De início, é oportuno revisitar algumas palavras ou expressões que se no senso comum são comumente tidas como sinônimas, do ponto de vista conceitual expressam significados distintos. Por exemplo, as palavras educação e ensino ou educação escolar. Enquanto a segunda refere-se a aquisições possibilitadas pela frequência à instituição escola, a primeira expressa um processo muito mais amplo, que além de englobar o ensino, diz respeito também a conhecimentos e habilidades viabilizados por espaços que extrapolam a escola, atividades artísticas e culturais em geral, literatura, teatro, cinema, atividades esportivas e assim por diante. Ou seja, ambas expressam conceitos muito importantes, mas sem dúvida trata-se de processos bastante distintos, sobretudo em abrangência.
Outra diferenciação oportuna é entre educação escolar ou ensino e treinamento ou adestramento. Grosso modo, quando falamos de adestramento referimo-nos geralmente a animais, mas em se tratando de pessoas, tanto o treinamento como o adestramento podem assemelhar-se, dependendo da forma como se dão os processos de ensino e de aprendizagem, as metodologias utilizadas. Propicia-se educação ou educação escolar de qualidade se privilegiamos a persuasão, ou seja, quando optamos por meios que potencializem a chegada a situações de consentimento ou adesão, sobretudo pelo fato de nos valermos de argumentação. O mesmo não se pode dizer quando se trata de treinamento ou adestramento, situações nas quais vigora a alegação, prevalecendo a receita, o percurso imposto, o fazer como manda a autoridade constituída. Vale dizer, a argumentação fundamentada é caminho eminentemente democrático; o treinamento e ou adestramento, em se tratando de seres humanos, geralmente não supõe conduta democrática, mesmo não ignorando o treinamento como prática de aperfeiçoamento.
Isso posto, analisemos brevemente o “Programa Escola Cívico-Militar” no estado de São Paulo, tendo como referência a Lei Complementar (LC) n° 1.398, de 28/5/2024, e, em observância à boa técnica, também o Projeto de Lei Complementar (PLC) n° 9, que teve entrada na Assembleia Legislativa (Alesp) em 8/3/2024, com pedido do Executivo de tramitação urgente, sendo que o pleito do governador foi prontamente atendido, pois em exatos 82 dias (!) a referida LC já havia sido aprovada no Legislativo. Tanto o PLC como a LC contém promessas que não se coadunam com a práxis de seus proponentes e apoiadores, que são as forças de direita e de extrema direita; por exemplo, quando é mencionada a pretensão do desenvolvimento de “um ambiente escolar adequado e atuante no enfrentamento da violência promovendo a cultura da paz para que os estudantes sintam-se protegidos” (parte final da Exposição de Motivos do PLC); ou quando se afirma “observar os princípios éticos de respeito aos direitos humanos, a proteção à dignidade humana, o zelo pelos direitos fundamentais de toda a comunidade escolar e o respeito à diversidade” (LC, art. 7°, VI); ou seja, considerado o contexto, esses conteúdos soam como fraude semântica, propaganda enganosa, estelionato ideológico, pois é de conhecimento público que tais narrativas não são próprias dessas forças políticas.
Por outro lado, o “Programa Escola Cívico-Militar” explicita uma concepção nada sistêmica, fragmentando a condução da educação escolar em 1) “gestão e organização do trabalho escolar, pautadas na gestão pedagógica eficiente, conduzida por servidor efetivo da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo ou, quando o caso, de secretaria municipal de educação” (LC, art. 4°, II); e 2) “gestão das atividades extracurriculares cívico-militares, conduzida pela Secretaria de Segurança Pública” (LC, art. 4°, III). Assim, o processo educacional deixa de se constituir como um todo integrado, que inclui planejamento, implementação, avaliação das atividades educacionais, cuja visão cíclica implica um processo por suposto participativo e inclusivo, para desembocar numa visão fragmentada do processo educacional comandado por duas instâncias opostas por natureza, uma orientada pela persuasão, outra pela coerção. E, para além das eventuais discordâncias acerca dessas concepções, se fosse o caso, caberia até questionar a viabilidade de gestão “educacional” da Secretaria da Segurança Pública, consideradas as suas dificuldades de condução democrática das próprias responsabilidades que lhes são inerentes.
