Pode ser feliz?

João de Paula

– Aqui na Alemanha os pais podem entregar a criança aos cuidados de asilos especiais .


Com esta frase, o pediatra que examinou a Mariana no hospital em que ela nascera no dia anterior e que, por coincidência, era meu professor na faculdade, arrematava uma argumentação em que começara dizendo: “colega, como estudante de medicina, você deve saber que a Síndrome de Down não tem cura. Prepare-se para um destino duro. No entanto, há uma opção”…

Ruth e eu não perdemos um minuto com aquilo que para o meu professor de pediatria poderia ser uma opção. Para nós, ela não era sequer uma hipótese a considerar. A imensa dor que sentíamos não perturbava a clareza que tínhamos de que, independentemente de qualquer coisa, nós iríamos cuidar da nossa filha.

A dor nos primeiros dias era muito grande. Tinha sido enorme a nossa expectativa pela vinda da Mariana e não estávamos preparados para o fato de que nossa filha nascesse com uma condição de limitação de seu desenvolvimento, tida à época como insuperável. Alguns meses antes, escrevêramos uma carta a seis mãos para nossas famílias, junto com Dom Fragoso, Bispo de Crateús, que nos visitava em Colônia, comunicando a gravidez da Ruth e falando da nossa alegria por estarmos tendo a oportunidade de concretizar um sonho de muitos anos. Moldados por nossa cultura e educação para nos submetermos a certos padrões de aparência, fama, poder, inteligência, papéis sociais e de desempenho que não se coadunavam com os que eram prescritos a quem a medicina e a sociedade carimbavam com o diagnóstico de Síndrome de Down, ficamos completamente desnorteados diante daquela realidade.

Foram três semanas de desalento e prostração. Conversávamos, chorávamos juntos, procurávamos dar apoio um ao outro, mas éramos como dois náufragos abraçados e acabávamos afundando no microcosmo de cada um. Em um destes momentos de angústia individual, depois de me fazer várias interrogações que eu não sabia responder, perguntei-me: a Mariana pode ser feliz? Quando percebi que sim, compreendi que não havia nada melhor para minha filha do que felicidade e que, sendo ela feliz, como pai dela eu também poderia ser. Foi como um clarão. Corri para conversar com a Ruth. Analisando um sonho que tivera, ela chegara a uma posição semelhante. Convergimos imediatamente, atiçando-se nossa chama adormecida de lutadores. E a primeira batalha que travamos foi na frente interna, buscando extirpar os preconceitos sobre a realização do ser humano que havíamos introjetado ao longo da nossa formação. Em paralelo, sem desconsiderar as limitações impostas pela natureza, começamos a procurar meios de ajuda para o desenvolvimento daquela bebezinha de olhos puxados, nariz deprimido, língua grande e musculatura flácida. De início, uma boa notícia: a Mariana não tinha qualquer problema cardíaco, ocorrência frequente em portadores daquela síndrome. Por feliz coincidência, soube por um colega de turma que sua esposa estava frequentando um Programa de Estimulação Precoce para crianças com déficit cognitivo no Curso de Pedagogia da Universidade de Colônia. Apresentados por ela ao professor que conduzia aquele programa pioneiro, conseguimos imediatamente inscrever a Mariana nele. Este programa tinha como um de seus pontos mais inovadores a capacitação dos pais como estimuladores dos seus filhos. Entramos de corpo e alma em suas atividades.

Nossa busca por recursos terapêuticos e pedagógicos que pudessem ser úteis à Mariana estendeu-se inicialmente a outras cidades da Alemanha e, em seguida a outros países europeus, de onde recebíamos informações e convites para visitas por parte de amigos que viviam neles como refugiados políticos, formando-se uma rede que captava novidades que surgissem em quase toda a Europa. A Ruth, como quase concludente de psicopedagogia e eu, mais uma vez, pertinho de formar-me em medicina, estudávamos tudo o que podíamos alcançar sobre o desenvolvimento de pessoas com deficiências. Em Colônia mesmo, localizamos um médico que fazia um tratamento experimental que ele denominava de terapia celular, mas depois de duas aplicações de umas injeções que ele preparava com tecido embrionário do cérebro de carneiros, desistimos por falta de crença em suas bases científicas. Tomamos conhecimento de que um cirurgião plástico estava operando crianças com Síndrome de Down em Frankfurt no Meno, cidade a duas horas de carro de Colônia. Seu fundamento era que, realizadas precocemente, estas operações traziam melhorias funcionais, contribuíam para reduzir discriminações e para aumentar a autoestima da criança no futuro. Depois de muita pesquisa e de uma consulta com ele, decidimos pela realização de um procedimento de elevação da base do nariz e de redução da língua da Mariana. Em Frankfurt, para a realização desta operação, fomos hospedados pela Lourdinha e o Moacir, um casal amigo da Ruth e da Neuma, sua irmã. Os resultados da cirurgia foram altamente satisfatórios do ponto de vista estético e, no caso da língua, também funcionalmente, contribuindo para a melhoria da dicção e da mastigação.

