Jean Marc von der Weid, setembro de 2024
Nascida Lopes de Azevedo Sodré, em 1918 no Rio de Janeiro, filha do médico e deputado federal (1933 – 1937) Fábio Sodré e de Irene de Souza Lopes Sodré, minha mãe descendia, pelos dois lados, de Irineu Evangelista de Souza, o visconde de Mauá, industrial e banqueiro, personagem da história econômica do Brasil nos tempos do império.
A família Azevedo Sodré tem origem nos Álvares de Azevedo, imigrantes portugueses chegados ao Brasil no início da segunda metade do século XIX, instalando-se em Maricá como produtores rurais. Em sucessivas gerações, o sobrenome Álvares sumiu e entrou o Sodré. Meu bisavô, também médico, Antônio Augusto, foi o primeiro dos Azevedo Sodré.
A família Souza Lopes descendeu também de Mauá, através de sua neta, Laura de Souza, casada com o comendador João Lopes e mãe da minha avó, Irene de Souza Lopes.
Dos quatro bisavôs só conheci a vovó Laura. Dos avós somente o vovô Fábio. Fomos criados com as recordações da minha mãe sobre estes ancestrais. Mauá era o exemplo de empreendedor, mas, sobretudo, de homem honesto “que faliu, mas pagou até o último centavo aos credores”. A contradição entre o sucesso e tino empresarial e a falência se explicava pela política: “o imperador e os proprietários rurais e escravagistas não engoliam nosso tataravô, o homem mais rico do Brasil, que começou a vida como caixa de um banco”, dizia minha mãe. Minhas contradições com o agronegócio vêm de longe…
Já o vovô Sodré nos era apresentado como modelo de homem público, Secretário de Saúde e de Educação, presidente da Câmara de Vereadores e prefeito do Distrito Federal. Entre outras realizações, mamãe lembrava que ele foi o criador das feiras livres, voltadas para facilitar a vida dos produtores familiares rurais do entorno da capital.
De um e de outro lado da família da minha mãe, a origem da fortuna eram as propriedades rurais, mas quase nada chegou até ela. Das muitas fazendas lembradas pela dona Regina, eu só vi uma, meio abandonada e à venda, quando era ainda guri de calças curtas.
Até hoje não sei como descendemos de um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro. Quando das celebrações do quarto centenário da fundação da cidade, em 1965, o governador Carlos Lacerda encomendou um estudo para identificar os descendentes das 18 famílias fundadoras e recebemos um certificado emitido pelo governo do Estado da Guanabara. Nosso antepassado era um certo Francisco Marins, criador de gado na região que hoje é Niterói. Os mapas mais antigos da cidade e vizinhanças assinalam um “curral de Francisco Marins”, mas não ficamos sabendo como este nome foi sendo alterado por gerações sucessivas até chegar a nós. Dona Regina ficou orgulhosa destas raízes, mas nenhum de nós levou isto a sério. Lembro de ter comentado com ela que termos 400 anos de antepassados no Brasil garantia que tivéssemos sangue indígena e africano nas nossas veias e isto seria motivo de orgulho.
A família da minha mãe tinha a política no sangue e ela transmitiu esta obsessão para mim. Meu avô era um homem conservador, como convinha ao filho de uma família de proprietários de terras, mas tinha alguns vieses progressistas. Era um democrata convicto, dentro da versão elitista de democracia e particularmente avesso ao envolvimento dos militares na política. Como parlamentar constituinte em 1933, o velho Fábio foi um defensor da criação do Ministério da Defesa, que seria assumido, necessariamente, por um civil e ao qual as Forças Armadas estariam submetidas. Lembro do meu avô justificando sua posição com a citação de uma personalidade francesa dos tempos da primeira Grande Guerra (Poincaré?): “a guerra é algo demasiado importante para ser deixada sob controle dos militares”. Nos anos trinta, isto lhe valeu o ódio do então ministro da Guerra de Getúlio Vargas, o general Góis Monteiro, que (pasmem) o desafiou para um duelo! Quando perguntei ao avô se não tinha receado um atentado e se andava armado ele respondeu que, como médico, não se sentia inclinado a matar gente e que a ameaça era mais bazofia do general, que ele tratava de jagunço, talvez pela sua origem alagoana.
O Congresso se reunia no Rio de Janeiro e minha mãe contava que costumava ir assistir as sessões da Câmara com a minha avó, não só quando o deputado Fábio Sodré subia na tribuna, mas também quando algum dos grandes oradores da época discursava. O fascínio pela política tomou corpo ainda na adolescência da dona Regina.
Cassado no golpe de 1937, que fechou o Congresso, meu avô meteu-se em vários complôs para derrubar Getúlio, embora outros familiares (primos) tenham participado do governo ditatorial. Um deles, Eduardo Macêdo Soares, na qualidade de ministro das Relações Exteriores.
O lado da família opositor ao regime Vargas, encenou vários episódios de enfrentamento com a polícia política, inclusive com a prisão de outro Macêdo Soares, detido no fortim da Ilha da Lage, da qual se evadiu para ir se esconder na casa dos meus avós. Ouvi da minha mãe a história sobre como a minha avó Irene comprou uma peruca e barba postiça para disfarçar o parente na fuga para a Argentina. As conspirações antigetulistas chegaram ao ponto de contrabandear fuzis winchester para armar rebeldes (os trabalhadores das fazendas da larga família e outros cúmplices), mas a polícia de Filinto Muller interceptou a maior parte. Meu avô guardou uma delas, que veio parar nas minhas mãos, mas isto é outra história.
Em outras palavras, desde jovem a dona Regina experimentou tanto as agruras de um regime ditatorial, como as aventuras da resistência democrática e, quando eu passei a ser perseguido pela ditadura, o choque maior foi para o meu pai suíço, oriundo de um país onde não havia guerras e revoluções desde os tempos napoleônicos.
