A ditadura agonizante

João de Paula

– Você pode traduzir uma entrevista com o Apolônio de Carvalho?

Foi o que me perguntou uma jornalista alemã, depois de me explicar que a entrevista precisava ser feita em seu idioma, pois ela não falava português, espanhol, nem francês, línguas faladas pelo brasileiro que ela queria entrevistar. Esclareceu-me que a Rádio de Berlim para a qual trabalhava, estava interessada em contar para seus ouvintes a estória de um ex-militar do Brasil que se tornou herói da Resistência Francesa, lutando contra a ocupação nazista.

Eu já tinha lido sobre a notável trajetória de lutas de Apolônio de Carvalho, mas não conhecia aquela pessoa afável, bem-humorada e cheia de vitalidade, que àquela época beirava os 70 anos de idade. Apolônio respondeu de modo direto e simples todas as perguntas da entrevistadora e narrou sem falsa modéstia, mas com muito comedimento seus embates com as ditaduras do Estado Novo e a de 1964 no Brasil, sua participação nas Brigadas Internacionais contra o fascismo do General Franco, na Espanha e suas atividades na Resistência Francesa, principalmente nas cidades de Marselha, Nimes e Toulouse, que foram reconhecidas com sua condecoração pela Legião de Honra da França (Ordre National de la Légion D’Honneur), instituída em 1802 por Napoleão Bonaparte para distinguir heróis por atos em defesa do país.

A entrevista ocorreu nos bastidores de um encontro que se realizava no auditório do Senado Italiano, em Roma, nos dias 27, 28, 29 e 30 de junho de 1979. Em torno da bandeira da anistia, reuniram-se ali representantes de todas as forças que lutavam pelo restabelecimento da democracia no Brasil, vindos do país e dos mais variados lugares do mundo, com predominância de exilados na Europa. O evento exigia a libertação dos presos políticos, a volta dos refugiados, explicações sobre o destino dos mortos e desaparecidos e o retorno da democracia. Um ponto de atenção dos participantes era não admitir a tentativa do governo ditatorial de dividir as forças democráticas, excluindo da anistia alguns grupos de oposicionistas definidos a seu critério.

Aquele encontro era o ápice do processo de unificação das forças de oposição à ditadura militar, que começara com uma ação protagonizada por mulheres no Brasil em 1975. Naquele ano, mães, esposas, companheiras e filhas de perseguidos políticos criaram o Movimento Feminino pela Anistia, que dois anos depois ganhou grande impulso com a criação dos CBAs – Comitês Brasileiros pela Anistia que se espalharam pelo país e pelo mundo. Criado na Europa em 1978 por estímulo de CBAs do Brasil, o movimento pela anistia havia se fortalecido muito, contando com comitês, núcleos e outras formas de organização em suas mais importantes cidades. Desde a Semana de Solidariedade pela Anistia no Brasil realizada em Colônia, aumentaram muito as articulações locais com grupos de outras cidades por meio do CBA, coordenado por Cristina Buarque, que também participou do encontro na Itália, e pelo Grupo de Coordenação Brasil da Anistia Internacional, com destaque para os vínculos com Lisboa, Paris, Lausane, Amsterdam, Roma e Londres. Várias cidades dos países escandinavos tinham também uma atuação muito relevante.

Dois meses depois daquele evento de Roma, com a ditadura afogada na crise econômica gerada pelo crescimento astronômico da dívida externa e pelo aumento da inflação, foi aprovada pelo Congresso Nacional uma lei que concedeu anistia aos que “cometeram crimes políticos ou conexos com eles”. Com isso abriram-se possibilidades para uma gradativa desmontagem do aparato ditatorial organizado durante 15 anos e para a reconstrução da democracia. Mas, a expressão “conexos com eles” era o que hoje se chama de jabuti que, inserido sorrateiramente na lei, negava seu espírito. Com aquela manobra, ao anistiar os perseguidos, a lei anistiava ao mesmo tempo seus perseguidores. Em outras palavras, era mais uma artimanha perpetuadora da impunidade que resultou em estímulo para os golpistas contumazes do país voltarem a atentar contra o Estado de Direito no Brasil.

No que me diz respeito, levei algum tempo para compreender as consequências da impunidade dos que haviam cometido crimes contra a democracia e contra os opositores da ditadura. Cheguei a considerar que, diante daquele fato consumado, o melhor seria virarmos aquela página triste da nossa história e, olharmos para a frente, cuidando de construir uma democracia revigorada e com justiça social. Pensei assim até que saudosistas do regime de opressão começaram a tramar por seu retorno. Neste sentido, há dois exemplos que clarificam tudo: um dos maiores torturadores da ditadura tornou-se inspirador público do chefe da mais recente tentativa de golpe e um general que se senta ao seu lado no banco dos réus do STF (aquele que, em reunião ministerial disse que era “preciso virar a mesa” antes das eleições de 2022) era o Ajudante de Ordens de um Ministro do Exército que tentou dar outro golpe dentro do golpe em 1978, visando eternizar a ditadura militar.

Falando-se hoje sobre aquele movimento de cidadania ocorrido no Brasil e no mundo na segunda metade da década de 1970, que visava pôr fim a uma longa e brutal ditadura em nosso país, não se pode deixar de mencionar uma farsa da atualidade que avilta o nome anistia, quando um clã familiar conspira com uma potência estrangeira para tentar livrar um membro seu da punição pelo crime de tramar a volta de um regime ditatorial. Este acinte à soberania do Brasil utiliza sanções, taxações abusivas e outras chantagens econômicas e políticas contra o nosso país e suas instituições. Não deixar impune a nova geração de golpistas é um ato de proteção da democracia contra futuros ataques por parte dos que querem uma anistia preventiva para continuar delinquindo contra o Estado Democrático de Direito no Brasil.

Punir pela primeira vez golpistas no Brasil será uma sinalização de que o golpismo começa a não compensar.


João de Paula Monteiro Ferreira

Ex-presidente do DCE da UFC, ex-diretor da UNE, médico especialista em psicoterapia e psicologia organizacional, formado pela Medizinische Fakultæt der Universitæt zu Kœln, República Federal da Alemanha



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