Lígia Bacarin
Recentemente, uma decisão judicial no Rio Grande do Sul determinou que o filho de um militante político, que cometeu suicídio durante o período da ditadura militar, receba uma indenização de R$ 100 mil. Esse caso, que envolve a perseguição de um membro do antigo PTB e o subsequente exílio da família no Uruguai e Chile, reacendeu debates sobre a legitimidade das reparações às vítimas do regime militar. Muitos questionam o uso de recursos públicos para tais indenizações, enquanto outros negam a existência da ditadura ou minimizam seus impactos. Este artigo tem como objetivo explicar por que essas indenizações são não apenas legais, mas moralmente necessárias.
*Contexto histórico e a necessidade de reparação*
A ditadura militar no Brasil, que se estendeu de 1964 a 1985, foi marcada por graves violações dos direitos humanos. De acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), aproximadamente 434 pessoas foram mortas ou desapareceram em decorrência da repressão estatal, sem contar milhares de casos de tortura, prisões arbitrárias, exílios e outras formas de perseguição. O Estado brasileiro, por meio de seu aparato repressivo, violou sistematicamente direitos fundamentais, como o direito à vida, à integridade física, à liberdade de expressão e à segurança pessoal.
As indenizações às vítimas desse período são uma forma de reparação baseada nos princípios de justiça transicional, que busca enfrentar os legados de violações de direitos humanos em contextos de transição de regimes autoritários para democracias. Segundo a ONU, essas reparações incluem medidas como restituições, compensações e garantias de não repetição, visando não apenas reparar o dano sofrido, mas também promover a reconciliação nacional.
*Fundamentação legal das indenizações*
As indenizações às vítimas da ditadura militar no Brasil estão amparadas legalmente pela Lei nº 9.140/1995 e pela Lei nº 10.559/2002. A primeira, conhecida como Lei dos Desaparecidos, reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro pelas mortes e desaparecimentos ocorridos durante o regime militar, criando a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e estabelecendo o direito à reparação para familiares dessas vítimas.
Já a Lei nº 10.559/2002, que regulamentou o artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), criou o regime de anistia para aqueles que foram perseguidos por motivação política. Essa lei estabelece, entre outras coisas, o direito à reparação econômica para aqueles que tiveram seus direitos violados pelo Estado. O artigo 1º da referida lei é claro ao afirmar que:
“É concedida anistia política a todos aqueles que, no período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988, foram impedidos de exercer, na plenitude, seus direitos, em decorrência de perseguições institucionais, motivadas por atos de exceção, de caráter exclusivamente político.”
Essas legislações não apenas reconhecem a responsabilidade do Estado pelos danos causados, mas também estabelecem um marco jurídico para a reparação, que inclui indenizações econômicas. A indenização de R$ 100 mil ao filho do militante que cometeu suicídio, portanto, não é uma concessão arbitrária, mas o cumprimento de um dever legal por parte do Estado brasileiro.
* A importância das indenizações na construção da memória e da justiça*
As indenizações às vítimas da ditadura não têm o objetivo de compensar financeiramente o sofrimento vivido, algo que, na prática, é impossível. Em vez disso, elas cumprem um papel simbólico fundamental na construção de uma sociedade que reconhece seus erros do passado e se compromete a não repeti-los. O Brasil, como signatário de diversos tratados internacionais de direitos humanos, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), tem a obrigação de promover a justiça e reparar as vítimas de graves violações de direitos humanos.
As indenizações também desempenham um papel crucial na preservação da memória histórica. Em um país onde há tentativas frequentes de negar ou minimizar os horrores da ditadura, como a tortura e as execuções sumárias, as reparações são uma forma concreta de afirmar a verdade histórica. Negar essa verdade ou se opor a essas indenizações é, em última análise, um ataque à memória das vítimas e uma tentativa de reescrever a história.
*Recursos públicos e a responsabilidade do Estado*
Uma crítica comum às indenizações é que elas são financiadas com recursos públicos, o que seria um “peso” para os contribuintes. Essa visão, no entanto, ignora o princípio fundamental de que o Estado, como responsável por essas violações, deve responder por elas. Os recursos destinados a essas indenizações não são um favor, mas uma obrigação legal e moral. Além disso, essas reparações são parte de um esforço mais amplo de justiça transicional, que inclui não apenas indenizações, mas também o direito à verdade e à memória, a reforma das instituições e garantias de não repetição.
As indenizações às vítimas da ditadura e seus familiares são uma expressão da responsabilidade do Estado em reparar as violações que cometeu. Elas são, portanto, uma parte essencial do processo de reconciliação nacional e de construção de um futuro onde os direitos humanos sejam plenamente respeitados.
*Conclusão*
As indenizações concedidas às vítimas da ditadura militar e seus descendentes não são meros pagamentos financeiros, mas representam um compromisso com a justiça e a memória histórica. Amparadas por leis nacionais e princípios internacionais de direitos humanos, essas reparações são uma forma de reconhecer os erros do passado e garantir que eles não sejam repetidos. Mais do que uma questão financeira, trata-se de um dever do Estado brasileiro para com aqueles que sofreram nas mãos de um regime autoritário. Negar esse direito é negar a própria história e os princípios fundamentais de justiça e democracia que sustentam nossa sociedade.
Ligia Maria Bueno Pereira Bacarin é professora de História na rede pública de ensino. Com mestrado em Fundamentos da educação e pós graduação em Educação Especial. Militante do Psol-PR e colaboradora nas mídias sociais da Geração 68.





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