Dona Regina foi, desde cedo, uma sobrevivente. Com meses de idade ela viajou, com seus pais, para a França, no final da primeira Guerra Mundial. Meu avô Fábio fez parte, como voluntário, da Missão Médica brasileira, que instalou em Paris um hospital para feridos de combate. A viagem de navio foi cheia de riscos e minha mãe contava como esteve perto de morrer em duas ocasiões. A primeira quando um submarino alemão perseguiu o navio onde viajava a missão médica, sem conseguir, finalmente, torpedeá-lo. A segunda foi muito mais grave. Após embarcar tropas senegalesas em Dacar, apareceu um forte surto da mortífera gripe espanhola no navio e minha mãe foi contaminada. Esteve tão enfraquecida que chegou a ser dada por morta ao chegar à casa dos meus bisavôs João e Laura Lopes, ele diplomata brasileiro em Paris. Minha tia-avó Luisinha, que morava com os pais, me contou que precisou colocar um espelho sob o nariz da minha mãe para ver se ainda vivia. Recuperou-se para se tornar uma criança saudável e ativa.
Um trauma familiar marcou muito a dona Regina. Seu adorado pai separou-se da minha avó Irene, em um escândalo que abalou o “high society” carioca quando ele foi viver com a sua secretária, em 1937. Minha mãe nunca tocou neste assunto, e só fui descobrir estes fatos quando uma sua amiga de infância me relatou o drama, em 1980. Em 1937, a separação de cônjuges era um tabu social e religioso e minha avó e mamãe vestiram-se de preto para receber visitas de pêsames, como se meu avô tivesse morrido. Vovó Irene, ou vovó I, como era conhecida na família, foi morar em uma fazenda em Itaipú, perto de Niterói, que ficou para ela na partilha, levando mamãe e os dois irmãos.
A fazenda produzia cachaça da melhor qualidade, pretensiosamente chamada de “brazilian rum”, além de outros produtos agrícolas. Ao que fiquei sabendo, meu avô tinha herdado várias fazendas, inclusive a Quitandinha, em Petrópolis, transformada em cassino e hotel nos anos 40, mas ele torrou a herança nas suas peripécias políticas e no financiamento de um hospício que era o que havia de mais moderno na época, inclusive abandonando os tratamentos de choque elétrico e adotando um regime semiaberto. A “boa sociedade” do Rio de Janeiro preferia se livrar dos seus dementes com internações permanentes e meu avô recebia pacientes sem recursos que ele bancava do seu bolso. Faliu, é claro.
Meu avô não voltou a participar da política depois da queda de Getúlio, dedicando-se à sua clínica psiquiátrica. Minha avó morreu jovem, em 1948, cinco anos depois do casamento da minha mãe, em 1943, do nascimento da minha irmã, em 1944, e do meu, em 1946. O velho Fábio só veio a conhecer meu pai e seus cinco netos quando houve uma reconciliação familiar, em 1951. Foram 14 anos de separação, muito sofridos pela minha mãe.
Dona Regina casou-se com meu pai, Freddy von der Weid, suíço, geólogo e engenheiro químico, vindo de uma família aristocrática de Fribourg. Ele serviu dois anos no exército suíço no início da segunda Guerra Mundial e chegou ao posto de capitão de artilharia. Desmobilizado em1941, ele decidiu emigrar para a Argentina, terra de sua mãe, Beatriz Saavedra Woodgate Mills, de mãe inglesa e pai espanhol. Esta outra avó tinha ido morar em Genebra por volta de 1910, para estudar violino, mas acabou abandonando uma carreira artística promissora para casar-se com o meu avô Charles, outro que torrou sua herança em investimentos malucos. Era uma história famosa na família do meu pai, a sociedade do meu avô com um amigo que queria fabricar lápis de cor. Após alguns anos como sócio capitalista, meu avô vendeu a sua parte ao amigo por uma bagatela por achar que não ia dar certo. Anos depois, o empreendimento tornou-se a maior indústria de lápis de cor do mundo, a multinacional Caran d’Ache. Haja erro de avaliação!
Meu pai viajou para Buenos Aires, segundo ele para sair da depressiva situação europeia, onde o nazismo e o fascismo dominavam a maior parte do continente, excluídos apenas a Inglaterra (combatente) e Suíça, Portugal e Espanha (neutros). Mas nunca chegou ao destino final, pois conheceu no navio um francês que tinha negócios de exploração de minério que o convidou para trabalhar com ele no Rio de Janeiro, escala da viagem. Apesar de contar com o potencial apoio da família (riquíssima) argentina, o velho preferiu a aventura de tentar a vida nos trópicos brasileiros, contando apenas com a sua formação profissional.
Como parte de seu trabalho, papai foi avaliar o potencial de uma jazida de argila refratária em uma fazenda perto de Niterói, o Engenho do Mato, hoje um bairro desta cidade. Lá conheceu a dona Regina e a paixão fulminante o reteve para sempre nestas plagas. Foi conhecer a Argentina e a parentada portenha na lua de mel e só voltou uma vez, para me visitar quando lá morei depois do golpe do Chile.
Minha mãe nasceu, portanto, no chamado “berço de ouro”, com direito a estudar na Inglaterra, embora não tenha feito universidade no Brasil por conta do autoexílio da mãe na fazenda, quando dona Regina tinha 19 anos. Mas, sem heranças tanto próprias como do seu marido, viveu dos salários do dr. Freddy, que nunca foram muito altos. Aprendeu a economizar e a levar uma vida espartana (em comparação com a sua infância e juventude), pois cinco filhos para criar não era coisa fácil. Além disso, dona Regina não quis colocar-nos em escola pública, por achar que havia gente mais necessitada precisando das vagas.
Morávamos no segundo andar de um edifício de quatro andares na rua Barão de Icaraí, no Flamengo. Na época era uma ruazinha pacata, quase toda de casas e arborizada, entre a avenida Oswaldo Cruz e a rua Senador Vergueiro. Quatro quartos e duas salas, todos pequenos. Um só banheiro, o que era um suplício eventual para algum dos sete usuários esperando uma vaga. Era uma residência simples, onde apenas alguns móveis herdados da minha avó recordavam eras de fartura. Minha mãe tocava violino, como a sogra, e o lazer do casal era a música clássica e a literatura e o nosso (os cinco petizes) a praia. Lá pelo ano de 1958, ela resolveu ajudar nas contas da casa e fez um concurso para cantora do coral da rádio Ministério da Educação e Cultura, juntando o útil com o agradável, pois era uma melômana, tal como o meu pai.
