MAIS UMA DITADURA [Chile]

Aviões da Força Aérea Chilena estão bombardeando o Palácio de La Moneda

João de Paula Monteiro Ferreira

Ao ouvirmos esta notícia no rádio, naquele meio-dia de 11 de setembro de 1973, Tereza, Ruth e eu (o Pedro tinha ido trabalhar) subimos ao muro da casa onde morávamos, distante uns cinco quilômetros da sede do governo, sob ataque, a tempo de avistar os aviões que a bombardeavam, além de enormes rolos de fumaça que subiam do solo, quase alcançando as nuvens. Estrondos de bombas e barulhos de tiros vinham de muitos lugares. As rádios noticiavam combates em vários bairros. No começo da noite, foi divulgado um comunicado de uma Junta Militar afirmando que tomara o poder e decretando estado de guerra, com toque de recolher em todo o Chile. Era o esperado e triste desfecho de mais um golpe contra a democracia na América Latina.

Durante 10 dias o isolamento foi completo, com proibição de saída às ruas para qualquer finalidade. Quem descumprisse essa ordem podia ser alvejado por patrulhas militares que se deslocavam por toda parte. Casas eram invadidas, vasculhadas, muitas saqueadas e pessoas fuziladas sumariamente no interior delas e nas ruas. Tiros continuaram a ser ouvidos por muito tempo, embora mais espaçados do que no primeiro dia. As rádios, já tomadas pelos golpistas, conclamavam os chilenos a denunciarem aliados do governo deposto e estrangeiros de várias origens, caluniados como invasores do Chile.

Impossibilitados de sair para comprar alimentos, só não passamos fome devido à solidariedade da Dona Esther, nossa vizinha, que nos dava comida por cima do muro.

Passada uma dezena de dias, o toque de recolher foi levantado para o período diurno. Então, Pedro e eu fomos à casa da Ângela e do Paulo Lincoln, em Macul, numa tentativa de restabelecer o contato perdido desde o dia do golpe. A porta da frente estava arrebentada e todos os compartimentos vandalizados, o que se podia ver também em outras casas de brasileiros naquele bairro. O ambiente era de terra arrasada. Saímos dali rapidamente, abatidos pelo que víramos, cheios de preocupações e sem nada sabermos sobre o destino dos nossos amigos. Em seguida, começamos a peregrinar por embaixadas em busca de refúgio. Os deslocamentos precisavam ser feitos com muita cautela, pois ainda imperava o estado de guerra. Não era raro vermos pelas ruas cadáveres de pessoas assassinadas na noite anterior. Em público, uma regra básica era não falarmos para não sermos identificados pelo sotaque brasileiro. Infelizmente, todas as representações estrangeiras que conseguimos visitar já estavam cercadas por forças militares. Mas continuávamos tentando. Um dia, ao comprar pão na padaria, O Pedro foi avisado por sua dona que policiais (carabineiros, como chamavam os chilenos) tinham feito uma batida no bairro e tentado entrar em nossa casa, que estava fechada. Procurada por nós, Dona Esther, confirmou esta história e disse que não nos falou a respeito disso para não nos causar apreensão. Disse que ficássemos tranquilos, pois informara aos carabineros que nos conhecia bem e que éramos estudantes sem qualquer atividade política.

A Tereza e o Pedro. em uma ida à sede da Cruz Vermelha, souberam que a ONU conseguira negociar com a Junta Militar a abertura de um local para acolher refugiados, devido a pressões internacionais motivadas por protestos contra a perseguição a estrangeiros. De início, a Ruth e eu ficamos em dúvida sobre a consistência desta alternativa, propondo a continuação da busca por embaixadas, mas acabamos convencidos pelos dois a experimentá-la. Na manhã seguinte, bem cedo, nós quatro fomos para uma casa onde tinha sido montado um escritório do ACNUR- Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Depois de cadastrados, recebemos orientação para aguardarmos junto com outros refugiados a chegada de um transporte que, no fim da tarde, nos levou ao Seminário de Padre Hurtado, situado em Melipilla, lugarejo na região metropolitana de Santiago, onde fomos alojados sob proteção da ONU.

Acomodados com relativa segurança nas instalações do que tinha sido um seminário católico, tivemos alguma tranquilidade para procurarmos compreender o que estava se passando no Chile. Nossa primeira constatação foi do elevadíssimo grau de violência das forças repressoras. O ódio dos golpistas exacerbou-se diante da resistência que lhes foi oposta em vários lugares, a exemplo dos trabalhadores dos chamados cordões industriais e de moradores de poblaciones (favelas) da periferia. Além de Santiago, a luta dos defensores do governo democrático ocorreu em outras cidades e no campo, prolongando-se por vários dias e lhes custando muitas vidas. Contribuiu também para aumentar a ira dos fascistas o fato de o Presidente Allende ter rechaçado suas pressões para renunciar ao seu cargo e de os ter enfrentado de arma na mão, tendo ao seu lado apenas sua guarda pessoal. Ao sacrificar a vida em defesa de seu governo, Allende marcou para sempre como traidores os comandantes militares sublevados que, dias antes, tinham jurado lealdade ao seu mandato constitucional. Pouco antes de morrer, o Presidente conseguiu dizer pelo rádio: “Não vou renunciar. Pagarei com a minha vida a lealdade do povo. Serão estas as minhas últimas palavras e tenho a certeza de que o meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, darei uma lição de moral que castigará a infâmia, a covardia e a traição”.

