1968 – 2025
Francisco Celso Calmon
No meio do caminho há uma preposição e algumas reflexões e preocupações.
A Geração 68 não é nem geracional e nem presencial, ela é histórica.
Uma preposição, mesmo que por descuido, no meio do caminho, pode alterar o conceito.
Se for chamada geração de 68 estar-se-á trocando o conceito político pelo conceito geracional, etário, biológico.
1968 foi considerado no Brasil como o ano que não terminou. E por quê?
Não houve resistência imediata ao golpe de 64, por decisão do presidente João Goulart.
As lideranças de antes do golpe de 64 foram exiladas, cassadas, caçadas, demitidas, exoneradas, perseguidas, com intervenções em sindicatos e fechamentos de entidades sindicais, estudantis e interferências em outras instituições e movimentos.
Surgiu a partir de 1965 o início da resistência à ditadura através do movimento estudantil, reabrindo as entidades e realizando assembleias e tímidas manifestações públicas. Inicialmente pelo movimento dos estudantes secundaristas.
As principais entidades secundaristas já no ano de 1965 foram reabertas na marra, sem autorização legal. Entre as mais conhecidas, em novembro de 1965, a AMES do Rio de Janeiro foi a primeira a voltar a funcionar, a partir de uma Assembleia de lideranças, na sede do antigo sindicato dos metalúrgicos, em São Cristóvão, no Rio.
Considerada ilegal, seus dirigentes sujeitos às prisões arbitrárias. Como de fato aconteceu conosco. Fui eleito para a vice e em menos de 4 meses assumi a presidência devido às sucessivas detenções do presidente Astrogildo Toledo, numa delas fomos além dele o tesoureiro Tibério Canuto e eu.
Entre a viver na ilegalidade e clandestinidade, Astrogildo renunciou, em acordo com os demais membros da diretoria, e eu assumi e permaneci à frente até 17 de novembro de 1966, quando, após Congresso clandestino, elegemos uma nova diretoria, passei a presidência a Alan Melo Marinho de Albuquerque, num ato de rua no Méier, RJ, cercado por forte e violento aparato policial, com prisões, repercutidas na imprensa.
Em 1967 foi a vez de reabrirmos à UBES.
A UNE não parou, enfrentou a ditadura.
A Lei Suplicy de Lacerda colocou na ilegalidade a UNE e as Uees (Uniões Estaduais dos Estudantes universitários), que passaram a atuar na clandestinidade.
A luta continuou e em 1965 a UNE convocou uma greve de mais de sete mil alunos que paralisou a USP.
A UNE enfrentou a Lei Suplicy de Lacerda e organizou passeatas nas principais capitais. A repressão violenta em BH desencadeou passeatas em outros estados.
Em 1966, mesmo na ilegalidade, é realizado o XXVIII Congresso da UNE, em Belo Horizonte.
Crescendo pelo fermento na massa estudantil, a resistência começou a incomodar a ditadura, apesar de toda a repressão.
De um lado o movimento estudantil e do outro a repressão policial-militar do regime de exceção cresceram em proporções desiguais e o ano de 1968, pelos acontecimentos ocorridos, vai se tornar um ano histórico.
Em 28 de março daquele ano ocorreu o assassinato do estudante secundarista Edison Luís, no restaurante Calabouço, Rio, cujo presidente da Associação do local era o estudante Elionor Brito.
A significante manifestação estudantil do seu enterro, mobilizando parte expressiva da classe média, à frente artistas e intelectuais, vai impulsionar novas ações de resistência à ditadura.
“Abaixo a Ditadura. O Povo no poder”, foi a grande faixa que abriu o cortejo do enterro.
A morte do companheiro Edison Luís vai gerar indignação nacional e pipocar atos de protestos, senão em todos, em quase todos os estados do Brasil. E vai num crescendo como rastilho de pólvora chegando próximo ao barril.
Não só estudantes!
Em abril de 1968, operários da Belgo-Mineira realizaram uma greve com ocupação da fábrica. Essa greve marca o início de uma onda de revolta operária em Minas Gerais contra o arrojo salarial.
Em 1º de maio do mesmo ano, em SP, os operários colocaram para correr do palanque da comemoração do dia de luta do trabalhador o governador Abreu Sodré e os sindicalistas pelegos, e realizaram o ato e depois saíram em passeata.
Em 26 de junho de 1968 ocorreu a passeata dos cem mil no Rio, com retumbantes estímulos a outras manifestações em demais partes do país.
Duas semanas após, outra passeata no Rio, quantificada pelos organizadores em 50 mil, a rigor uns 30 mil era mais realista. Sou testemunha participante dessas manifestações.
Mudo de cena para enfatizar que não era só o movimento estudantil que crescia.
Os operários, embora não se integrassem expressivamente a essas manifestações, também começavam as suas lutas reivindicatórias, com viés político de crítica à ditadura, patrocinadora do arrocho salarial.
Novas lideranças vão surgindo, entre elas o operário torneiro-mecânico Luiz Inácio Lula da Silva, é o início do novo sindicalismo.