Por muito tempo, o vírus da política ficou reduzido a discussões frequentes sobre os acontecimentos do país, aos quais ela, e mais tarde os filhos, tinha acesso pelos jornais. Lembro que se liam muitos quotidianos lá em casa: Correio da Manhã e Diário Carioca, que eu ia comprar na banca da esquina desde os 7 anos, enquanto o meu pai trazia o Globo na hora do almoço. Mais tarde, adotou-se o Jornal do Brasil no lugar do Diário Carioca e manteve-se o Correio da Manhã e o Globo, que era um vespertino que saía cedo, ou um matutino que saía tarde.
Dona Regina era membro de uma enorme família que chegava a reunir 60 ou mais pessoas nas festas de Natal. Ela pertencia ao bloco antigetulista, herança das posições do meu avô. Havia uma única figura de esquerda na geração da minha mãe, sua prima e melhor amiga e que foi minha madrinha, tia Maria Adelaide, que se casou com um dirigente paulista do PCB, para horror de muitos parentes. Minha mãe divergia da prima, mas as duas se adoravam e nunca brigaram por política. Acho que contraí o vírus comunista na pia batismal.
Apesar de simpática ao udenismo do brigadeiro Eduardo Gomes, lembro que mamãe acabou votando em Juscelino Kubitscheck para presidente. Fui com ela e o velho até Itaipú, pois ela tinha tirado o título de eleitor ali e não o transferiu até a eleição de 1955. Depois de votar, enquanto eu empinava pipas na praia, ela confessou ao meu pai que, na hora H, tinha sido levada a votar no Jusça, empolgada pela mensagem de otimismo e confiança no futuro do Brasil que o mineiro assumia. Mas caiu no conto do vigário do populista Jânio Quadros, com a sua vassoura contra a corrupção. Meu pai, que não votava por ser estrangeiro, tinha péssima impressão do demagogo paulista, cuja retórica e gesticulação o lembrava as de Hitler dos anos trinta. Na tentativa de golpe dos generais contra a posse de Jango, ela ficou entre a frigideira e o fogo, pois tinha sido educada na desconfiança dos militares e, por outro lado, temia o “novo Getúlio”, que poderia reeditar a ditadura do caudilho.
Nesta idade, eu já estava acompanhando a política nacional pelos jornais, já que lá em casa não havia televisão nem rádio. A primeira era muito cara e o segundo era deseducador, na opinião dos meus pais. Eu e minha irmã, entretanto, escutávamos (escondidos) no rádio das empregadas domésticas, os seriados como “Jerônimo, o herói do sertão”, “O anjo” (história policial, se bem me lembro) ou programas de variedades, como o “Edifício Balança, Mas Não Cai”. Foi também neste radinho que escutei as transmissões da “cadeia da legalidade”, montada por Brizola, que me contaminou por seu gesto rebelde contra o golpe militar. Foi o primeiro evento político nacional que acompanhei sistematicamente, aos 15 anos. Antes disso tenho apenas a lembrança da excitação provocada pelo suicídio de Getúlio, mas era muito pequeno para entender o que se passava. Mesmo sem entender o sentido político, eu cantava pela casa uma marchinha pró Getúlio quando ele era presidente: “no Brasil tem, tem muito doutor, muito advogado, muita professora; se eu fosse o Getúlio mandava, metade desta gente pra lavoura”. Aprendi com a arrumadeira, Tereza, getulista de carteirinha. E ouvi explicações da minha mãe falando da importância da educação e da saúde para o povo. Não me lembro dela incluir advogados na sua defesa, apesar dos muitos na família, talvez achasse que deviam mesmo ir para a lavoura.
Meus pais não se ligavam em futebol e nem sei por que decidi ser tricolor. Minha irmã não tinha time, meu irmão Jean Pierre era Flamengo, Roger era tricolor e o caçula, Bernard, era vascaíno. Os esportes praticados pelo meu pai eram tipicamente suíços: alpinismo e esqui, obviamente abandonados aqui no trópico. Também era aficionado ao motociclismo, abandonado por falta de recursos. Dona Regina não tinha qualquer interesse por esportes. Não os praticava nem os assistia. Adorava andar a cavalo, como alguém criado em uma fazenda, mas não chegava a ser um esporte.
Minha mãe tinha uma personalidade forte, temperada por ternura e carinho pela filharada endiabrada que ela controlava sem excessivas broncas. Por outro lado, contraditoriamente, ela era uma pessoa tímida no que se refere a exposição pública e, mais tarde, sofria muito quando tinha que discursar, na campanha pela anistia. Embora discreta e sem pretensões a um papel de liderança, tinha uma coragem incrível, muitas vezes desafiando os militares com quem teve que lidar nos tempos em que estive preso.
Lá pelos idos dos anos 80, uma amiga americana que veio me visitar definiu a minha mãe com uma palavra: “stern”. Em bom português quer dizer severa ou austera. Não a via com estas características, mas acho que era a máscara que ela usava quando tinha que lidar com pessoas desconhecidas. Ou talvez fosse a sua atitude com as minhas namoradas. Nunca tive o hábito de apresentar namoradas à família e mamãe reclamava desta discrição: “não vai nos apresentar? Boa coisa não é!”. Acabou amiga de várias ex-namoradas, embora só tenha realmente se identificado com a minha companheira desde 1986, Mônica.
Quando comecei a minha militância no movimento secundarista, em 1962, minha mãe deu força, mas quem se entusiasmou mesmo foi o meu avô. Dos 10 netos do velho Fábio eu fui o único que se envolveu com política e isto nos aproximou. Passei a almoçar com ele todas as quartas feiras e discutíamos muito. O velho Fábio era prá lá de autoritário e queria fazer a minha cabeça, dando orientações que eu nunca seguia, por serem muito conservadoras. Era um anticomunista ferrenho, mas defendia o direito à legalidade do PCB. Segundo ele, seria mais fácil combater um inimigo às claras do que encoberto.
