Não nascemos racistas

João de Paula

Porque quero ficar da cor bonita do meu amigo.

Foi o que respondeu aquele alemãozinho de um seis para sete anos de idade, que tomava sol, deitado na calçada da vila onde havíamos sido alojados na véspera, ao ser perguntado pela nossa intérprete, a nosso pedido, porque estava fazendo aquilo.

A opinião daquela criança nos surpreendeu, nos encantou e nos colocou muitas interrogações. Qual era seu significado para os habitantes daquele lugar? Qual o seu alcance? Representaria uma mudança na posição dos alemães que foram tão afetados pela questão racial, algumas décadas antes? Ou era apenas uma daquelas manifestações da pureza infantil que os adultos não demoram a erradicar? Não tivemos respostas para tais interrogações naquele momento.

Aliás, estávamos cheios de perguntas sobre nossa vida e sobre aquele país onde, por circunstâncias imprevisíveis, iríamos passar um período relevante da nossa juventude. O que era mesmo aquela Alemanha? Quanto tempo viveríamos ali? O que poderíamos esperar da vida naquela nova realidade?

Tínhamos muitas interrogações, mas nenhuma dúvida sobre nossa opção pela oferta de acolhimento da RFA- República Federal Alemanha, que nos deu integral apoio a partir do momento daquela decisão. A sua embaixada no Chile nos entregou passaportes especiais de refugiados e nos deu proteção desde a saída do Refúgio de Padre Hurtado até nosso embarque seguro no avião que nos retirou do Chile.

Ao desembarcarmos em Bruxelas, naquele dia 9 de janeiro de 1974, já no aeroporto nos defrontamos com uma realidade bem diferente daquela em que vivêramos. A começar pela tecnologia. Fingers, máquinas de enxugar mãos, dispositivos automáticos de venda de camisinhas, refrigerantes e cigarros, por exemplo, eram coisas que ainda não tinham chegado aqui. A globalização ainda era lenta àquela época.

Em Bruxelas, fizemos conexão com um voo (pilotado por uma loura alta e muito simpática que não soubemos se era belga ou alemã) para Colônia, cidade da Alemanha situada no Vale do Reno. Ali nos aguardava um carro que nos levou para Unna-Massen, local de triagem para refugiados, no qual passamos quatro dias. Em seguida, viajamos para Bövinghausen, bairro periférico da cidade de Dortmund, onde fomos alojados em uma vila que abrigava refugiados do leste europeu, mas que fora aberta provisoriamente aos perseguidos pela ditadura de Pinochet. Ocupamos o pavimento térreo de um sobradinho de dois andares, com três cômodos, todo mobiliado, simples, mas bastante confortável.

Bövinghausen era um lugar seguro, calmo e agradável. Passamos a frequentar ali um curso básico de alemão. Nas horas livres, fazíamos caminhadas em um campo que se situava atrás da vila e praticávamos natação em uma piscina aquecida de um ginásio fechado, próximo à nossa casa.

Recebemos muitas manifestações de atenção e solidariedade por parte de vários segmentos da sociedade local, que nos ajudava na nossa inserção em seu cotidiano e nos convidava para seus festejos. Foi aí que tivemos a primeira participação em um carnaval alemão. Isto se deu em um baile carnavalesco de um clube local. A festa começou com os casais dançando …valsas, mas tornou-se mais animada quando a orquestra, regida por um maestro com batuta e tudo, passou a tocar ritmos parecidos com rancheiras e mazurcas. Usando nosso inglês-de-colégio, perguntamos ao maestro se ele poderia tocar músicas brasileiras e fomos logo brindados com o repertório que ele possuía: caímos na dança ao som do Tico-Tico no Fubá, da Aquarela do Brasil e da Banda, acompanhados de muitos entusiasmados alemães.

Depois de quase três meses em Bövighausen, fomos transferidos para a cidade de Bochum, pois aceitáramos um convite da sua universidade para fazermos um curso de alemão de duração de um ano, essencial para aprovarmos um exame de proficiência, requerido para que continuássemos com os nossos estudos superiores.

Ao chegarmos em Bochum, já encontramos uma colônia de chilenos e de outros refugiados latino-americanos. mas com poucos brasileiros. Logo fizemos bom relacionamento com esta comunidade e passamos a integrar a sua rede de apoios mútuos.

A propósito da convivência com os latino-americanos, lembro-me de uma ocasião em que, ao aproximar-me do Nelson, um salvadorenho baixinho e muito engraçado, que estava debruçado na sacada do prédio onde funcionava o nosso curso de alemão, olhando para uma obra de construção civil lá embaixo, ele virou-se para mim, dizendo: “acho ótimo ficar aqui observando estes lourões carregando sacos de cimento na cabeça, pois na minha terra só quem faz isso são os crioulos como eu”. E deu uma risada.