A tradição democrática que distinguia o Chile entre os países latino-americanos e era motivo de orgulho para os chilenos, foi sempre honrada pelo governo de Salvador Allende, mas solapada desde o momento de sua eleição por forças extremistas internas apoiadas pelos EUA. É verdade que alguns pequenos grupos de extrema esquerda também se postaram à margem do processo democrático, mas suas ações não tiveram relevância na dinâmica do poder, servindo apenas de um pretexto a mais para os golpistas. O que determinou a abolição da democracia foi a atividade persistente de grupos fascistas, a exemplo do Pátria y Libertad, que fizeram de tudo para tumultuar os procedimentos democráticos e para minar as bases de funcionamento da economia.

Alguns erros foram cometidos pelo governo e pela Unidad Popular, coligação política que lhe sustentava, no entanto, eles não foram a causa da ruptura institucional, tendo, na pior das hipóteses, apenas dado combustível extra à propaganda daqueles que estavam decididos a eliminar a proposta de construção do caminho chileno para um socialismo democrático, desde o momento em que ela foi vitoriosa nas urnas. Para os estadunidenses, que se sentiam ludibriados por uns barbudos cubanos que adotaram o socialismo após uma revolta liberal, qualquer intento reformista na América Latina tinha que ser impedido. Se isso aconteceu no Brasil, quando o Presidente João Goulart, progressista, mas grande proprietário de terras, propôs a realização de tímidas reformas sociais, porque não ocorreria no Chile, onde o programa de governo ousara apresentar-se com aquele nome apavorante?

A brutalidade do golpe de Pinochet criou um ícone de desrespeito aos direitos humanos quando transformou o Estádio Nacional de campo de futebol em campo de concentração. Cerca de sete mil pessoas estiveram ali, aprisionadas sob terríveis condições físicas e psicológicas, sofrendo privações de todo tipo e sendo submetidas a torturas e fuzilamentos. Algumas foram assassinadas com crueldade, como o famoso cantor, compositor e violonista, Victor Jara que, antes de ser morto, teve os dedos das mãos cortados.

O sonho de grande parte da população chilena de construir uma sociedade menos desigual pelo caminho democrático foi transformado em pesadelo por um golpe militar dos mais abjetos.

Foi grande também a tristeza para nós brasileiros que estávamos no Chile. O golpe comandado pelo general Pinochet, pôs a nu o apoio que a ditadura brasileira vinha dando à trama para derrubar o governo de Allende deste o seu início. Instalada a ditadura, agentes da repressão vieram do Brasil e se juntaram ao corpo diplomático local para trabalharem conjuntamente com os militares chilenos na identificação de refugiados brasileiros para prendê-los e torturá-los. Militares e policiais do Brasil chegaram a participar de interrogatórios violentos de seus compatriotas. Durante o golpe, alguns brasileiros foram mortos e outros dados como desaparecidos. Além disso, juntamente com os EUA, a ditadura brasileira socorreu economicamente a Junta Militar com vultosos empréstimos e generosos acordos comerciais.

O golpe comandado por Pinochet diferenciou-se por seu caráter brutal, mas, no resto, seguiu o velho protocolo de derrubada de governos democráticos na América Latina: prisão e tortura de opositores; censura dos meios de comunicação; proscrição de partidos políticos, de sindicatos de trabalhadores e de entidades estudantis; fechamento do parlamento e restrições ao judiciário etc. No terreno econômico, as medidas iniciais também seguiram o receituário tradicional, enfeitado com algumas bijouterias dos chamados Chicagos Boys: arrocho salarial, cortes de gastos sociais, privatizações, desnacionalizações …

Acompanhando do refúgio de Padre Hurtado estas primeiras medidas da Junta Militar, nos chamou a atenção sobre como elas repetiam algo que vivêramos no Brasil com o golpe de seus colegas militares: a prática como governantes era o contrário do discurso como opositores. Alguns exemplos: o clamor por liberdade converteu-se em censura das comunicações e eliminação de adversários, a exaltação à pátria transformou-se em entrega das riquezas nacionais a potências estrangeiras, forças de centro, como a democracia cristã, trocaram a moderação pelo golpismo, enfim, a democracia foi substituída pela ditadura.

As dúvidas sobre a Junta Militar respeitar ou não a inviolabilidade daquele refúgio, a vida ali durante quatro meses, a convivência com algumas centenas de pessoas oriundas dos mais diversos países da América Latina e a perspectiva de acolhida por outros países são assuntos que ficam para outra historieta.


João de Paula Monteiro Ferreira, 79 anos, ex-presidente do DCE da UFC, ex-diretor da UNE, médico especialista em psicoterapia e psicologia organizacional, formado pela Medizinische Fakultæt der Universitæt zu Kœln, República Federal da Alemanha


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