Meus pais eram muito católicos, praticantes e estudiosos da doutrina, mas ao contrário de alguns parentes, não eram carolas. Minha mãe tentou incutir algum verniz religioso nos filhos, mas foi um desastre. Não me lembro bem quando ela e minha tia Maria Tereza decidiram que eu, minha irmã mais velha e duas das minhas primas precisávamos estudar religião, escolhendo uma tia avó como orientadora. Todos os domingos os quatro a visitávamos depois da missa e passávamos uma hora com ela. A velha tia Luisinha era um doce de pessoa, mas carolíssima e achava que a leitura do Evangelho era o caminho para formar um bom cristão. Tínhamos que decorar versículos inteiros e recitá-los corretamente até sermos liberados para ir à praia. Por supuesto, detestávamos o nosso cursinho de cristandade. Lá pelos 15 anos, deixei de ir à missa regularmente, comparecendo somente quando íamos todos juntos à igreja em Petrópolis, nas férias.
No começo dos anos sessenta, os acontecimentos políticos nacionais se precipitaram, gerando as condições para o golpe de 1964. Toda a parentada e a grande maioria dos amigos estávamos contra o Jango, seja pela ameaça comunista propagandeada pela direita, seja pela ameaça getulista, asseverada pelo meu avô. O velho Fábio desprezava a “ameaça comunista” e dizia que era uma invenção oportunista e que o verdadeiro perigo era de uma ditadura de estilo getulista, que a imprensa chamava de “república sindicalista”. Quase todos, mas não o avô, defendiam um golpe militar para “salvar a democracia”. Meus pais não destoavam desta linha, embora hesitassem frente ao risco de uma ditadura militar. Como o movimento golpista (aparentemente) era liderado por civis (Lacerda, Magalhães Pinto, Ademar de Barros, entre outros) eles passaram a acreditar que o golpe militar seria “cirúrgico”, afastando os “maus elementos” da política e devolvendo uma democracia saneada aos civis.
Anos depois uma marchinha de carnaval espelhou esta posição de forma cáustica: “marchou com Deus pela democracia, agora chia, agora chia. Você rompeu com a legalidade, agora chora, por liberdade”.
Não marchei pela democracia naquelas procissões do padre Peyton. A do Rio de Janeiro foi dias depois do golpe, embora já estivesse marcada antes dele. Era a apoteose da classe média, aliviada do perigo comuno/getulista. Mas todos os meus familiares, dona Regina à frente, compareceram.
Não é aqui o lugar para descrever minhas próprias posições e atitudes, o foco deste texto é a dona Regina. Resumo tudo em dois gestos: tentar “lutar pela democracia” (disposto até morrer por ela, romanticamente) na noite de 31 de março e me ver junto a populares no centro da cidade, sob os tiros da oficialidade da marinha de guerra em frente do clube naval, no dia seguinte. No caminho de volta para casa assisti o incêndio criminoso do prédio da UNE, na praia do Flamengo, sem imaginar, é claro, que um dia eu presidiria a entidade. Foi um ponto de virada na minha percepção da realidade política. O passo seguinte foi me recusar a comparecer na Marcha da Família com Deus e pela Liberdade. Em 1965 já estava apoiando a candidatura do socialista Aurélio Viana e assistindo os espetáculos “Opinião” e “Liberdade, liberdade”, expressões da oposição cultural de esquerda.
Muita gente acha que a dona Regina se politizou devido à minha participação no movimento contra a ditadura, iniciada em 1966. Não foi assim. Já em 1964 minha mãe começou a participar de reuniões da Ação Católica, onde um grupo de senhoras de classe média, na quase totalidade conservadoras, discutia o mundo sob a orientação de padres dominicanos. O coach do grupo da minha mãe era o frei Eliseu, naquela altura militante da Ação Popular e ele adotou a linha de apresentar àquele público a doutrina social da igreja católica, expresso na encíclica Populorum Progressio. Foi a revelação de uma nova maneira de ver a realidade social e política e provocou não poucas discussões lá em casa. Dona Regina nunca mais foi a mesma e nela emergiu uma sensibilidade social que estava latente, facilitada por se apoiar nada menos do que no pensamento do Papa João XXIII. Quando comecei a atuar no movimento universitário em 1966, dona Regina já estava preparada para me apoiar.
Apoiar o presidente do Diretório Acadêmico da Escola de Química da Universidade do Brasil (hoje UFRJ), eleito em 1967, era uma coisa perfeitamente aceitável e nem o meu pai, forte polemista político com mentalidade liberal europeia, fez qualquer objeção. Ele tinha como princípio discutir ideias, mas nunca fez pressão contra as opiniões de seus filhos. Dona Regina ficava ansiosa com os riscos da participação em manifestações de rua, reprimidas pela polícia, mas não fazia mais do que pedir cuidado. Sem muito sucesso, embora ela nunca tenha sabido de porradas dadas e recebidas nestes eventos. Não era mais do que a apreensão vivida por ela quando comecei a escalar os morros do Rio de Janeiro e as montanhas da Serra dos Órgãos.
O choque brutal veio com a minha primeira prisão, em uma manifestação estudantil em junho de 1968. Tudo piorou quando meu irmão Jean Pierre, estudante do Instituto Militar de Engenharia, foi preso no dia seguinte, no cerco policial a uma assembleia na reitoria da universidade, na Praia Vermelha e que degenerou no que ficou conhecido como o massacre do campo do Botafogo. Meu irmão e oito colegas do IME ficaram presos uma semana e eu por três. Dona Regina fez a primeira das suas campanhas pela minha libertação, mobilizando contatos familiares influentes e professores da Química e até do meu antigo colégio, o São Fernando. Entre eles estava um ex-ministro das Relações exteriores do general Castelo Branco, o “tio” Vasco Leitão da Cunha e até um agente da CIA, o diplomata Pio Correia, compadre da tia Maria Tereza. A família ficou em polvorosa, sobretudo quando minha prima Maria Inês decidiu adiar o seu casamento até a minha libertação.
