João de Paula
Você não acha melhor voltar para Fortaleza e enfrentar os desafios?
Acho, respondi de imediato à pergunta da Olga, minha irmã, que tinha ido com seu marido Aroldo a Canoa Quebrada levar umas encomendas minhas.
Tudo começara na sexta-feira, da semana anterior, quando eu estava em uma roda de amigos no Estoril, famoso bar na orla de Fortaleza, conversando sobre minhas frustações com a chocante realidade de desigualdade social que encontrara no Ceará ao retornar do exílio. Ao ouvir-me dizer que me sentia desanimado diante daquela situação e que minha vontade era largar tudo e ir viver em Canoa Quebrada entre os pescadores, cuidando deles como médico e recebendo peixe como pagamento, uma colega médica, desafiou-me dizendo: “se tens mesmo coragem para isso, te levo agora pra lá”.
Não sei que outros fatores, além das doses de Vodca que eu havia tomado, me levaram a dizer imediatamente que topava ir e que minha única condição era passarmos na minha casa para eu conversar com a Ruth e pegar algumas coisas para a viagem. Chegando em casa a Ruth já estava dormindo; escrevi então uma carta comunicando-lhe minha decisão, enchi uma pequena sacola com roupas e itens de higiene pessoal e parti.
Eu havia conhecido aquele lindo lugarejo no início do ano de 1980, quando fui levado ali pelo deputado federal Iranildo Pereira. Minha colega médica voltou no domingo para Fortaleza, levando uma carta para a Olga, na qual eu comunicava à família a decisão que tomara e lhe fazia o pedido de me trazer meus livros de medicina e meus instrumentos médicos.
O começo em Canoa foi de quase êxtase diante da beleza do lugar e do encantamento com a acolhida de seus moradores. Aglomeravam-se no minúsculo povoado jovens dos mais diversos países e de vários estados brasileiros. Com o passar dos dias o mais do mesmo foi se tornando entediante. Eu não me enquadrava na atitude contemplativa nem nos gostos daqueles “hippies temporões” por certas substâncias químicas ilegais. O projeto de cuidar de doentes em troca de peixe revelou-se uma quimera: eles já contavam com serviços de saúde em Aracati, prestados por vários médicos competentes e dedicados, entre os quais se destacava um irmão do Inocêncio, o Uchôa, meu colega de turma na faculdade e companheiro das lutas estudantis contra a ditadura militar, que tem gente que diz que não existiu. Concluí que para mim a idílica Canoa Quebrada era uma alternativa ilusória. Por isso, não precisei pensar para responder à pergunta da Olga sobre voltar para Fortaleza.
A primeira coisa que fiz ao retornar, foi procurar a Ruth para uma conversa. No seu modo sempre digno e direto de tratar problemas interpessoais, ela me disse: “não tenho nada a comentar sobre a decisão que você tomou sobre nossa separação, mas proponho que continuemos a fazer tudo em relação à Mariana como sempre fizemos e que, fora disso, só voltemos a ter contato quando eu lhe avisar que estou disposta” Esta posição revelou-se muito sábia. Não demorou muito para que ela me dissesse que já estava preparada para retomarmos nossos projetos de trabalho com crianças com deficiência. Entrementes, ela reabrira seu coração e entrara em uma nova relação amorosa que lhe proporcionava muita felicidade. As atividades que passamos a realizar conjuntamente, inspiradas da nossa filha Mariana, transcorreram em um ambiente de cooperação, admiração e respeito mútuos e foram criando as bases para o desenvolvimento de uma amizade profunda, que perdura até hoje, baseada em confiança, valores comuns, cuidado, solidariedade e identificação com coisas essenciais das nossas vidas. O elo inquebrantável entre nós dois criado e fortalecido constantemente pela Mariana, nunca teve o mais leve arranhão.
A lição de Canoa Quebrada revigorara minhas energias e me dera clareza sobre os desafios que se colocavam diante de mim para readaptar-me à dura realidade da minha terra e escolher as formas de contribuir para sua transformação.
Depois de registrar-me no Conselho Regional de Medicina do Ceará, recebi um convite para instalar uma clínica para tratamento de pessoas com deficiência na Escola Profissionalizante da APAE de Fortaleza, dirigida por Regina Almeida e Gercelina Picanço e outro para atuar como médico no CEE- Centro de Estimulação Essencial, recém-criado em Fortaleza por Cleomar Landim, pedagoga paulista, casada com um cearense. Foi neste Centro que conheci a Fátima Diógenes, que atuava ali como estagiária de psicologia.
A situação no CEE mudou quando sua fundadora, acometida de um tumor cerebral, teve que retornar a São Paulo para tratamento. Ela delegou à Fátima Diógenes, que já havia concluído o seu curso de psicologia, e a mim, a condução do Centro. À frente do CEE, Fátima e eu convidamos a Ruth para assumir sua direção pedagógica. O quadro de saúde da Cleomar obrigou-a a encerrar as atividades do CEE, o que levou a Fátima Diógenes, a Ruth e a mim à decisão de dar continuidade àquele trabalho, organizando uma outra instituição.
