebemos a associação perigosa entre arte e realidade. Entendemos que a realidade não é apenas uma coleção de fatos objetivos e concretos; ela também é moldada pelas expectativas e possibilidades que a acompanham.

No romance de Margaret Atwood, e na série de televisão adaptada do livro, temos uma visão distópica de uma sociedade que surge após um golpe de Estado. Esse cenário é um exemplo claro de como a combinação de crises políticas, manipulação de informações e medidas extremas podem levar à formação de um estado autoritário. E os projetos de lei aprovados pela Bancada da Bíblia nos aciona um alarme de que os nossos direitos constitucionais não estão sendo respeitados.

Em “O Conto da Aia”, um grupo de extremistas matando juízes da Suprema Corte e culpando grupos radicais islâmicos pelo crime. Em meio à crise, as Forças Armadas assumem o controle do país, iniciando um regime de repressão violenta contra opositores e desencadeando uma guerra civil.

O novo regime estabelece uma teocracia totalitária baseada em uma interpretação distorcida de princípios bíblicos, resultando em uma sociedade altamente hierarquizada e repressiva. Há uma supressão de direitos civis básicos, especialmente os das mulheres, são severamente restringidos. As mulheres são divididas em classes rigidamente definidas e privadas de autonomia e direitos.

Tanto no conto, como na forma de agir da extrema-direita golpista do Brasil, há uma manipulação de crises para obter poder. O paralelo também se apresenta na criação de um estado de medo constante, como tática eficaz para desmobilizar a resistência e consolidar o poder.

Embora “O Conto da Aia” seja uma obra de ficção, ela ressoa com diversas ações da extrema-direita, sobretudo após o Projeto de Lei 1904/2024, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, que propõe alterações significativas no Código Penal brasileiro, equiparando o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples, inclusive nos casos de gravidez resultante de estupro. O projeto prevê punições severas com penas de reclusão de seis a 20 anos. Nesse sentido, temos uma Câmara de Gilead no Brasil?

Para refletirmos com mais profundidade acerca dessa analogia, torna-se necessário um segundo momento para que possamos compreender qual o novo cenário nacional e para nos situarmos em nossa realidade concreta, precisamos fazer uma análise cuidadosa dos movimentos e contradições do presente e precisamos ter uma capacidade de prever cenários futuros. Agir, portanto, pressupõe antecipar esses cenários, planejar de acordo e estar preparado para adaptar-se às mudanças. Isso proporciona uma base sólida para decisões mais informadas e eficazes, aumentando a probabilidade de alcançar resultados desejáveis e mitigar riscos potenciais.

Com isso podemos prever que os deputados da extrema-direita representam uma ameaça, tanto para as pessoas mais vulneráveis da nossa sociedade, como para o conjunto de direitos democráticos conquistados historicamente com muita luta social e política.

A mudança na configuração da esfera pública, marcada por discursos de violência, dogmas religiosos e a proliferação de desinformação, preconceitos e intolerância, apresenta desafios significativos para as democracias contemporâneas. Entender e enfrentar essas dinâmicas é crucial para promover uma sociedade mais justa, inclusiva e informada.

Essa transformação radical da esfera pública, é atribuída ao surgimento de um novo formato do sistema socio metabólico do capital, baseado no mercado de comportamentos futuros. Este mercado é criado a partir da coleta massiva de dados pessoais por grandes empresas de tecnologia e se articula com a proliferação de serviços e espaços virtuais fechados.

Este novo formato produtivo se caracteriza pela coleta e análise de dados pessoais para prever e influenciar comportamentos futuros. Isso inclui: dados de consumo; dados sobre preferências pessoais; dados sobre as inclinações político-ideológicas e dados sobre sentimentos e emoções.

Também ocorre através da coleta de informações pessoais. Grandes empresas de tecnologia, como Google, Facebook e Amazon, têm acesso a vastas quantidades de dados pessoais. Esses dados são coletados através de redes sociais, do histórico de navegação, dos aplicativos e dispositivos conectados e dos serviços de localização com informações obtidas através de dispositivos móveis.

Esse conjunto de dados formam o Mercado de Comportamentos Futuros. Nele, as empresas utilizam esses dados para criar perfis detalhados dos usuários e prever seus comportamentos futuros. Isso permite uma publicidade direcionada, a manipulação de opinião, e o desenvolvimento de produtos e serviços que atendem às necessidades e desejos previstos dos consumidores.

Como consequência ocorreu uma multiplicação de serviços e espaços virtuais de interação “fechados” ao escrutínio público, o que inclui: grupos privados em redes sociais, onde discussões e troca de informações ocorrem fora do alcance do público geral. Plataformas de mensagens como WhatsApp e Telegram, que permitem comunicações privadas e em grupo. Comunidades online com fóruns e fechados onde indivíduos com interesses ou crenças semelhantes se reúnem.

À vista disso, a maioria das pessoas agora forma suas opiniões em espaços virtuais fechados, o que tem várias implicações: Echo Chambers, que é a tendência de as pessoas se envolverem apenas com aqueles que compartilham suas opiniões, reforçando crenças pré-existentes. Polarização com o aumento das divisões sociais e políticas, à medida que grupos se isolam em bolhas ideológicas. Dificuldade de verificação, pois a falta de escrutínio público torna difícil verificar a veracidade das informações compartilhadas.

Os impactos na esfera pública são análogos à Aia. Há uma privatização da Informação importantes, que passaram a ocorrer em espaços inacessíveis ao público geral e ao escrutínio. Maior capacidade de manipulação de opiniões e comportamentos por parte de grandes empresas e atores políticos. Redefinição do debate público, visto que o modelo democrático de debate público, aberto e verificável, é substituído por interações fragmentadas e fechadas.

E a utilização programada de recursos digitais para selecionar perfis influenciáveis e personalizar mensagens revolucionou a oferta de produtos e ideias sobre o controle da extrema-direita. Isso resultou em um ambiente onde a solidez da opinião pública se desintegrou em um mar de informações personalizadas, falseadas e frequentemente fragmentadas. Para navegar essa nova realidade, é fundamental entender os mecanismos por trás desses processos e desenvolver estratégias para promover uma esfera pública mais democrática.

Inferimos que existe uma complexidade das decisões políticas e de voto na era digital, mostrando que fatores econômicos e sociais, embora sendo os importantes, não são mais os únicos determinantes. O impacto da miserabilidade, desemprego e precarização do trabalho cria um ambiente propício para mudanças políticas, mas essas mudanças só ocorrem se as pessoas voltarem a identificar o campo progressista e democrático como o caminho confiável para a transformação estrutural.


Ligia Maria Bueno Pereira Bacarin é da equipe de comunicação do Geração 68. Militante do Psol. Professora de História na rede estadual do Paraná e professora da pós-graduação na rede privada de ensino. É doutora em Educação e especialista em Educação Especial.


Resposta

  1. Avatar de Claudia de Arruda Campos

    Artigo soberbo. Vai muito além da superfície do problema que lhe dá origem.

    Poderia ser enxugado e mais centrado no problema de fundo para fins de divulgação ampla

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