Nem os “influencers” da direita mobilizados pela minha mãe, nem as passeatas, dos cem e dos sessenta mil, deram conta de conseguir a minha libertação da cela na Polícia do Exército. Fiquei sabendo, por um coronel pai da namorada do meu irmão, que o general Sizeno Sarmento obstinou-se contra a minha soltura por achar que tinha nas mãos “o verdadeiro dirigente das mobilizações estudantis”, desprezando o papel do Vladimir Palmeira, presidente da União Metropolitana dos Estudantes e o do Travassos, presidente da União Nacional dos Estudantes. Quisera eu, mero presidente de diretório acadêmico, ter toda esta influência! Acabei sendo solto, já depois de passada a onda das manifestações posteriores à minha prisão, por uma decisão do Superior Tribunal Militar permitindo que eu fosse julgado em liberdade.
Voltei para casa para encontrá-la cheia de repórteres e minha mãe, entre orgulhosa e aflita, com o meu futuro. E o meu pai fechado em um silêncio angustiado. Meu irmão pagou o pato e foi expulso do IME, junto com quase toda a sua turma. Foi se formar em Física na PUC, onde é professor e pesquisador até hoje. Ele poderia me agradecer por ter se livrado do IME.
As coisas se precipitaram vertiginosamente nos meses seguintes. Meu nome foi divulgado pela UNE como um dos membros da chapa da AP, embora este “patrocínio” não fosse público. Dona Regina, embora orgulhosa do papel político do seu filho mais velho, pressionou para que eu não me comprometesse com nada até o julgamento do meu processo na segunda auditoria militar do exército. Meus advogados, Evaristo de Morais e Paulo Goldracht, argumentavam na mesma direção e garantiam que a minha absolvição era uma certeza. Acho que na cabeça da minha mãe todo este trauma passaria com este resultado e a minha saída do diretório, ao fim da minha gestão em agosto. Tudo voltaria a ser como dantes e eu poderia me formar engenheiro químico no fim do ano. Mas a partir deste momento, os apoios familiares conseguidos quando da minha prisão esfriaram. Os parentes encararam a prisão como algo pueril de um “jovem tresloucado”, mas a candidatura para a UNE, entidade clandestina e subversiva, mostrava que eu era algo muito pior do que “rebelde sem causa”, quiçá um comunista.
O caldo entornou de vez na véspera do meu julgamento, quando três dos quatro acusados, seus parentes e advogados, se reuniram na casa do coronel cassado Carlos Vilella, pai do meu companheiro de AP, Carlinhos. Todos os presentes defenderam o nosso comparecimento ao tribunal, dizendo que a ausência seria confissão de culpa e implicaria na nossa condenação. O ambiente ficou tenso quando eu disse que estava certo de que seria condenado, comparecendo ou não e que era delegado da minha faculdade para o XXX congresso (clandestino) da UNE, duas semanas depois e que não iria ao julgamento. Depois disso, com minha mãe quase aos prantos, chamei o meu pai a um canto e informei que tinha decidido uma mudança radical na minha vida. Estava disposto a integrar a UNE (ainda não era candidato à presidência) para lutar contra a ditadura. Pedi que ele explicasse isto para mamãe, pois temia uma reação nervosa no estado de ansiedade em que ela estava. Meu pai não disse palavra e estava visivelmente constrangido. Sai dali para começar uma nova vida, na clandestinidade.
Mamãe me disse, muito depois, que preferiu acreditar na promessa de absolvição dos advogados e que, sem a ameaça imediata de prisão, eu voltaria ao “normal”. Mal sabiam eles que eu estava abandonando sem remorsos a Escola de Química pois, apesar de ser um razoável estudante, não tinha vocação para a profissão.
O julgamento ocorreu conforme vaticinara o Modesto da Silveira, o mais combativo e preparado dos advogados políticos que eu tinha consultado. Segundo ele, todos nós seríamos condenados, independentemente do grau de importância de cada um no movimento estudantil. De fato, sem muito disfarçar, os juízes militares votaram por dois anos de cadeia para todos. Eu já estava em São Paulo e clandestino.
A única coisa que o meu pai me pediu, no dia anterior ao julgamento, foi que eu tirasse um passaporte suíço. Fui com ele na embaixada e o próprio embaixador Enrico Bücher, futuro sequestrado pela VPR em 1970, providenciou um passaporte em tempo recorde. Acho que o velho já estava esperando o pior e preparando uma eventual fuga do país para o seu filho rebelde.
A crise familiar da minha prisão, condenação e engajamento na revolução levaram ao rompimento das solidíssimas relações da grande família da minha mãe. A festa de Natal, sempre realizada lá em casa, foi abolida para sempre e a família se dispersou, muitos deixando de falar com meus pais. Minha mãe sofreu muito com isso, mas foi pior ainda quando meu pai, que trabalhava em uma empresa americana, foi despedido em uma clara relação com o meu caso. Meus pais nunca falaram comigo sobre este tempo e não me responsabilizaram pelas dificuldades que se abateram sobre a família, mas para eles deve ter sido muito duro, tanto em termos materiais como afetivos. Acho que o meu velho nunca digeriu direito aquele cataclisma que transtornou sua vida, que parecia caminhar para uma velhice tranquila, apenas esperando os netos chegarem. Quando o reencontrei, já no exterior, tinha se tornado uma figura calada e tristonha, muito diferente do personagem brilhante, divertido e dinâmico com o qual convivi até os 22 anos. Esta amargura eu vou carregar até o túmulo.