Resolvemos criar a Escolinha Raio de Sol, pertinho dali, nos associando a mais duas pessoas. Esta iniciativa foi um passo adiante do CEE no que se refere à proposta educacional, com manutenção do atendimento clínico a crianças com deficiência. A escola revelou-se inovadora em muitos aspectos da educação infantil, incluindo os que se relacionavam com os benefícios para todos os alunos produzidos pela inclusão de crianças com algum tipo de deficiência. A Ruth disse-me uma vez que a experiênciada da Escolinha Raio de Sol foi sua fonte de inspiração para criar a Educação Biocêntrica, proposta pedagógica que já se propagou por mais de vinte países e que é apresentada no seu livro EDUCAÇÃO BIOCÊNTRICA (Ciência, Arte, Mística, Amor e Transformação) escrito em parceria com Cezar Wagner de Lima Góis e Colaboradores.
Com grande aumento da demanda por atendimento clínico, resolvemos criar uma outra organização, deixando na Raio de Sol apenas as atividades educacionais. Então, fundamos em abril de 1983 o CDH- Centro de Desenvolvimento Humano, com sede na Rua Silva Jathay, 25. tendo a Ruth como diretora pedagógica, a Fátima como diretora administrativa e eu como diretor clínico. Montamos uma excelente equipe transdisciplinar, selecionando bons profissionais de pedagogia, psicologia, fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional e assistência social
Nosso trabalho com crianças com distúrbios neuropsicomotores diferenciava-se dos então existentes no Ceará pela nossa ênfase na estimulação precoce e pela inserção dos pais como agentes ativos do tratamento dos seus filhos. Neste sentido, as mães, sobre as quais costumam incidir as maiores responsabilidades pelos cuidados especiais com os filhos, destacavam-se também no seu tratamento. Na verdade, elas eram as protagonistas de todo o processo. Outro ponto importante de nossa atenção foi a busca de condições para que nossos serviços pudessem ser acessados por famílias de baixa renda pois, devido ao fato deles envolverem vários profissionais, tinham custos elevados. A solução foi firmar convênios com instituições governamentais e privadas que custeavam o tratamento. A experiência que o CDH acumulava e a reconhecida competência de seus profissionais foi sendo canalizada para a formação de especialistas nas áreas de educação e de saúde.
Minha atividade como diretor clínico da APAE de Fortaleza propiciou-me contatos com várias outras organizações beneficentes que atendiam pessoas com deficiência. Na convivência com elas constatei que tinham três pontos em comum: uma forte liderança das mulheres que dirigiam todas elas, a dificuldade de superar os preconceitos da sociedade e a carência de recursos humanos e financeiros. Compreendi que além do meu saber técnico, eu poderia dar uma contribuição também em atividades de esclarecimento da população, sensibilização de autoridades e formação de profissionais especializados. Assim, utilizando o que aprendera de comunicação e mobilização no movimento estudantil, passei a dar palestras, escrever artigos, estimular a organização de cursos de capacitação de especialistas e a participar de campanhas de sensibilização para apoio à causa das pessoas com deficiência. Estas atividades foram muito facilitadas quando, em 1981, fui escolhido como coordenador da Comissão Científica do Ceará para a programação do Ano Internacional das Pessoas Portadoras de Deficiências — AIPD. Em paralelo às atividades relacionadas às pessoas com deficiência, buscando contribuir para a solução de problemas de saúde das comunidades, atuei naquele ano como Membro da Comissão da Arquidiocese de Fortaleza da Campanha da Fraternidade, criada por Dom Aluísio Lorscheider, Arcebispo Diocesano. Em 1981 aquela Campanha anual da CNBB teve como tema Saúde e Fraternidade e como lema Saúde para Todos. Sob a coordenação da freira Wzelyr Barros Leal, publiquei artigos sobre o lema da Campanha e fiz palestras em bairros pobres de Fortaleza sobre os problemas de saúde mais frequentes e discuti soluções para eles. Para iniciar os trabalhos da comissão, escrevi um texto com o título de SAÚDE COMO DIREITO DE TODOS, objetivando sensibilizar e mobilizar os profissionais de saúde do Ceará a engajarem-se na Campanha. Minha atuação no Centro Médico Cearense, que à época representava ideais democráticos e de justiça social da nossa categoria profissional, e minha procura por uma organização política onde eu pudesse atuar como cidadão, são assuntos para outra historieta. () Esta era a nomenclatura usada àquela época.
João de Paula Monteiro Ferreira

Ex-presidente do DCE da UFC, ex-diretor da UNE, médico especialista em psicoterapia e psicologia organizacional, formado pela Medizinische Fakultæt der Universitæt zu Kœln, República Federal da Alemanha

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