Thomás Togni Tarquínio
Amarílio Vasconcellos de Oliveira nasceu em Londres na segunda década do século XX. Jornalista, publicista, roteirista, dedicou a vida à revolução, aos excluídos. Fez parte da direção do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Durante o período de legalidade após a Segunda Guerra, foi eleito vereador do Distrito Federal no Rio de Janeiro pelo Partidão.
Vivia com Rachel Cossoy e tiveram filhos de seus respectivos primeiros casamentos. Por ocasião da cisão do PCB, ele optou pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B). Foi responsável no Brasil pela Agência Xinhuá, ou Nova China. Após o golpe de 1964, ele e a esposa se exilaram na China. Com a vitória da Unidade Popular no Chile, em 1970, o casal retornou à América do Sul, para Santiago. Moraram um apartamento na Avenida Vicuña Mackenna cuidadosamente decorado com alguns objetos de arte chinesa, uma residência aberta a todos, chilenos, brasileiros, incluindo diplomatas da chineses.
Personagem visível do PC do B em Santiago, Amarílio publicava um boletim de informação sobre as ações do PC do B no Brasil. O último exemplar que editou continha reportagem sobre a guerrilha do Araguaia. Veiculava uma versão confiante, otimismo bem distante da realidade. Ele me pediu para distribuir uma centena de exemplares. Mas, não foi possível. No dia do golpe de Pinochet, tive de dar sumiço à publicação. Eu enfiei página por página dos exemplares nas frestas de uma parede de madeira oca do barraco no quintal. Aproveitei o embalo para esconder um revólver 32 e a caixa de balas que havia comprado; até hoje eu me pergunto a razão. Talvez ainda estejam, arma, munição e boletins no mesmo esconderijo. Ainda que a arma estivesse bem oculta, minha adrenalina subiu ao topo quando os carabineiros invadiram minha casa e me levaram preso ao Estádio Nacional – arena de esportes reconvertida em campo de concentração improvisado, onde fiquei três meses dormindo no vestiário.
Amarílio tinha relações com o Partido Comunista Revolucionário Chileno (PCR), tendencia maoista. Igualmente com membros da Unidade Popular, como Jorge Pacull, diretor de imprensa da Fundição de cobre Enami, com quem trabalhava. Através desses contatos, fui contratado para fotografar as principais minas de cobre recém estatizadas pelo governo de Salvador Allende. Visitei Chuquicamata, mina a céu aberto, impressionante cratera aberta no deserto de Atacama com seis quilômetros de diâmetro e novecentos metros de profundidade. Em Ranquaga, perto de Santiago, conheci um micro pedaço dos 3.500 quilômetros de galerias subterrâneas de El Teniente, mina encravada nas entranhas dos Andes. Nos confins da Terra do Fogo, percorri a pequena mina de Cutter Cove, jazida mineral mais austral do planeta.
Ainda hoje me resta intacta a imagem de “Panchote” e sua esposa, Índios Alacalufes, atracando no cais a piroga na qual viviam durante os doze meses do ano, sobre as águas frias e ventos frios dos canais austrais. A canoa rústica de sete ou mais metros de comprimento tinha uma pequena cobertura feita de peles de foca que protegia o casal das intempéries. Além de conter um braseiro sempre aceso, a embarcação abrigava uma dezena de cães com os quais Panchote e esposa compartilhavam a existência. Também aqueciam o barco e igualmente ajudavam na caça. Os Alacalufes foram talvez os últimos remanescentes das quatro tribos que habitavam a Terra do Fogo, todas barbaramente exterminadas pelos mesmos conquistadores, os de ontem e os de hoje. “Panchote” vinha mascatear o produto da caça e coleta com os trabalhadores, inclusive peles.
Eu observava perplexo esses nômades do mar que navegavam pelos fiordes, vagavam pelo hostil elemento líquido austral, se deslocando pelo emaranhado de canais, ilhas, ilhotas de difícil acesso, remando sobre águas premidas entre montanhas geladas e nevadas. Percorriam os mesmos trajetos que seus ancestrais abriram há milênios, pelos mesmos labirintos que se estendiam desde o arquipélago das Guaitecas, próximo a Ilha de Chiloé, até o Estreito de Magalhães, nada menos do que mil ou mais quilômetros.
Até então, eu supunha que nômades eram apenas povos que extraíam sua sobrevivência de terra firme. Jamais imaginara zíngaros sobre águas. Hoje, os poucos Alacalufes que ainda restam vivem em Puerto Eden, sedentários.