Revi os meus pais apenas uma vez até ser preso de novo, em agosto de 1969. Foi na festa de Natal em 1968, desta vez na casa do meu tio Antônio Augusto, irmão mais novo da minha mãe. Sem querer provocar escândalo, pois este tio era dos mais conservadores, cheguei pelos fundos e pedi a uma das empregadas para chamar os meus pais e irmãos na cozinha para um abraço rápido e discreto. Em vez de fazer o que pedi a Jovita avisou a tia Maria Tereza que me levou ao salão, sem dar ouvidos aos meus protestos. O frisson foi grande, mas as reações contidas. Agi como se fosse apenas mais um conviva retardatário e cumprimentei todos os presentes. Os da minha geração me cercaram amistosamente, a maioria dos mais velhos apertaram friamente a mão que eu estendia. O mais interessante foi o recado sussurrado pelo “tio” Vasco: “meu filho, cabeça é para pensar e perna é para correr”. O abraço da minha mãe foi apertado e ela continha o choro sentido. Tinha perdido o filho para um outro mundo, onde ela não tinha lugar … ainda.
Quando fui preso em fins de agosto de 1969, um amigo meu, vizinho do aparelho onde caímos, na rua Fonte da Saudade, assistiu a tudo e ligou para a Dona Regina. Eu ainda não tinha chegado na sede do DOPS na rua da Relação e minha mãe já estava alertando advogados. Não sei como ela ficou sabendo da minha transferência imediata para a Ilha das Flores, no batalhão Paissandu, dos fuzileiros navais, mas imediatamente acionou seu tio Antônio Cézar de Andrade, almirante aposentado, buscando garantir a minha integridade. No segundo dia da minha prisão, o Cenimar descobriu a minha identidade verdadeira e eu fui submetido a uma tortura muito mais pesada e sistemática do que nos primeiros momentos. Minha mãe não sabia do que estava se passando, nem se estava vivo quando compareceu à festa de casamento de outra prima, Maria Clara, evento onde ela encontrou com vários parentes militares, entre outros os generais Candal da Fonseca e Souto Malan, ambos do Alto Comando do Exército. Dona Regina dirigiu-se a eles (e a outros) dizendo, para todos ouvirem: “meu filho foi preso há três dias e está desaparecido. Se algo acontecer com ele vocês serão responsabilizados”. Segundo as minhas primas, que assistiram tudo e me contaram anos mais tarde, Dona Regina estava no modo furioso e esqueceu a timidez. Os generais, constrangidos, tentaram acalmá-la, dizendo que não ia acontecer nada. De fato, nada aconteceu que mudasse a tortura a que estava submetido na Ponta dos Oitis. Ou os generais e almirantes não tentaram nada ou simplesmente o Cenimar ignorou os apelos. O que parou o interrogatório foi o sequestro do embaixador americano, pela ALN e MR-8, uns dias depois. O Cenimar me deixou de lado e concentrou todas as suas forças na busca do cativeiro do embaixador. Ganhei uns 4 a 5 dias de pausa na tortura, mas mais do que isso, antes que os torturadores voltassem a me interrogar, a Marinha nomeou o encarregado do inquérito dos presos da AP. Acredito que esta nomeação rápida pode ter sido efeito das pressões familiares, pois era incomum formalizarem uma prisão em tão pouco tempo, e os interrogadores ficaram furiosos. Daí para frente as coisas se seguiram dentro da formalidade, e o oficial encarregado revelou-se uma pessoa decente. Pouco depois fui colocado em uma cela coletiva (a 424, se bem me lembro) e recebi a visita dos meus pais, uns 30 dias depois da minha prisão, tempo necessário para eliminar as marcas mais evidentes dos interrogatórios.
Foi um encontro traumático em uma sala vazia do batalhão. Minha mãe perguntou se tinha sido “maltratado”, tremendo de medo da resposta. Não contei detalhes para não a impressionar mais, mas usei a palavra maldita: tortura. Ela e meu pai ficaram em silêncio chocado até que ela perguntou se tinha sequelas. Disse que não, omitindo as terríveis dores de cabeça e de ouvido que me afligiam.
Nos próximos 15 meses e meio em que fiquei preso na Ilha das Flores, até outubro de 1970 e, no Galeão até 14 de janeiro de 1971 na troca com o embaixador suíço, recebi visitas de meus pais e irmãos quase todas as semanas. Mamãe trazia comida para mim e para os companheiros das várias celas onde fiquei confinado. Tudo cozinhado pela Gaída, empregada da família desde os tempos da fazenda do Engenho do Mato onde foi babá do meu tio Domingos, irmão temporão da minha mãe.
Nestas visitas rápidas (uma hora a relógio), trocávamos informações familiares e impressões sobre o sinistro quadro político. Era também ocasião para eu passar mensagens para a AP, através da minha irmã Betty. Uma destas mensagens foi transformada em manifesto pela UNE e amplamente distribuído, o que me valeu um interrogatório (sem porrada) e isolamento em cela solitária para explicar como o tinha transmitido. Neguei a autoria, mas o evento gerou medidas de segurança nas visitas, isolando os presos dos familiares com uma grade.
Na primeira visita com grade, um soldado de maus bofes retirou um dos presos do “parlatório”, acusando-o de tentar violar o isolamento. Como eu era representante eleito dos presos, protestei contra este ato e isto me valeu ser retirado também da sala, para ser levado ao comandante do batalhão. Saí escoltado por 4 guardas que me cercavam, apontando metralhadoras. Todos os visitantes se reuniram nas janelas do salão para me ver passar e, ao ser obrigado a atravessar uma poça da chuva que caía, escutei minha mãe dizer: “não pisa na água, menino”. Quase morri de rir com o inusitado da situação, mas também cheio de emoção pela volta ao passado daquela frase.