É importante registrar ainda o aspecto assaz capcioso da LC 1.398/2024. Seguem alguns excertos, a título de exemplos. O “Programa Escola Cívico-Militar” é apresentado como sendo “complementar às políticas de melhoria da qualidade da educação básica em âmbito estadual e municipal e não implicará o encerramento ou substituição de outros programas” (art. 1°, § 2°). Vale dizer, tenta-se passar a ideia de um “complemento” supostamente positivo. “Escola Cívico-Militar: instituição pública de ensino que passou por processo de conversão para o modelo cívico militar ou unidade nova autorizada a funcionar nesse modelo” (LC, art. 2°, I). Mesmo que tenhamos uma noção do que se trata, em nenhum momento é explicitado o real significado do modelo em questão. Quanto aos critérios de seleção das escolas para participação: “aprovação da comunidade escolar para implantação do Programa, por meio de consulta pública; índice de vulnerabilidade social; índices de fluxo escolar; índices de rendimento escolar” (LC, art. 8°, I a IV, respectivamente). Dentre outros, esses excertos revelam que, apenas quando interessa, independente de conseguir-se ou não, apela-se para a tentativa de persuasão.
Em síntese, o modelo de escolas cívico-militares quando muito concebe o ensino com teor tecnicista, onde prevalece a tutela do condutor/monitor como autoridade constituída – a(o) docente e a(o) militar da reserva – cujo trabalho “educativo” tem como referência o treinamento, senão o adestramento, com a preocupação central de reproduzir em série pessoas resignadas, disciplinadas, literalmente submissas à hierarquia, que talvez faça algum sentido em se tratando da caserna, do meio castrense, mas jamais para a formação de pessoas progressivamente conscientes de si e do meio ao qual estão submetidas de acordo com uma concepção de educação escolar de qualidade social, sendo que
A qualidade social implica providenciar educação escolar com padrões de excelência e adequação aos interesses da maioria da população. Tal objetivo exige um grande esforço da sociedade e de cada um para ser atingido, considerando as dificuldades impostas pela atual conjuntura. De acordo com essa perspectiva, são valores fundamentais a serem elaborados: solidariedade, justiça, honestidade, autonomia, liberdade e cidadania. Tais valores implicam no desenvolvimento da consciência moral e de uma forma de agir segundo padrões éticos. A educação de qualidade social tem como conseqüência a inclusão social, através da qual todos os brasileiros se tornem aptos ao questionamento, à problematização, à tomada de decisões, buscando as ações coletivas possíveis e necessárias ao encaminhamento dos problemas de cada um e da comunidade onde vivem e trabalham. Incluir significa possibilitar o acesso e a permanência, com sucesso, nas escolas, significa gerir democraticamente a educação, incorporando a sociedade na definição das prioridades das políticas sociais, em especial, a educacional. (Plano Nacional de Educação – Proposta da Sociedade Brasileira, 1997)1
Vale lembrar que o conceito de qualidade social foi forjado em meados dos anos de 1990, quando a sociedade brasileira estava submetida a várias políticas educacionais de teor neoliberal, naquele período popularmente chamada de qualidade total, numa tentativa de impor à educação um tratamento de cunho mercadológico, mas ainda presente nos tempos atuais com nomes diversos.
À guisa de fecho das considerações aqui apresentadas, acrescento três outras ponderações. A primeira delas diz respeito à total inadequação do modelo de escola cívico-militar para a formação de estudantes paulistas e brasileiras(os) – tal modelo só pode mesmo interessar às forças políticas de direita e de extrema direita que o propuseram e aprovaram; a segunda refere-se ao parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) sobre a inconstitucionalidade do “Projeto Escola Cívico-Militar” em ações protocoladas no Superior Tribunal de Justiça (STJ) pelo PSOL e o PT, o que dá um certo fôlego para manifestações críticas da sociedade – esperamos que isso aconteça!; e a terceira trata-se de um registro pertinente: é bastante compreensível que Cláudia Arruda Campos (Kauê) tenha ficado indignada frente à aprovação do referido projeto no estado de São Paulo e tenha provocado: “Tudo bem, somos contra, mas o que se está fazendo para impedir sua efetivação?”.
César Minto foi professor de Ciências na rede estadual paulista durante 17 anos; professor de Didática e Metodologia do Ensino na UFSCar por 10 anos e professor de Política Educacional na FE-USP de 1999 a 2021 até aposentar-se. Exerceu atividades sindicais, tendo sido duas vezes presidente da Adusp-S. Sind. e foi também da Diretoria do Andes-SN.
*Publicação em que o(a) autor(a) apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados ou livre expressão artística ou filosófica.** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do G68.
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