João de Paula
Entrem, fiquem o tempo que quiserem e, quando saírem, me encontrem ali.
Apontando para um bar, era o que eu passara a dizer aos que nos visitavam em nossa nova morada, ao levá-los à mundialmente famosa Catedral de Colônia. O motivo, juro, não era uma vontade inadiável de tomar uma gostosa Kölsch, cerveja típica da região. É que, mesmo ficando extasiado com aquela expressão deslumbrante da arte gótica nas primeiras vezes que a via, depois da décima visita mostrando suas maravilhas aos amigos que vinham de outros países europeus e do Brasil, eu não aguentava mais a repetição.
As articulações do Paulo Lincoln para que eu fosse aceito na Faculdade de Medicina de Colônia tinham dado resultado. Em consequência disso, eu fora chamado para prestar exame de proficiência no idioma alemão, condição para obter autorização de matrícula naquela instituição pertencente a uma universidade que tinha seis séculos de existência.
Quando desembarquei do trem vindo de Bochum na Estação Central, ao lado da Catedral daquela cidade fundada pelos romanos no Século I, a palavra século martelou-me a cabeça até que me lembrei da badalada frase de Napoleão Bonaparte: “Soldados, do alto destas pirâmides quarenta séculos vos contemplam”. De fato, viver em Colônia era sentir-se contemplado pela cultura dos seus fundadores, presentificando um passado que se insinuava no idioma, na arquitetura, no urbanismo, nos sítios arqueológicos constantemente descobertos, nas obras de artes colecionadas em seus museus etc.
Aprovado no exame de alemão, recebi a autorização para matricular-me no curso de medicina. A Alegria que senti com esta notícia foi muito grande, mas a ela seguiu-se outra que me causou uma frustação que lhe era equivalente em tamanho. É que, dos cinco anos que eu cursara no Brasil e dos seis meses de estudos no Chile, foram reconhecidos apenas dois anos, significando que eu teria de estudar mais quatro para concluir um curso que estivera tão perto do fim ao ser interrompido duas vezes por ditaduras militares. Apelei desta decisão, mas meu recurso foi negado com a alegação de que não existia um convênio da Alemanha com o Brasil ou com o Chile para embasar uma equivalência curricular plena. Tive que resignar-me, decidindo levar adiante a luta para superar aquele novo desafio.
Ao retomar os estudos de medicina, morei inicialmente numa residência universitária em Efferen, nos arredores de Colônia, com ligação à universidade por trens frequentes, confortáveis e rápidos. Ela ficava em uma área bucólica, com muitos campos nos quais se podia passear a pé e de bicicleta e com alguns lagos muito bonitos, onde, no verão, pessoas de todas as idades costumavam tomar banho sem sentirem necessidade de usar qualquer tipo de roupa.
No centro do Campus Universitário, situava-se a Mensa, nome latino do restaurante onde eram servidas refeições para algumas centenas de estudantes, muitos deles vindos dos mais variados lugares do mundo. Era um ambiente efervescente, que possibilitava trocas culturais entre pessoas de aparências físicas diversas e de costumes diferentes, oportunizando enriquecimento mútuo por meio das suas complementaridades. Tal como Bochum, Colônia era um centro universitário internacional, mas em escala muito maior.
Outra coisa impressionante em Colônia era o alto grau de solidariedade das pessoas para com os refugiados vindos do Chile, principalmente das mais jovens. Com o propósito de apoiá-los, tinham sido organizados vários grupos, entre os quais um comitê de professores para orientar estudantes sobre a continuação dos seus estudos. A Amnesty Internacional criara o Grupo de Coordenação Brasil, para articular ações com outros núcleos da entidade na Alemanha e no exterior. Apresentado pelo Paulo Lincoln, comecei a participar daquele grupo, ajudando nas traduções de notícias do Brasil para o alemão e do alemão para o português, em cartas que os alemães escreviam para o governo ditatorial do Brasil, pedindo a libertação de prisioneiros políticos. Atendendo solicitação de brasileiros do Comitê França-Brasil, sediado em Paris, foi articulada uma entrevista do Brasilien Rundschau (Panorama do Brasil), informativo do Grupo de Coordenação Brasil com François Jentel, padre belga que acabara de ser expulso do Brasil, após passar um ano na prisão.
