Laura

Tomás Togni Tarquinio

O primeiro contratempo como clandestino ocorreu logo após minha prisão preventiva ser decretada pela Justiça Militar.

Ao saber da situação difícil, Laura se propôs a me abrigar durante a Semana Santa. Morava em um sobrado na Vila Mariana, que o dividia com duas colegas da faculdade de medicina.

Nós nos aproximamos durante uma manifestação contra a guerra do Vietnã diante do consulado americano na avenida Paulista. Como ainda ocorre mundo afora, queimamos a bandeira americana aos gritos de Viva Ho Chi Minh, “yankees, go home”. O evento degenerou em pancadaria com direito a cassetetes e bombas de gás lacrimogêneo distribuídas a granel pela Polícia Militar. Fugindo da carga dos fardados, nós nos refugiamos em um edifício. Um senhor gentilmente nos socorreu abrindo a pesada porta do imóvel.

Após o entrevero, fomos ao cinema. Nossas mãos se enlaçaram na sala escura, despontando uma cumplicidade até então latente. A beleza de Laura não passava desapercebida nem mesmo a olhos desavisados como os meus. Felina, esguia, tez ensolarada, olhos oblíquos e cabelos igualmente negros denunciavam a presença de cromossomas indígenas em seu corpo, talvez preados por bandeirantes lá pelas bandas de Baependi, origem da família.

A hospedagem seria uma ocasião para testarmos nossas “afinidades eletivas”, confirmar se a atração amorosa seria de fato regida por leis da natureza, à semelhança das reações químicas que compõem e decompõem a matéria, tal como mestre alemão expôs em sua obra, creio.

Laura, entretanto, colocou uma condição: manter em segredo minha qualidade de proscrito face às colegas. Eu seria apresentado como amigo de Jaú em visita a capital. Embora pouco escolado na arte de dissimulação, aceitei a proposta. Mas a estadia durou apenas uma noite.

Antes de deixar a morada, compartilhei o café da manhã com as três lindas criaturas. Ao retornar ao sobrado no final da tarde, minha situação de hóspede bem-vindo havia mudado da água para o vinho. Laura estava transtornada. Se até então seus gestos eram delicados e lentos, passaram a rudes e estouvados. Sem meias palavras, foi direto ao assunto.

“Você tem que ir embora! Não pode mais ficar aqui. As meninas já sabem de tudo. Quando saiu de casa, você cruzou com uma amiga que te reconheceu. Elas estão aterrorizadas, eu desnorteada. Dizem que a tua presença nos coloca em risco. Estão indignadas, não foram consultadas. Mentirosa, me chamaram de irresponsável e leviana! A história de amigo de família… Tem que partir, não pode mais ficar aqui”.

Pela primeira vez, eu me encontrava nessa situação desagradável e não seria a única. Incidentes como esse eram previsíveis nas circunstâncias em que vivia. Até então, quem me acolhia sabia dos riscos que corria ao prestar solidariedade. Não foi o que aconteceu naquele sobrado. Eu me dei conta naquele momento que a dissimulação, própria a clandestinidade, é incongruente com o fato de colocar em risco pessoas que nada têm a ver com a luta política. Paradoxo difícil de ser evitado.

As “afinidades eletivas” dissiparam-se por encanto. Em um segundo, a carruagem virou abóbora. Embaraçado, constatando que minha presença causava não só pavor, mas desavenças entre as meninas, falei poucas palavras, não havia muito o que dizer: “Obrigado pelo gesto e coragem. Peço desculpas pelo constrangimento. Espero que o incidente não comprometa a amizade entre vocês”.

Ato contínuo, recolhi os poucos pertences que cabiam na sacola de lona encardida, minha companheira de nomadismo. Preste a deixar a casa, a campainha do sobrado tocou. Com ares de quem aguardava uma visita, Laura se dirigiu a janela: “É o Alfredo, um parente distante. Ele vai agora para Bocaina passar a Semana Santa. Veio buscar um pacote para minha mãe que mora em Jaú, no caminho. Talvez você possa ir com ele. Ele vai topar, tenho certeza. Se der certo, você terá onde ficar durante uns dias para conhecer a região. É uma pessoa simpática. Mas não diga nada sobre política, não sei se pensam a mesma coisa”.

Hesitava em aceitar, estava inquieto e sem alternativas. Partir de maneira intempestiva era temerário. O sexto sentido que havia adquirido durante os meses de fuga disparou o alarma: prudência, prudência! Caso partisse com Alfredo, eu teria que estar preparado para qualquer imprevisto – tentar antecipar o que poderá ocorrer talvez seja o único trunfo do clandestino. Eu lhe adiantei que não dispunha de dinheiro suficiente para retornar a São Paulo, caso fosse necessário. Se novamente fosse atropelado pelo inesperado, teria que afrontar uma viagem de volta de um lugar desconhecido, acompanhado de pessoa igualmente desconhecida e sem um centavo no bolso.