A segunda greve de Contagem, ocorrida em outubro de 1968, pouco tratada pela historiografia, foi a maior em número de grevistas e de tempo de paralisação, segundo suas lideranças.
13 de outubro de 1968 é realizado o Congresso clandestino da UNE, em Ibiúna, SP, que é descoberto pelos órgãos de informação da ditadura.
É evidente que um evento para mil pessoas dificilmente não seria descoberto, visto que a repressão já estava bem infiltrada nos movimentos estudantis e até em organizações políticas revolucionárias.
Ocorreram prisões massivas e de lideranças, abala a resistência, aumenta a repressão com torturas de jovens estudantes.
O ano político de 1968 não ocorreu apenas no Brasil, mas em vários países: França, Alemanha, Checoslováquia, Estados Unidos e México. Foi uma quadra de contestação e rebeldia ao sistema e ao status quo do autoritarismo, por novos valores, democracia e pela paz.
Maio de 68 na França, foi uma grande onda de protestos, iniciada com manifestações estudantis pelas reformas educacionais, que evoluiu para uma greve de trabalhadores, pararam a cidade de Paris por vários dias, e balançou o governo de Gaulle.
A ocupação da torre administrativa da Universidade de Paris, em 22 de março, liderada por Daniel Cohn-Bendit (Dany Le Rouge, “O vermelho”). O movimento ganhou força com o apoio da classe trabalhadora e de outros alunos de diversas instituições de ensino, levando à ocupação de fábricas e à paralisação de Paris. As manifestações ficaram marcadas pela ocupação de espaços públicos e pelo uso de formas artísticas, como cartazes e grafismos, para expressar as reivindicações.
Na Alemanha, os jovens acadêmicos que já estavam dentro de movimentos estudantis viam que faltava uma oposição efetiva dentro do parlamento alemão, logo, criaram um movimento de oposição pelo temor do retorno de um Estado autoritário. O líder do movimento, Rudi Dutschke, com uma imagem carismática e chama revolucionária, foi vítima de um atentado de assassinato, o que causou muitos protestos, tanto na Alemanha, quanto mundo afora.
Em Praga, quando Alexander Dubcek assumiu a liderança da Checoslováquia, a fim de amenizar o descontentamento da massa popular com o totalitarismo, mas sem uma revolução política em si, ele libera o “Programa de Mil palavras”, que inclui o voto secreto, fim da censura, ênfase econômica na produção de bens de consumo, e admissão do comércio direto com as potências ocidentais, o que influenciou o movimento estudantil checoslovaco a se mobilizar para pressionar o governo para agilizar o processo de levar o país para um caminho de independência da União Soviética, reformas e mais liberdade interna.
O assassinato de Martin Luther King nos Estados Unidos, líder histórico do movimento antirracista, levou multidões às ruas e ocasionou à sanção do Ato dos Direitos Civis nos Estados Unidos, que proibiu o trabalho infantil, proibiu a segregação racial em lugares públicos, derrubou as leis Jim Crow, trouxe o fim formal do sistema de dominação racial etc.
No mesmo ano, os EUA em guerra com o Vietnã, onde seus soldados estavam morrendo em números cada vez maiores, fez com que os jovens começassem movimentos pacifistas; “faça amor, não faça a guerra” virou uma bandeira internacional da juventude. Um dos maiores lutadores de boxe, o afro-americano, Cassius Clay, negou-se a alistar-se para ir à guerra, foi preso, converteu-se à religião mulçumana.
A música “é proibido proibir”, foi outra expressão cultural daquele ano no Brasil.
No México, quando os estudantes protestavam contra a desigualdade social e a falta de liberdade de manifestação, foram covardemente emboscados pelas forças policiais, resultando em um massacre com centenas de vidas perdidas no dia 2 de outubro de 1968.
Em 1968, a China estava no auge da Revolução Cultural, que foi um movimento lançado por Mao Tse-tung em 1966, com o objetivo de eliminar elementos “burgueses” e “revisionistas” da sociedade e reafirmar os ideais comunistas. Jovens estudantes, organizados como Guardas Vermelhos, foram incentivados a combater figuras reacionárias.
A fome de liberdade, de paz e de novos valores em substituição aos valores burgueses da sociedade capitalista, passou a ser a tônica do movimento internacionalista do ano de 1968.
A geração 68 é caracterizada, objetivamente, pelos eventos que produziu, demonstrando um caráter subjetivo de generosidade, desprendimento, coragem, ousadia, determinação, criatividade, consciência de rebeldia e revolução.
A G68 brasileira acreditava na força do povo, na necessidade da atividade permanente de – Formação, Organização, Participação – FOP – na base social, e acalentava sonhos de um país soberano, e um mundo solidário, igualitário, livre, democrático.
Ao protagonizarem aqueles acontecimentos de resistência à ditadura brasileira, os jovens produziram a sua própria história, cuja marca ficou para os anais e a memória.
Como memória faz e fará parte de cada presente, nas lembranças de efemérides, no sentido de lembrar para aprender, para referências e para fomento.
Lembrar para não repetir a ditadura, recordar para incentivar às novas gerações.