Durante este ano macabro de 1970, houve um episódio relevante envolvendo Dona Regina. Dias antes de ir depor no processo da AP, na Auditoria Militar da Aeronáutica, o comandante do batalhão me chamou para me intimidar, dizendo que minha mãe estava sendo indiciada por denúncias de torturas enviadas ao exterior. Isto tem a ver com uma carta escrita pelas presas da Ilha das Flores que tinha sido publicada em uma revista francesa de grande circulação, L’ Express. A carta não saiu da Ilha pela mão da minha mãe, mas foi ela que a transmitiu para o Márcio Moreira Alves em Paris. O comandante Jader de Jesus Coutinho tinha substituído o agente do Cenimar, comandante Clemente, afastado depois que denúncias seguidas levaram a Marinha a abandonar o Batalhão da Ilha das Flores como seu centro de torturas. O comandante indicou, sem muitos disfarces, que do meu depoimento dependia a situação da minha mãe. Fui para o tribunal preocupadíssimo, pois tinha preparado um discurso denúncia para a ocasião do meu depoimento. Minha mãe convidou vários profissionais da imprensa nacional e estrangeira, bem como o cônsul suíço para assistirem o depoimento e eu contava que a presença deste público me daria cobertura para botar a boca no trombone. Logo ao chegar, perguntei a ela se a ameaça era verdadeira e ela me disse que tinha sido chamada por um oficial da aeronáutica e interrogada sob a acusação de “denegrir a imagem do Brasil no exterior”. A velha peitou os interrogadores, negando os fatos e, ao ver um retrato do brigadeiro Eduardo Gomes na parede da sala, acusou seus inquisidores de envergonhar o patrono da arma, na sua época um “revolucionário” de carteirinha. Segundo ela me disse, não havia nenhum processo aberto, só ameaças. Instado por ela, decidi soltar o verbo.
O depoimento foi espetacular, com o juiz encurralado entre manter as aparências de legalidade e a contundência das denúncias. Acabou por me cortar a palavra quando passei a dar os nomes dos torturadores e, frente a reação do público que lotava a auditoria, mandou esvaziar a sala, apesar dos protestos da minha mãe. Acabei sendo processado por desacato à autoridade, mas quando indiquei como testemunhas o cônsul suíço e um repórter da Associated Press, a Aeronáutica desistiu da iniciativa. Mamãe não foi incomodada depois disso.
Quando o grupo de acusados da AP na Ilha das Flores foi transferido para o Galeão, sob acusação de termos organizado uma greve de fome de 7 dias de todo o presídio, mamãe ficou mais de uma semana sem saber para onde nos tinham mandado. Junto com familiares dos outros presos, ela visitou, sem sucesso, presídios de todas as armas, inclusive o Galeão. Finalmente o STM mandou que a Aeronáutica suspendesse o nosso isolamento e voltamos a ter visitas.
O Galeão era um presídio muito mais duro do que a Ilha das Flores. As visitas eram rápidas e assistidas por vários oficiais e sargentos, impedindo qualquer contato físico entre presos e familiares e interferindo nas conversas. E elas foram muito poucas, acho que umas três, até que ocorreu o sequestro do embaixador suíço e ficamos em total isolamento. Lá pelos primeiros dias de 1971, fui chamado a uma sala onde estavam os meus pais e irmãos (minha irmã já tinha ido para a França para fazer um mestrado, sob pressão minha pelos riscos crescentes do seu papel de pombo correio com a AP). Cercados por oficiais e mantidos à distância, ouvi um destes dizer para a Dona Regina: “diga logo o que tem a dizer”. A velha, com voz firme, disse: “querem que nós te convençamos a não sair no sequestro. Sempre confiamos que você sabe o que está fazendo e apoiaremos qualquer posição que você tomar”. A conversa acabou ali mesmo e fui tirado de lá sem poder falar com eles. Foi a última vez que a vi a minha mãe no Brasil até o meu retorno na anistia, 9 anos depois. Em menos de uma semana eu estava voando para o Chile e para a liberdade. Viva a VPR!
Dona Regina não foi me ver no Chile, pois avisei-a que partiria para a Europa em pouco tempo e ela preferiu combinar me visitar em Paris no ano novo. Como profissional de um serviço público, ela não teria férias antes de dezembro. Lá por outubro, ela propôs que nos encontrássemos em Londres para depois irmos juntos para Paris, onde eu estava residindo na Cidade Universitária. Ela reservou um quarto em um hotelzinho na rue Moufftard, próximo de onde morava a minha irmã. Mas não deu certo o encontro em Londres. Quando cheguei em Dover, em um barco que sacudiu horrivelmente ao cruzar o Canal da Mancha, sob uma intensa tempestade de neve e com ondas de cinco metros lavando o convés, fui detido pela polícia inglesa. Sem que soubesse, a embaixada brasileira tinha feito uma gestão de protesto contra a minha passagem no país em abril, com direito a um mês de conferências por todo o Reino Unido, escrachando a ditadura militar. Pediram a minha expulsão, aceita pelo ministério do interior já depois de eu ter deixado o país. Passei uma noite detido em uma cela coletiva no porto de Dover e fui mandado de volta no primeiro barco para a França. Mamãe precisou de mais um dia para o feliz reencontro.
Foi a primeira de quatro visitas, sendo que na segunda, combinada para ser uma viagem de férias, no outono de 1973, com papai e minha irmã, eu furei o evento viajando para o Chile na véspera do golpe. Minha irmã sabia para onde eu tinha ido, mas não disse para os velhos até ter notícia de que estava a salvo na Argentina. Frustradíssima, mamãe reprogramou o encontro para o ano novo, em Buenos Aires. Passamos juntos uma semana agradável naquela cidade e só me lembro de um evento notável, um jantar com a família do meu pai.
O clã dos Mills se reuniu em peso para nos encontrar na residência do patriarca da família, uma enorme casa senhorial que ocupava um quarteirão no bairro tradicional de Belgrano. Preocupado com desentendimentos políticos, papai me pediu que moderasse as palavras. Eu não tinha nenhum interesse em conhecer uma parentada que eu supunha ser de extrema direita e muito menos discutir com eles, mas compareci a pedido do velho. Exibi todo o meu bom-mocismo e ignorei as provocações de tios e primos que eu não conhecia. Eram arrogantes e desafiaram a minha paciência por quase duas horas, embora dentro dos limites da boa educação. Quem não aguentou as provocações foi a Dona Regina, que, em dado momento, passou uma bronca na família portenha do seu marido (que pisava em ovos, mais do que incomodado). Depois de um silêncio constrangido, o patriarca deu o sinal de basta para seus parentes e trocamos ideias genéricas sobre o mundo até as despedidas. Dona Regina era muito tímida, mas sob pressão virava uma onça e os portenhos ouviram o que não queriam e botaram o galho dentro.
