Carlos Eduardo Pestana Magalhães (Gato)
“A identidade do policial no Brasil é a de um combatente que precisa exterminar um inimigo. (,…) É uma lógica de guerra”.A polícia é um corpo muito doente. De uma doença que mata e se mata. Visto que a quantidade de brasileiros assassinados pela polícia não comove ninguém (talvez até agrade a muitos), é bom saber que a polícia, além de matar muito, se mata muito, com uma taxa de suicídios que está disparando. É a maior causa de morte de policiais no Brasil; aumentou em 26% em 2023.”¹
O ponto de vista deste artigo é equivocado na medida em que considera as PM, corporações militares vinculadas e sob comando do exército, como força policial e desconsidera que a “polícia” Civil, na realidade uma espécie de cartório que referenda grande parte das ações criminosas da PM e que cada vez mais perde espaço no contexto da segurança pública, enquanto uma força policial investigativa e braço do judiciário. O processo de militarização das forças ditas de segurança pública é progressivo nas “polícias” Civil e nas GCM (Guarda Civil Metropolitana) municipais, tornando-as cada vez mais braços militares atuando como força policial repressiva.
Essa realidade é importante na medida que todo adestramento nas corporações militares para a formação de soldados profissionais (não é a mesma coisa com recrutas do serviço militar obrigatório), sejam das forças armadas “stricto sensu”, sejam das corporações militares fantasiadas de polícia tipo PM, visa antes de tudo desumanizar o elemento para que receba e cumpra toda e qualquer ordem que venha dos oficiais. O soldado, desta forma, deixa de ser um humano e passa a ser uma máquina de matar e destruir.
A hierarquia e a obediência são estruturais na corporação militar para que o soldado realize operações de guerra dentro ou fora do país, vale dizer, destruir, matar, torturar etc. Ou seja, é uma vida de extrema violência e crueldade e para que isso se concretize, é fundamental que os soldados, mais que a oficialidade, sejam desumanizados, pouco importa se é branco, negro, oriental ou indígena. Soldado não tem cor, etnia, nada. É apenas soldado. Suas origens étnicas e culturais são apagadas objetivando padronizar tudo, daí o uso do uniforme dando a impressão de igualdade entre os membros na corporação.
Numa estrutura militar de tipo colonial como a brasileira, remanescente dos exércitos coloniais/imperialistas europeus, onde soldados são tratados como coisas, apenas seres que obedecem ordens, e uma oficialidade que exige e mantém privilégios totalmente distantes da soldadesca, independente do soldo, o adestramento tem que transformar seres humanos em máquinas de destruição e morte. Essa é a gênese militar em qualquer parte do planeta. Aqueles que não suportam o adestramento, a violência, a crueldade, o morticínio que causam, mesmo que gostem da vida militar por qualquer razão, acabam se destruindo, daí o alto índice de suicídio em todas as corporações militares pelo globo. Assim como o alto número de separações, famílias desfeitas, agressões etc. A convivência com a violência e a crueldade paga um alto preço para qualquer um…
O militar que não suporta tal “vida” não tem futuro numa corporação. Ou acaba saindo ou acaba se matando, quando não é morto pelos seus “camaradas” por desvio de comportamento, desconfiança etc. Há inúmeros exemplos desta situação no Brasil onde soldados novatos quando chegam a determinados pelotões, como “boas vindas” são levados para as periferias/favelas/comunidades/quebradas onde são obrigados a matar alguém que é escolhido pelos soldados mais velhos. Ou mata ou cai fora. E se delatar, acaba morrendo mesmo.
