Presidente Allende

Tomás Togni Tarquínio

Salvador Allende Gossens morava em um bairro elegante de Santiago próximo a Cordilheira. Sua residência burguesa encerrava objetos de arte dignos de um mecenas avisado. Uma expressiva mostra de mestres da pintura moderna Latino-americana do século passado preenchiam as paredes, Matta, Siqueiros, Guayasamin, Portocarrero. Ibéricos como Miró e Picasso também faziam parte de seu acervo.

Afora os móveis refinados, a sala principal continha peças pré-colombianas combinadas a estátuas chinesas de marfim. Salvador Allende tinha especial afeição por objetos raros que enfeitavam sua morada. Velho caminhante da esquerda chilena, admirador de Mariategui, solidário de Arbentz, Bosch e Fidel, Allende amealhou as obras de arte ao longo de sua trajetória política iniciada ainda jovem.

Fotos de Ho-Chi-Minh e do Presidente Pedro Aguirre Cerda – protagonista da Frente Popular de 1938 e de quem fora Ministro da Saúde -, davam um toque político a decoração do escritório. Sua biblioteca continha clássicos da literatura e ciências sociais. Com um certo laivo de orgulho sempre exibia o exemplar do “Guerra de Guerrilhas” autografado pelo heroico guerrilheiro assassinado na Bolívia aos 40 anos. Em poucas palavras, “El Che” o dedicou “para aquel que, por otros médios, trata de obtener el mismo”.

O Presidente Salvador Allende Gossens nasceu em uma família de notáveis em Valparaíso, mítica cidade portuária pendurada às margens do Pacífico a poucos quilômetros de Santiago. Ele viveu sessenta e cinco anos.

Seu avô, Ramón, alcunhado “el Rojo”, político, médico e sereníssimo Grande Mestre maçom ocupou uma cadeira de deputado no Congresso chileno. Militou infatigavelmente pela separação da Igreja do Estado, objetivo finalmente alcançado em 1925. Don Ramón ajudou a fundar as primeiras escolas leigas do país, trilhando caminho semelhante ao Jules Ferri que, ao final do Século XIX, instituiu a escola pública leiga, gratuita e obrigatória na França. Em retribuição ao seu anticlericalismo contumaz, foi agraciado pela Santa Madre Igreja com a Comenda da Excomunhão.

O Presidente Salvador Allende era filho de Salvador Allende Castro e Laura Gossens Uribe. Seu pai também foi contaminado pelo vírus político. Advogado e notário, foi membro do Partido Radical. Allende estava preso e prestes a terminar o curso de medicina quando seu pai faleceu ainda jovem. A Corte Marcial o autorizou a assistir aos funerais do progenitor. Diante do corpo do finado pai, o futuro presidente do Chile discursou jurando fidelidade à causa dos excluídos. Cumpriu a promessa.

Já formado, Allende dedicou pouco tempo à medicina. Especializou-se em medicina legal. Vez por outra se vangloriava de haver praticado um milhar de autópsias em Valparaiso. Após tal façanha, nunca mais exerceu a profissão. Foi eleito deputado aos 29 anos, Ministro da Saúde aos trinta e, pela primeira vez, postulou ao cargo de Presidente, em 1952, para finalmente eleger-se em 1970, após três tentativas malogradas.

***

Às vésperas do golpe, Allende jantou com a família, ministros e assessores próximos. Com sua equipe, discutiu e retocou o discurso que, se tivesse pronunciado, seria o mais importante de sua carreira. A alocução estava prevista pela manhã do 11 de setembro de triste memória. Apresentaria uma proposta destinada a debelar a dramática crise institucional na qual o país estava mergulhado. Chamaria o povo chileno a se manifestar através de plebiscito: se vencesse, continuaria; se perdesse deixaria o cargo de Presidente da República. Allende compreendeu que, àquela altura, o impasse político estava próximo do vácuo, situação inaceitável para qualquer poder.

Seus colaboradores ficaram de acordo com a consulta à população através de saída institucional pela via eleitoral. Um “vai ou racha” de sorte que, após o escrutínio, ou seguiria fortalecido no cargo, ou o deixaria pela decisão do povo.

Mas, naquelas primeiras horas do dia 11 de setembro de 1973, Allende já não mais dispunha do tempo necessário para apresentar a proposta. Na calada daquela noite, os militares iniciaram o golpe em Valparaiso. Horas depois, terminaria seus dias deixando uma mensagem de esperança.

Seu governo foi mais radical do que os de Lenin e Mao. Em ano e meio, estatizou o setor do cobre sem pagar um centavo às empresas americanas, bem como todo setor bancário e o carvão. Interveio nas 80 maiores empresas industriais do país nomeando os dirigentes com apoio sindical, além de terminar a reforma agrária iniciada pelo Partido Democrata Cristão. Nas últimas eleições democráticas de março, pouco meses antes do golpe e a despeito do caos econômico causado pela direita com dinheiro da CIA, Allende aumentou sua base de apoio eleitoral. A Unidad Popular obteve quase 50% dos votos, bem acima dos 33% que o elegeram Presidente. Deixou a vida no Palácio La Moneda. E não podia ser diferente aos olhos de capitalistas do calibre de Kissinger e seus vassalos internos.


Tomás Togni Tarquínio

Formado em Antropologia e Prospectiva Ambiental na França. Desde 1977, trabalhou em diversas instituições francesas e europeias pioneiras sobre: energia, ecologia política, meio ambiente, decrescimento e colapso da sociedade termo-industrial. Foi Secretário do Governo do Amapá, por ocasião da execução do pioneiro Projeto de Desenvolvimento Sustentável do Amapá (PDSA); trabalhou no MMA e Senado.


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