O julgamento histórico e a condenação pelo STF dos integrantes da organização criminosa liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro propõem novos olhares à indagação sobre que país é este?
Mariluce Moura
O líder da organização criminosa, Jair Messias Bolsonaro, e os componentes (generais, inclusive) de seu chamado núcleo crucial, todos autores da preparação de um golpe de estado e abolição violenta do estado democrático de direito no Brasil, entre meados de junho de 2021 e 8 de janeiro de 2023, já estão condenados. O voto que definiu esse passo de afirmação democrática foi o da ministra Carmem Lúcia Antunes Rocha, atualmente única mulher entre os juízes do Supremo Tribunal Federal (STF). Aguardemos detalhes e eventuais recursos da defesa.
Enquanto isso, é possível que a interminável, vergonhosa e absurda digressão do ministro Luís Fux, ao longo de toda a quarta-feira, 9 de setembro, seja em termos políticos ou jurídicos, tenha temporariamente empanado a nitidez de uma pergunta importante — mas não a desautorizado. Mantém-se de pé, a meu juízo, a seguinte questão: como o Brasil está conseguindo levar adiante um esforço hercúleo pela manutenção e avanço da democracia em suas fronteiras, estando imerso num ambiente internacional marcado exatamente por ataques fascistas e destruição de pilares da democracia, guerras sangrentas em expansão e cínicos e aterrorizantes genocídios, com morticínio em escala desesperadora de jovens e adolescentes?
Ao me propor essa pergunta, na terça-feira, 9 de setembro, em meio à apreciação da densidade e beleza do voto do juiz relator da Ação 2668 no STF, Alexandre de Moraes, e da inteligente concisão do voto do ministro Flávio Dino, meu olhar seguia algumas linhas tênues.
Via parte importante do judiciário, núcleos fortes do governo federal, partidos de esquerda, algumas instituições da sociedade civil e movimentos sociais, alinhados nesse empenho geral de forjar uma democracia poderosa num mundo marcado pelo multilateralismo, com força do Sul global por grande empenho do Brics. E via, de outra parte, o atual legislativo, executivos estaduais, os partidos da direita e extrema direita, o setor financeiro da economia, largas parcelas do agro, da indústria e dos serviços, e mais o consórcio empresarial/político/religioso que viceja no país (tão bem revelado em ‘Apocalipse nos trópicos’, o filme imperdível de Petra Costa), todos conjugados no empreendimento de defesa de seus mesquinhos e violentos interesses particulares. E, sim, para isso diretamente alinhados e submetidos à extrema direita imperial do mundo, em sua face político-belicosa puxada por Donald Trump, e em sua face econômica e de dominação ideológico- cultural bem representada nas expressões de Elon Musk, Mark Zuckerberg e big bosses similares das big techs e mega indústria eletrônica.
O prolongado desgosto produzido, na quarta-feira, pelas mais de 12 horas de fala de um juiz que tentava naturalizar como meras bravatas um concreto pesadelo de violências e ameaças institucionais vivido por esta nossa nação e mais a leitura de múltiplos artigos de respeitados analistas, sobre os possíveis efeitos políticos e jurídicos dessa torpe digressão, me puseram a duvidar um tanto da pertinência ou da oportunidade da pergunta.
Por exemplo, o colunista da Folha de São Paulo Vinicius Torres Freire observou em sua coluna desta quinta-feira que “as teses de Fux servirão de grito de batalha para o bolsonarismo, nas redes, nos tribunais, no Congresso”. Adiante acrescentou: “pelo menos parte dos aliados parlamentares de parte do agro, do evangelismo político de direita, de um novo empresariado ou dos militares, além da maioria dos governadores da nova direita, querem anistiar ou imunizar, ‘blindar’, sem mais, o comando bolsonarista”. Sua conclusão é que “o golpe não terminou; há golpes dentro do golpe.”
Já a cientista política Maria Hermínia Tavares, de forma mais positiva em sua coluna no mesmo jornal, sob o título “A extrema direita contra o país”, ao analisar os riscos de uma anistia aos autores da tentativa de golpe em torno da qual se movimentam animados parlamentares bolsonaristas e seus amigos, como o governador Tarcísio de Freitas, de São Paulo, observou: “anistiar Bolsonaro e seus sequazes, em nome da pacificação, não trará paz: dará sinal verde para a extrema direita continuar explorando em benefício próprio a desconfiança de parte do público no sistema político”. De resto, acrescentou, “embora politicamente rachado, o país não está em guerra; é a extrema direita que ataca a democracia. Defendê-la exige, de imediato, respeitar a histórica decisão do Supremo; a médio prazo, confinar politicamente os partidários do autoritarismo”,
Um sentimento francamente positivo e a convicção de que precisamos, sim, continuar a nos interrogar sobre a posição um tanto singular do Brasil, hoje, em meio a expansão mundial de fascismos, de crise da democracia burguesa articulada à crise do capitalismo, me veio, entretanto, pouco depois das 16h da quinta-feira, 11 de setembro, quando a ministra Carmem Lucia nos deu a certeza da condenação de Bolsonaro. E entre muitas inspiradas frases de seu poderoso voto, às quais voltaremos, vou ficar por ora apenas com um pequeno comentário enquanto o ministro Flavio Dino e ela aparteavam o presidente da 1ª turma do STF, ministro Cristiano Zanin. “Espero que esse julgamento seja um remédio para a democracia brasileira, de modo que não haja recidivas”. De golpes de Estado, entenda-se.
Mariluce Moura

Jornalista e pesquisadora, Mariluce Moura, nascida em Salvador-Bahia em 03/11/1950, é diretora-presidente do Instituto Ciência na Rua, organização não governamental de pesquisa e jornalismo de ciência voltada ao público jovem. Atualmente é também pesquisadora do INCT Combate à Fome, vinculado à USP, em seu eixo temático de Comunicação-Difusão Científica e Ciência Cidadã, e do Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (Sou Ciência), vinculado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Atua no campo do jornalismo científico desde 1988, depois de duas décadas de trabalho no jornalismo geral e econômico em grandes jornais e revistas brasileiros. Criou e foi diretora, de 1999 a 2014, da revista Pesquisa Fapesp, editada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Deu início à implantação do setor de comunicação dessa fundação em abril de 1995 e foi sua gerente de comunicação de dezembro de 1995 a julho de 2002. É professora titular aposentada da Universidade Federal da Bahia, reintegrada em dezembro de 2015, por decisão da Comissão da Anistia/Ministério da Justiça, 40 anos após ter sido demitida por perseguições políticas da ditadura militar de 1964-1985. É graduada em Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia (1972), mestra (1987) e doutora (2006) em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e tem um pós-doutoramento pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas (Labjor-Unicamp, 2019). Lançou no Memorial da Resistência de São Paulo, em outubro de 2023, por ocasião dos 50 anos do assassinato pela ditadura de Gildo Macedo Lacerda, seu marido, o livro A revolta das vísceras e outros textos, edição ampliada de seu romance premiado publicado em 1982. No mesmo ato, Tessa Moura Lacerda, sua filha, professora de filosofia da USP, lançou Pela memória de um paí[s]: Gildo Macedo Lacerda, presente!. Mariluce Moura foi presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico.




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