Mariana é um dos seres humanos mais felizes que já conheci. Autoconfiante, comunicativa, bem-humorada e solidária, tem inteligência afetiva e sociabilidade acima da média. É estimada e admirada por familiares, amigos e por muitas pessoas que a conhecem em suas múltiplas atividades. Já teve alguns namorados e diz que não desistiu de casar-se. Lê e escreve, faz discursos e dá palestras sobre sua trajetória de vida e sobre inclusão de pessoas com deficiência. Estagiou nos Correios, trabalhou no Empório Delitália, no Centro Cultural do Banco do Nordeste e na Comissão de Pessoas Com Deficiências da Prefeitura de Fortaleza. Indicada pelo professor Custódio Almeida, atual Reitor da UFC, para fazer formação em Biodança, está em sua etapa final, atuando em dupla na facilitação de grupos em cumprimento do seu período de estágio.

Ao voltarmos do exílio, Ruth e eu viemos para o Ceará com o propósito de aplicarmos aqui o que havíamos aprendido na Europa sobre o desenvolvimento de pessoas com deficiências. Com este objetivo, em parceria com a psicóloga Fátima Diógenes, criamos a Escolinha Raio de Sol e o Centro de Desenvolvimento Humano. Simultaneamente, convidado por Dona Regina Almeida, então presidente da APAE de Fortaleza, ajudei a estruturar naquela instituição uma equipe multidisciplinar para tratamento de pessoas com deficiência, constituída por profissionais da Pedagogia, Psicologia, Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Educação Física e Assistência Social, ocupando por alguns anos o cargo de seu diretor clínico.

Voltando ao relato sobre a Alemanha, como prometi na historieta anterior, vou contar a minhas impressões sobre a primeira viagem que fiz a Berlim, meio século atrás. Fui de carona com algumas pessoas do Grupo Coordenação Brasil da Anistia Internacional para nos reunirmos com participantes do encontro de uma Igreja Evangélica que se reunia anualmente naquela cidade.

Para se chegar a Berlim por terra àquela época, tinha que se atravessar a Alemanha Oriental-RDA por um corredor de cerca de 200 Km de extensão. Ao longo do percurso havia postos de gasolina, lanchonetes e restaurantes administrados pela RDA, onde eram prestados serviços aos que por ali trafegavam.

Nas paradas que fizemos, abordei pessoas que nos atendiam, apresentando-me como brasileiro perseguido por duas ditaduras latino-americanas, interessado em saber como era aquele país e como era viver nele. Assim que eu dizia isso, meus interlocutores calavam-se. Não adiantava insistir. Nada de informações. Nada de opiniões. Respostas somente a perguntas relacionadas aos serviços que prestavam. Qual era a razão daquele comportamento? Suspeita de que eu fosse um espião? Medo? De que?

O mesmo ocorreu ao visitar Berlim Oriental. Naquele tempo, quem estivesse em Berlim Ocidental podia visitar o outro lado da cidade durante o dia, bastando apresentar o passaporte em um posto de controle, na entrada e na saída. Chegando ali, fiz às pessoas as mesmas perguntas que eu fizera no corredor de acesso a Berlim Ocidental. Igualmente em vão. Nos jornais, também não encontrei respostas ao que procurava. Compreendi que se eu quisesse conhecer algo daquela realidade, teria que ser apenas com os olhos. Tudo me pareceu bem ordenado, aparentando um bom funcionamento da vida urbana; o trânsito fluía bem, com predominância de transportes coletivos sobre individuais; os prédios tinham aspecto mais modesto dos que os de Berlim Ocidental, mas a quantidade de museus e de edifícios públicos era maior. Não percebi sinais de pobreza, nem de ostentação. As pessoas vestiam-se de modo discreto, com roupas de boa aparência. A impressão que me ficou, foi de uma cidade com equipamentos urbanos de padrão mediano, tranquila, habitada por uma gente que não se sentia à vontade para falar do lugar em que morava.

O retorno a Berlim Ocidental impôs recordações, comparações e reflexões. Lembrei-me de um acordo feito logo após o término da Segunda Guerra Mundial, dividindo a cidade em quatro zonas, cada uma ocupada por uma das potências vencedoras: União Soviética, EUA, Reino Unido e França. Começada a Guerra Fria, aquele acordo foi rompido, sendo a cidade partida artificialmente em duas, uma sob controle soviético e a outra sob o das três nações ocidentais.