Mamãe fez algo extraordinário ao longo dos três anos que passei denunciando a ditadura pelo mundo a fora. Não sei como ela teve acesso aos jornais relatando as minhas atividades em tudo quanto foi canto onde passei, organizando um álbum com os recortes que eu tenho até hoje. Mais tarde, quando me instalei em Paris e fui trabalhar no INRA (Institut National de la Recherche Agronomique) e estudar economia rural na Sorbonne, adotou a prática de recortar notícias dos jornais brasileiros (JB e Estadão) que me remetia em um pacote todas as semanas. Também me ajudou muito na minha tese sobre a economia açucareira no Brasil, mandando dados que ela pesquisava em várias fontes (IBGE, INCRA e IAA – Instituto do Açúcar e do Álcool).
Em 1975, ela participou da fundação do Movimento Feminino pela Anistia, liderado pela paulista Teresa Zerbini, esposa de um general cassado. Eram umas 8 a 10 senhoras da classe média carioca, algumas com filhos exilados, como Judite Lisboa, mãe da Marijane e outras militantes de esquerda como Nieta Campos da Paz, quadro histórico do PCB que tinha compartilhado uma cela com Olga Benário nos anos trinta.
O MFPA fez um trabalho extraordinário para um grupo tão pequeno, articulando-se com o grupo dos advogados políticos, em particular com o Modesto da Silveira e com a OAB, a Comissão Justiça e Paz da arquidiocese do Rio de Janeiro (onde minha mãe trabalhou por 5 anos como voluntária) e com a ABI, presidida pelo Barbosa Lima Sobrinho, que foi “anti-candidato” à vice presidência da república contra o candidato militar, general Geisel. O MFPA produziu dezenas de panfletos que as senhoras distribuíam em eventos pela anistia em colégios, universidades, sindicatos, igrejas e associações de moradores. Apesar de serem poucas e sem apoio de grupos políticos de esquerda, as senhoras foram militantes tanto ou mais do que os organizados no Comitê Brasileiro pela Anistia, o CBA, onde vários ativistas representavam organizações como a AP, o MEP, o PCB, o PCdoB e o MR-8. Talvez por se sentirem menos vulneráveis do que a garotada do CBA, as senhoras do MFPA não vacilavam em fazer panfletagens para todo lado. Vigiadas de perto pelo DOPS, Cenimar e outros, elas foram uma peça importante por arregimentar setores progressistas em vários espaços institucionais da cidade do Rio de Janeiro. Devemos muito a elas.
Com a votação da lei de anistia, o MFPA recusou-se a dar um fim a sua luta, já que uma parcela importante dos perseguidos não tinha sido anistiada, em particular os militares cassados. Continuaram a mobilização por vários anos, articuladas sobretudo com a UMNA, União dos Militares Não Anistiados, e tentaram influenciar as decisões da Assembleia Constituinte em relação a este tema.
Dona Regina fez parte de uma delegação do MFPA que foi visitar os constituintes em 1988, batendo de porta em porta para defender uma anistia realmente ampla e inclusiva. Ela me contou a reação de dois senadores do recém fundado PSDB, ambos considerados de centro esquerda naquela época. Fernando Henrique Cardoso e Mário Covas, quando interpelados pelas bravas senhoras perguntaram alarmados: “Anistia para os militares cassados? Estão loucas? Vocês querem os urutus nas ruas?”. Não tenho claro qual dos dois fez a declaração, mas ambos se recusaram a encaminhar a proposta do MFPA. A ameaça dos urutus, tanques de guerra usados pelo exército brasileiro, era algo que pairava sobre a Assembleia Constituinte e, de forma mais geral, sobre a República e a frágil democracia recém recuperada. Ameaça, aliás, ainda vigente.
Como presidente, FHC remendou um pouco este quadro, criando a Comissão dos Mortos e Desaparecidos e propondo uma nova lei de anistia, mais abrangente e inclusiva e orientada para compensações materiais dos vitimados pela ditadura. Mas a famosa justiça de transição continua inexistente no Brasil e os culpados pelos crimes do Estado brasileiro, dos torturadores aos comandantes das três armas e os presidentes militares, continuam blindados, inclusive com resoluções do STF.
Com a lei de FHC, o MFPA encerrou suas atividades específicas, mas Dona Regina e outras das velhinhas militantes se incorporaram ao Movimento de Defesa da Economia Nacional. Aos noventa anos, minha combativa mãe seguia atenta, votando sempre, organizando reuniões para apoiar seus candidatos, sempre à esquerda, como José Eudes e Chico Alencar para deputado federal, e o Lula em todas as suas tentativas, vitoriosas ou não. Era feminista e antirracista sem estardalhaços, sobretudo defendendo direitos iguais. Não era a favor do aborto, por razões religiosas, mas defendia o direito de cada mulher decidir sobre o seu corpo. Achava a linguagem neutra uma palhaçada e queimar sutiãs uma bobagem teatral sem consequências. Enquanto pôde, seguiu cantando música clássica na Rádio MEC ou no coral da Cleof Person de Mattos e ficou triste ao ter que se aposentar com 75 anos.
Dona Regina morreu aos 96 anos, catorze anos depois do meu pai, que apenas viu a virada do século, com 85 anos. Pessoa rigorosamente organizada, deixou os arquivos do MFPA nas minhas mãos, para quem, no futuro, se interessar pela história desta luta. Poderíamos escrever na sua lápide que ela viveu quase um século de imensas transformações no mundo das ideias e na realidade física do planeta, sempre se atualizando, uma senhora moderna que deu a volta na sua origem elitista para se tornar uma militante progressista do nosso tempo.
Entre triste e orgulhoso pelas lembranças que expus neste texto, ponho nele um ponto final com a esperança de que a Dona Regina sirva de exemplo para as próximas gerações, a começar por seus muitos netos e bisnetos.

Jean Marc von der Weid
Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971
Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta


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