O curso de alemão oferecido pela universidade de Bochum reunia pessoas de praticamente todos os continentes. Ali havia alunos do norte da África, do Oriente Médio, da Ásia, da América Latina e de quase toda a Europa. Aquela convivência propiciava um intercâmbio cultural muito rico, que nos tornava conscientes de sermos habitantes de um planeta com grande diversidade humana, o que contribuía para nos sentirmos diferentes e complementares.

Fizemos boas amizades com os colegas. Duas polonesas que tinham parentes vivendo no Paraná, tinham muito interesse no Brasil e me contaram muitas coisas sobre a Polônia, tida a época como um país socialista. Os relatos delas impressionaram-me muito, po,is davam conta da falta de liberdade e da ingerência da União soviética nas políticas do país.

Importante solidariedade recebemos também de portugueses e de espanhóis que trabalhavam na indústria automobilística na região do Ruhr, entorno da cidade universitária que era Bochum. Entre estas pessoas havia também refugiados políticos, pois em Portugal e na Espanha ainda sobreviviam regimes fascistas surgidos antes da Segunda Guerra Mundial. Eles sentiam-se identificados conosco pelas semelhanças culturais e pelo fato de virmos de países dominados por ditaduras militares, com teor fascista. Participávamos de suas atividades de luta pela democracia na península ibérica e das comemorações das festas nacionais de seus países.

Ruth e eu tivemos grande ajuda do casal Gertrudes e Michael, que fazia parte de uma rede de cidadãos criada para dar apoio aos refugiados vindos do Chile. Gertrud era uma secretária bilingue e Michael um alto executivo de empresas. Recebemos deles excelentes orientações sobre a região do Ruhr que eles conheciam muito bem; agiam como se fossem nossos cicerones em passeios a lugares muito bonitos e pacientemente nos contavam sua história e esclareciam fatos daqueles momentos. Na montagem da nossa residência em Bochum, a Gertrudes ajudou muito a Ruth na decoração, enquanto o Michael trabalhava comigo na instalação dos móveis. Estávamos fazendo este serviço e ele constatou que as buchas ue trouxera para fixação de parafusos nas paredes não seriam suficientes, ficando constrangido por termos que interromper as atividades até o sábado seguinte, quando teria novamente folga; sugeri, então colocarmos palitos de fósforo nos buracos e quando ele viu que os parafusos ficaram bem firmes, quase pirou de admiração. Para ele, acostumado com o planejamento eficaz, era difícil imaginar a capacidade brasileira de improvisação no uso de colas, cordões, arames e outros recursos do tipo para fazer gambiarras capazes de substituir vários arranjos tecnológicos.
Muito relevante também foi o desprendimento e a ajuda que a Ruth e eu recebemos do Gerardo Alcoforado, um cearense do Crato, filólogo especializado em alemão, muito respeitado no mundo acadêmico pelos seus profundos conhecimentos e muito querido por estudantes, funcionários e professores da universidade pelo seu modo aberto de ser. O Gegê, como era carinhosamente chamado, nunca quis receber nada pelo serviço que nos prestou de tradução dos nossos documentos para o alemão. Ele tornou-se um grande amigo nosso.

E por falar em cearense, tivemos também na Alemanha um porto seguro, como tivéramos no Chile, do casal Ângela-Paulo Lincoln. De Colônia, onde já estavam relativamente bem instalados, eles nos orientavam sobre os passos iniciais a serem dados, por meio de telefonemas e por carta (um antigo instrumento de comunicação) e batalhavam para conseguir nossa transferência para lá, onde as oportunidades eram melhores do que as de Bochum, onde tivemos a alegria de recebê-los, junto com a Daniela, algumas vezes.

Em Bövinghausen eram recebidos principalmente refugiados do leste europeu, fugidos de regimes socialistas, em Bochum eram mais os perseguidos por ditaduras de extrema direita. Deste modo, a República Federal da Alemanha abrigava pessoas de políticas e ideologias opostas. A própria nação alemã estava dividida em dois países, a parte leste sob influência soviética e a parte oeste, sob influência ocidental, com relações tensas entre elas, agravadas pelas disputas da Guerra Fria, travada entre os Estados Unidos e a União Soviética. A democracia na RFA, retomada após o término da Segunda Guerra Mundial, tinha muitos desafios pela frente por conta de sua complexa situação nacional e pela necessidade de superar o passado nazista.

As atividades dos brasileiros de denúncia dos crimes da ditadura militar, o exame de alemão, o recomeço de nossos cursos e nossa mudança para Colônia, ficam para uma próxima historieta.
Maranguape, 12.05.25



João de Paula Monteiro Ferreira

Ex-presidente do DCE da UFC, ex-diretor da UNE, médico especialista em psicoterapia e psicologia organizacional, formado pela Medizinische Fakultæt der Universitæt zu Kœln, República Federal da Alemanha



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