Com três décadas de caminhos econômicos distintos, as duas partes da cidade apresentavam resultados diferentes. Na ocidental, predominavam os sinais de uma reconstrução mais rápida e eficaz da destruição feita pela guerra do que o mesmo processo na parte oriental. Outras manifestações de poder econômico visíveis nos equipamentos urbanos eram também favoráveis a Berlim Ocidental, mas, quanto a isso, tem que ser considerado o volume muito superior de capital externo recebido por aquela parte da cidade. Evidentemente que, devido ao pouco tempo disponível, não tive como fazer comparações entre a qualidade de vida dos habitantes de um lado e do outro. Mas uma diferença saltava aos olhos e entrava pelos ouvidos: o borbulhar do embate de ideias. Neste aspecto, não havia qualquer dúvida. No lado ocidental era a efervescência, no outro a geleira. Com a derrota do nazismo e a divisão do país, a parte oriental iniciara a experiência de um novo sistema econômico sob um regime político autoritário, enquanto a ocidental retomara o caminho iniciado havia quase dois séculos, reforçado, então, pela injeção de capital do Plano Marshal dos EUA e baseado em um processo político democrático.

A democratização da Alemanha Ocidental foi dificultada, parcialmente, quando o governo dos EUA, devido à Guerra Fria, interrompeu o processo de desnazificação que ele próprio iniciara, mas graças a lideranças alemãs que tiraram lições dos prejuízos causados ao país pelos regimes ditatoriais, foi criado um estado representativo de todas as correntes democráticas, capaz de resistir a forças inimigas da democracia. No entanto, em que pese os esforços feitos, o estado democrático nunca deixou de ser assediado por grupos nazistas minoritários, que foram mantidos longe do governo, mas não extirpados politicamente por conta da desnazificação incompleta.

Distanciados por mais de um ano, dois fatos, àquela época, incendiaram o debate político na República Federal da Alemanha a respeito do socialismo e do nazismo: a cassação da cidadania do compositor e cantor Wolf Bierman pela Alemanha Oriental e a exibição da minissérie estadunidense Holocausto pelas televisões ocidentais.

Bierman, que fazia alguns shows na Alemanha Ocidental, foi punido por ter criticado a falta de liberdade na Alemanha Oriental. Este cantor e compositor, que alguns anos depois assumiria posições consideradas direitistas pelos padrões de esquerda, nas suas canções daquela época criticava o consumismo ocidental e todas as ditaduras, dedicando várias à denúncia da opressão na América Latina e na Espanha franquista. Guardo até hoje a letra da linda canção Balada do Cameraman, em que ele narra com grande realismo o assassinato de um repórter que registrava uma ação repressiva de tropas de Pinochet e que, ao ser baleado propositalmente, filmou a própria morte. A canção termina com Wolf Bierman gritando em espanhol: “Viva la Unidad Popular”, suporte político do governo democrático de Salvador Allende, derrubado pelo golpe militar de 1973.

Por outro lado, a minissérie da NBC, Holocausto, desnudando o horror das ações nazistas contra o povo judeu, chocou os alemães ocidentais. A discussão sobre o passado nazista tornou-se assunto do cotidiano. O que antes era evitado por pessoas mais idosas e tratado mais por jovens, passou a ser debatido por todos, em toda parte.

A Alemanha, por já ter vivenciado o nazismo e ter à época uma experiência do que se proclamava socialismo em parte de seu território, dois modelos de sociedade surgidos no Século XX, revelou-se o laboratório mais bem equipado para investigá-los. E nesta investigação evidenciava-se a relevância da questão democrática para a construção de sociedades de bem-estar para todos.

Para mim, que no passado fora algumas vezes condescendente com justificativas de alguns regimes ditatoriais disfarçados, compreendi que ditaduras não podem ser aceitas sob qualquer pretexto ou sob qualquer forma, mesmo dissimulada. Percebi que os sistemas políticos baseados em pensamento único, cedo ou tarde voltam-se contra os interesses da sociedade, no todo ou em parte.

Na próxima historieta, conto a tragédia da Dora, estudante de medicina refugiada em Berlim e falo sobre a Semana Brasil realizada em Colônia que, entre outras atrações, teve as participações do Brizola e do Fagner.

Maranguape, 02 de junho de 2025.


João de Paula Monteiro Ferreira

Ex-presidente do DCE da UFC, ex-diretor da UNE, médico especialista em psicoterapia e psicologia organizacional, formado pela Medizinische Fakultæt der Universitæt zu Kœln, República Federal da Alemanha



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