O crime dele era o seu trabalho pastoral com os povos originários, que incomodava a ditadura. A entrevista do sacerdote católico teve grande repercussão na Alemanha, gerando convites de muitas cidades para ele proferir palestras sobre suas experiências com os indígenas e a respeito da repressão que sofrera no Brasil.
Exemplo notável da solidariedade dos alemães aos brasileiros vindos do Chile era o do casal Bärbel e Friedhelm. Os dois tiveram seus nomes abrasileirados quando vieram trabalhar aqui como voluntários, a Bárbara nos arredores do Recife e o Fred em Aracati. Estes estudantes conheceram-se no Brasil, apaixonaram-se pelo nosso país e entre si.
Algum tempo depois casaram-se. Eu os havia conhecido no Grupo de Coordenação Brasil e quando a Ruth foi morar em Colônia para fazer seu curso de Psicopedagogia eles conseguiram um apartamento para alugarmos no prédio onde moravam. Com suas habilidades inatas e os conhecimentos adquiridos no curso de engenharia, o Fred liderou um mutirão de brasileiros para fazer a reforma do nosso apartamento. Dentre estas pessoas, lembro da participação dos casais Cristina e Sérgio Buarque, Ângela e Paulo Lincoln e, evidentemente, do casal beneficiário da reforma; a Bárbara, quase brasileira, como sempre estava presente. Um fato curioso desta reforma: ao consertarmos o reboco de uma parede que dava para a rua, descobrimos sob ele uma colagem de jornais, feita certamente para vedar rachaduras produzidas por bombas. Eram publicações de abril e maio de 1945 (portanto, de 30 anos antes) noticiando fatos que revelavam os sofrimentos da população. Foi um momento de reflexão sobre os horrores causados pelo nazismo aos povos que tiveram seus países invadidos e aos próprios alemães.
Morar naquele prédio era um privilégio por sua localização muito próxima da Catedral e do rio Reno. Para Ruth e para mim, retirantes do Sertão do Ceará, viver perto de um rio que nunca secava era um encantamento.
Na onda de solidariedade que recebíamos em Colônia, foi muito importante também a que nos foi prestada por Dom Fragoso, Bispo de Crateús, pelo padre José Maria Cavalcante e pelo hoje Monsenhor Assis Rocha. Eles nos visitavam e ajudavam no contato seguro com nossas famílias, levando a elas notícias tranquilizadoras e, às vezes, fazendo chegar aos saudosos paladares cearenses algumas iguarias como rapadura, goma e farinha de mandioca.
E por falar em paladares, a feijoada e a caipirinha tornaram-se fortes atrativos para os eventos políticos que organizávamos em Colônia. Os alemães que tinham inventado o gostoso prato de joelho de porco com chucrute, não haviam descido um pouco mais para descobrir as delícias do mocotó deste animal, mas quando o provavam numa feijoada acompanhada de caipirinha ficavam fascinados. Alguns pegaram nossas dicas de onde comprar o feijão preto que vinha da África e a Pitú, importada de Pernambuco, e logo tornaram-se hábeis na preparação de uma feijoada teuto-brasileira.
O ano de 1975 elevou de patamar a rearticulação dos brasileiros que haviam sido dispersados por vários países com o golpe do Chile. Muitos já haviam conseguido organizar bases mínimas para sua sobrevivência nas condições que lhes foram impostas. Ademais, a Revolução dos Cravos, ocorrida em Portugal no ano anterior, desencadeara um amplo processo de democratização naquele país, criando condições favoráveis para o acolhimento de refugiados brasileiros e para a divulgação de ações contra a ditadura militar do Brasil.
Na Alemanha, Colônia tornara-se o centro da solidariedade a refugiados brasileiros e de ações de denúncia dos crimes da ditadura militar.
A expansão na Alemanha do movimento de solidariedade aos perseguidos pela ditadura brasileira, as atividades da Ruth em Colônia, a turma da Deutsche Welle e da Transtel, minhas funções de estudante, locutor e palestrante, uma viagem a Berlim com membros do Grupo de Coordenação Brasil e uma a Paris no fuscão vermelho do Paulo Lincoln…ufa, são assuntos para uma próxima historieta.
Maranguape, 19 de maio de 2025.

João de Paula Monteiro Ferreira, 79 anos, ex-presidente do DCE da UFC, ex-diretor da UNE, médico especialista em psicoterapia e psicologia organizacional, formado pela Medizinische Fakultæt der Universitæt zu Kœln, República Federal da Alemanha


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