Para a casta militar, os soldados devem respeitar acima de tudo a corporação, ela é mais importante que qualquer outra coisa, inclusive as leis, a constituição etc. No Brasil, desde as capitanias hereditárias até o OGROnegócio atual, onde o foco da atividade econômica é a exportação de produtos agrícolas, pecuária e minérios, tudo assentado no trabalho escravo (indígena e negro africano), base primordial de toda estrutura social, econômica, cultural, política e militar do país, a chamada segurança pública, na verdade privada, também se basea nessa realidade. Pouca coisa mudou com o tempo…
No início, haviam os capitães do mato e jagunços, tropas de homens, inclusives de indígenas e negros escravos, a serviço dos donos das terras para perseguir, prender, torturar e matar escravos que fugiam. Com o passar do tempo, a partir da criação do exército, essa tarefa passou a ser feita pelos soldados, visto que a nova arma era de responsabilidade do Estado. Os donos das terras não precisavam mais pagar por esse serviço, bastava acionar o exército, uma arma própria…
Se nos tempos modernos a escravidão formal acabou, a situação de exploração e miserabiilidade dos descendentes dos escravos se manteve e, em alguns casos, se agravou face a proibição do estado brasileiro em permitir que os ex-escravos negros tivessem propriedades, na dificuldade em se arranjar emprego que não os braçais, na proibição de estudarem etc., sendo obrigados a morar nas periferias das cidades, no que passou a ser conhecido com favelas, sem nenhuma qualidade de vida e dignidade enquanto ser humano.
Essa atividade repressiva interna por parte das forças militares, especialmente do exército, desde o primeiro golpe de estado que acabou com o império e “criou” a primeira república, o que se viu historicamente é um aperfeiçoamento dessa forma de ocupar e controlar o próprio território sob o ponto de vista militar, entendido pelos milicos como se fossem ações de caráter policial. O principal papel da casta militar no Brasil jamais foi defender a soberania, o povo, as fronteiras e muito menos a constituição. Os milicos existem para defender primordialmente o Capital nas suas mais variadas formas. Sem esse tipo de força militar, o capitalismo periférico no país jamais conseguiria se impor.
Os militares brasileiros fazem no próprio país o que as forças armadas imperialista/colonialista faziam e ainda fazem nos países onde seus interesses são ameaçados. Ao invés de terem forças armadas inglesas, americanas, francesas, holandesas etc. invadindo o país para defender interesses próprios, cabe aos militares brasileiros fazerem esse papel. A ocupação e o controle social é feito pelos milicos do Brasil, mantendo cativos quem o Capital, associado ao Estado brasileiro, decidir que deva ser perseguido, preso, torturado, morto e ter o corpo desaparecido.
Essa é a realidade histórica e concreta do que se costuma chamar de segurança pública. Não é gratuito que a tortura, os assassinatos cometidos pelos agentes do Estado, preferencialmente por milicos, e todo tipo de repressão é feito no “estado da arte”, como costumeiramente os militares gostam de falar. Desde a escravidão formal até hoje, a repressão brutal, violenta cruel, assassina é feita pelos mesmos tipos de agentes do Estado, com as diferenças de tempo histórico, de métodos, de equipamentos, justificativas etc.
Hoje, o que se chama de “polícia”, na verdade é a continuação desse processo histórico assentado na manutenção da escravidão nas senzalas atuais (favelas, comunidades, periferias) por meio da repressão violenta cruel e letal dos agentes do Estado, as corporações militares como as PM e as forças ditas policiais, tipo Civil e GCM, cada vez mais militarizadas, vale dizer, sob controle do exército e jamais sob controle da sociedade civil. O soldado que não se habitua a esse estilo de vida violento, cruel, bárbaro, de alguma forma cai fora. Seja pelo suicídio, seja procurando outro tipo de função na sociedade. Baixos salários ou altos salários não modificam o cerne estrutural da vida militar e dos seus objetivos históricos e classistas.
Há no Brasil corporações militares onde os soldados têm bons salários, mas a regra da violência e crueldade se mantém. Pensar em direitos humanos para a corporação militar é desconhecer a função do militar na sociedade ao longo da História. Não tem como exigir que soldados respeitem direitos humanos se a função do milico é matar, destruir, torturar etc. quem for considerado inimigo, seja interno ou não. Ações letais não são casos isolados e muito menos despreparo dos soldados. São ações esperadas, estimuladas, ordenadas, consideradas normais, visto que o militar tem no uso intensivo das armas a sua principal motivação. Militar mata, policial prende. Saúde mental no militar é matar sorrindo…

Carlos Eduardo Pestana Magalhães (Gato) Jornalista, sociólogo, membro da Comissão Justiça paz de São Paulo, do Grupo Tortura Nunca Mais e da Geração 68 Sempre na Luta…


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