Retornando ao gentleman Amarílio, londrino de nascença, carioca da gema até a medula. Ele não se limitava a estender a área de influência do PC do B junto aos exilados, recrutar militantes para sua grei. Importava-lhe manter liames, criar redes de proximidade, ampliar o campo da esquerda, independente de filiação ou fidelidade partidária, como dizia. Organizou viagens de exilados para conhecerem a revolução chinesa. Com orgulho, mostrava a todos uma foto do casal ao lado de Mao Tse Tung que o recebeu sentado em uma poltrona. Osni Gomes, que também esteve preso em Santiago com a centena de brasileiros detidos, pagou caro pelo turismo político à China. A polícia brasileira, enviada ao Chile para interrogar os exilados detidos no Estádio Nacional, o identificou como integrante da comitiva. A polícia brasileira lhe aplicou choques elétricos, usou seu corpo como cobaia para instruir chilenos nas práticas eficientes de tortura.
Nos dias seguinte ao golpe, Amarílio conduziu em se carro Diógenes Arruda Câmara até a portada da embaixada chinesa em Santiago onde pretendia exilar-se. Arrudão foi o ilustre dirigente que, durante os anos de prisão de Luís Carlos Prestes, de 1935 a 1945, o secundou na direção do Partidão Com a cisão, Arruda foi para o PC do B. Amarílio retornou à porta da embaixada pouco depois para certificar-se a empreitada havia obtido sucesso. Mas, os chineses não a abriram. Amarílio recuperou assim Arruda, seu velho o companheiro de luta.
Em seguida, Rachel e Amarílio entraram na embaixada da Argentina de Santiago, país onde permaneceram por pouco tempo. Em Buenos Aires, ele foi vítima de uma tentativa de sequestro ao entrar no prédio onde morava. Salvou-se correndo e gritando socorro pela rua. Sabe se lá por qual órgão repressivo da América do Sul a ação foi praticada. Sem segurança, o casal retornou a Pequim.
Desde então, eu perdi contacto com o casal. Deixei o campo de concentração chileno quando fui para a França na condição de refugiado, graças a intervenção do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados e Apátridas. Cheguei em Paris durante os últimos dias do governo Pompidou. Eu me inscrevi na Sorbonne e consegui trabalho como fotógrafo em um centro de pesquisa sobre leucemia. O estabelecimento estava associado a Faculdade de Medicina da Universidade de Paris VI e situado no Hospital Saint Louis, próximo ao Canal Saint Martin. O edifício, construído por Henri IV em 1606, era destinado a conter uma epidemia que assolava o país. Aliás, ninguém conseguiu superar esse rei cabotino a propósito de oportunismo político. Ao trair os protestantes, em se convertendo ao catolicismo, Henri IV afirmou sem ruborizar: “Paris vale uma missa”.
Meu trabalho consistia em revelar fotos de células, cromossomas, núcleos, mitocôndrias, blástulas, DNA tiradas por pesquisadores em microscópios óticos e eletrônicos. Emprego apaixonante, sem dúvida. Como parte de meu currículo, prestei modestos serviços a dois Nobel de Medicina, Dausset e Seligmann, sempre paramentados em avental branco enquanto almoçavam na cantina ao lado dos demais mortais.
Um belo dia, a secretária do Centro de pesquisas me interpelou: “Monsieur le Professeur Bernard” precisa de ti agora para traduzir, vá imediatamente ao seu birô”. O Doutor Jean Bernard, um dos precursores de estudos sobre câncer de sangue na Europa, foi resistente e membro de três academias francesas: Medicina, Ciências e Letras. Personagem mediático, sua voz e imagem eram difundidas pelas ondas. Eu o cruzava pelos corredores sempre protegido por um “manteau” negro, faça sol ou chuva. “Un vrai mandarin de la recherche!”.
O médico, hieraticamente acomodado em sua escrivaninha velha de alguns séculos, tinha à sua frente, confortavelmente instalados em dois belos “fauteuils” Voltaire, Amarílio e Rachel. O principal especialista chinês diagnosticou leucemia. Na falta de tratamento adequado na China, o médico asiático encaminhou Amarílio ao francês – carta de recomendações às mãos. Ambos pesquisadores se conheciam, tinham acordos de cooperação cientifica. O prognostico não foi nada bom. As plaquetas estavam fora de controle e o tempo contado.
Com a anistia, o casal retornou ao Brasil. Amarílio faleceu logo em seguida. A enfermidade o venceu. Três meses depois, Rachel foi ao seu encontro, vítima de acidente de carro.
Tomás Togni Tarquínio

Formado em Antropologia e Prospectiva Ambiental na França. Desde 1977, trabalhou em diversas instituições francesas e europeias pioneiras sobre: energia, ecologia política, meio ambiente, decrescimento e colapso da sociedade termo-industrial. Foi Secretário do Governo do Amapá, por ocasião da execução do pioneiro Projeto de Desenvolvimento Sustentável do Amapá (PDSA); trabalhou no MMA e Senado.


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