Laura não titubeou. Tirou da bolsa um punhado de notas e as enfiou na minha sacola. Aceitei o gesto, sem saber até hoje se corei. Tal como me encontrava, vivendo sem eira nem beira, não podia prescindir de ajudas de quem vinha ao meu auxílio. Assim, minha clandestinidade aos poucos se transformava em estado de indigência física, afetiva e pecuniária. Como dizia o camarada Mao Tse Tung: “a revolução não é um banquete”. A clandestinidade tampouco.

Enquanto se dirigia à porta, Laura, acrescentou com ar desprendido:
“Era para comprar livros de anatomopatologia importados. Há dinheiro suficiente para comer e pegar ônibus”.

Entrou na sala um rapaz de baixa estatura cuja pele lívida contrastava com bigodes negros bem aparados. As nuances da vestimenta “ton sur ton”, gravata bege afrouxada, colarinho aberto, terno de cambraia de linho e sapatos bicolor denotavam elegância negligente. O que eu tinha em comum com o escriturário era a idade: 22 anos.

Laura nos preparou um lanche e não mais parecia aflita. O transtorno que marcara seu rosto havia se dissipado em proveito de uma faceta serena. Agora falava normalmente sem tropeçar nas palavras. Ela passava de um assunto a outro sem pressa, quase que um monólogo. Descreveu as dificuldades de se adaptar ao plantão noturno do hospital, o falecimento de uma idosa longe dos familiares e revelou sua intenção de viajar ao exterior. Até que, dirigindo-se a mim, introduziu o tema que lhe interessava: “Você conhece Bocaina? Uma cidadezinha pacata diferente das demais. A matriz de São João Batista está decorada com quadros sacros de Benedito Calixto. Salomé recebendo a cabeça de São João Batista me horroriza até hoje. Era sua tela preferida. Imagina, escolher a cabeça decapitada de um justo em bandeja de prata, ao invés da metade do reino de Herodes, nem Freud explica isso. Muita gente vêm a Bocaina para vê-las. Também para ver o rio Jacaré-Pepira com suas lindas corredeiras que passam por Brotas. As águas mais límpidas do Estado. E tem mais: Bocaina está no Centro Geográfico do Estado de São Paulo. Basta olhar no mapa”.

Comecei a divagar sobre qual seria a importância do Centro Geográfico. Tanto mais que havia lido o romance “Quarup”, sucesso na época. Em algumas páginas, Antônio Callado descreveu a missão de geógrafos ao Planalto central destinada a encontrar o Centro Geográfico do Brasil. Por ironia da natureza ou do autor, encontraram o local imaginário ocupado por um descomunal formigueiro. Era a morada de ferozes artrópodes ávidos de tudo aquilo que havia de comestível ao redor. Só voltei à realidade quando Laura foi ao assunto: “Alfredo, você não quer levar meu amigo para Bocaina. Ele entregou seu apartamento alugado e o novo somente estará vago na semana próxima. Ficará mal acomodado na sala. Uma amiga chegará amanhã a São Paulo. Vamos ficar apertados”.

Laura foi persuasiva e a história colou. Alfredo aceitou sem colocar objeções. Ao contrário, mostrava certa satisfação por levar alguém para conhecer sua cidade.

Preste a entrar no Fusca diante do sobrado, Laura surgiu na janela. Ela me chamou a pretexto de me entregar algo que havia esquecido. Subi as escadas sem ter ideia do que poderia ser. Ao entrar na sala, ela se precipitou sobre mim, me abraçou com as forças de seus braços e me beijou. Seus lábios secos se esfregaram aos meus. Um beijo sôfrego e desastrado como nunca mais seria beijado. Um beijo insípido bem diferente daqueles que trocamos em nossa única noite de amor.

Laura se despedia, não mais podia seguir em minha companhia, havia chegado ao limite. Com desgosto, constatei que era uma pessoa funesta, carregava uma desdita que espantava quem me queria.

Muitos anos depois, a presença esquecida de Laura voltou inesperadamente à tona. A mesma sensação de tristeza me invadiu quando assisti José Carreras interpretar “E lucevan le stele” de Puccini, a mais pungente ária da lírica italiana. Lembrei-me dos lábios secos de Laura, do beijo de desalento, do beijo amargo de amor fugaz da mulher que nunca mais tive notícias.


Tomás Togni Tarquinio

Formado em Antropologia e Prospectiva Ambiental na França. Desde 1977, trabalhou em diversas instituições francesas e europeias pioneiras sobre: energia, ecologia política, meio ambiente, decrescimento e colapso da sociedade termo-industrial. Foi Secretário do Governo do Amapá, por ocasião da execução do pioneiro Projeto de Desenvolvimento Sustentável do Amapá (PDSA); trabalhou no MMA e Senado.


Respostas

  1. Avatar de Rosângela Maria Pires

    Que bela e triste história de Tomas Togni Tarquinio! Escreve gostoso, prende pelo tem e pelo encanto com que relata a fugaz história com Laura! Obrigada! Gostei demais! ✊🏽🌹👊🏽

  2. Avatar de Jose roberto veronesi brochado

    Como é importante ter fatos passados, verdadeiro ato de revolucionário, que hoje podemos dizer que ajudou a consolidar a democracia.Parabéns Thomas e Laura🙏🙏👍

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