A G68 não prosseguiu pelos anos posteriores, senão em fragmentos grupais, os que vão para a luta armada, os que vão para a luta institucional, os que ficam somente na atividade de FOP, os que ficam longe, nos exílios, os que ficam dentro e têm que sobreviver, lutar e lutar na política e na vida laboral sob dupla perseguição.
Em qualquer desses segmentos não é mais a geração 68, como síntese de uma maré rebelde, mas grupos. De forma que não é apropriado, por exemplo, dizer que essa geração esteve na guerrilha do Araguaia, ou que foi a geração que chegou ao governo petista, ou que prosseguiu sempre na luta. Enquanto geração política, ela se encerra no próprio ano. Deixa um legado, muitos exemplos, uma marca.
Ela encerra em 1968 a sua história protagonista, como um capítulo, um marco, uma baliza, um símbolo, uma legenda, pois o “ano não terminou”, teria outro final se a ditadura não respondesse com o Ato institucional número 5 – AI5, acabando com o mínimo que restava de liberdades democráticas, instituindo o Estado terrorista.
A violenta e sistemática repressão do sistema ao movimento internacionalista de 1968 foi vitorioso, fomos derrotados. No Brasil o AI5 foi o corte epistemológico na história da resistência à ditadura e ao capitalismo.
Fomos derrotados aqui e nos demais países, cujas juventudes foram personagens dessa tentativa de mudar o mundo. Fizemos história, mas ao fim e ao cabo fomos vencidos.
Os que participaram politicamente do ano de 1968, foram os que vivenciaram esse fenômeno internacional.
A partir de 1969, na vigência do Estado terrorista, outras gerações políticas foram surgindo, seguiram em diversas direções e formas de atuação. Do desbunde à luta armada.
Fazendo uma analogia com a seleção futebolista de 70, que conquistou o tri, ela não é a de 62 e 66, mesmo que sem aquelas ela não haveria, assim como a seleção de 70 não prossegue, o seu feito histórico foi a de ser a primeira seleção nacional a conquistar o tricampeonato mundial de futebol, a G68 também não prosseguiu posteriormente, seu fim foi o marco do ano internacionalista de 1968.
A G68 acaba junto com os feitos históricos daquele ano, também chamado, à época, do ano vermelho mundial da rebeldia juvenil.
Esta é a moldura que faço da geração 68 no contexto mundial e nacional daquele efervescente período.
Deixa lições, carisma, áurea, essenciais para inspiração e fomento à luta dialética de todas as sociedades nacionais.
As palavras de ordem que expressavam o viés prioritário de cada organização e as unificadoras daquele ano:
O POVO ORGANIZADO DERRUBA A DITADURA!
O POVO ARMADO DERRUBA A DITADURA!
O POVO UNIDO DERRUBA A DITADURA!
ABAIXO A DITADURA!!!
Os jovens de ontem (1968) não carecem de legenda para estarem presentes em manifestações públicas de hoje, de conjuntura também histórica, cujo recrudescimento do neonazifascismo espraia pelo m mundo.
Não precisamos de alvará, nem de rótulos, somos os militantes longevos que se mantiveram coerentes com a própria história. E, oxalá, somemos em espaços e organizações unitárias em antítese à atomização do passado.
A fraternidade é vermelha, aí reside a necessidade emocional que está acolhendo a tantos no grupo MG68, que carrega a marca, o rótulo, não a identidade.
Por isso mesmo, a responsabilidade de não transmitir o que não é, faz parte do respeito à história e da retidão ética na formação das gerações que foram nos sucedendo.
Estejamos todos bem-chegados nessa mística, sem extrapolar as quadras da história.
Se naquele tempo os jovens acreditavam no povo organizado como força motriz de mudança, em 2025, a luta de classes precisa voltar aos trilhos e se reconectar com o espírito coletivo e ousado.
Creio que 2025 será um ano político, cuja correção de forças estará menos desigual, de fortalecimento da democracia.
Personagens cederão os lugares de poder a outras, a anistia A GOLPISTAS NÂO OCORRERÁ, a conjuntura pré-eleitoral não terá o predomínio do ódio, Bolsonaro e outros militares e civis da quadrilha atentatória ao Estado de direito estarão a caminho da cadeia em prol da legitima defesa da democracia.
Assim como em 68, o futuro exige coragem para ousar, consciência e determinação para que a história não seja apenas lembrada, mas vivida como inspiração à transformação sistêmica.
Ousar lutar para vencer.
Francisco Celso Calmon

Ex-coordenador nacional da Rede Brasil – Memória, Verdade e Justiça; membro da Coordenação do Fórum Direito à Memória, Verdade e Justiça do Espírito Santo. Foi líder estudantil no ES e Rio de Janeiro. Participou da resistência armada à ditadura militar, sendo sequestrado e torturado. Formado em análise de sistemas, advocacia e administração de empresas. Foi gestor de empresas pública, privada e estatal. Membro da Frente Brasil Popular. Autor dos livros “Sequestro moral e o PT com isso?” e “Combates pela Democracia”, coautor dos Livros “Resistência ao Golpe de 2016” e “Uma sentença anunciada – O Processo Lula”. Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Articulista de jornais e livros, coordenador do canal Pororoca.


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