A Brutalidade ao Vivo: Como o Anonimato Digital Alimenta o Feminicídio

Lígia Bacarin

O triplo feminicídio de Morena Verdi, Brenda Loreley Del Castillo e Lara Morena Gutiérrez apresenta uma dimensão de crueldade que vai além da violência física: a espetacularização da tortura e da morte. Conforme apurado pelas investigações, parte dos assassinatos foi transmitida ao vivo através de uma plataforma digital, com uma plateia de aproximadamente 45 pessoas assistindo passivamente ao horror se desenrolar.

Este detalhe não é um mero acréscimo midiático; ele transforma a natureza do crime. A violência de gênero, que historicamente ocorre na esfera privada, é aqui projetada para um espaço público digital, onde a agressão misógina se converte em um espetáculo de consumo imediato. A existência dessa plateia anônima levanta questões profundas sobre a dessensibilização coletiva e a cumplicidade social. Enquanto as jovens eram torturadas, dezenas de indivíduos, protegidos pelo anonimato de suas telas, optaram por ser espectadores de um feminicídio, normalizando a barbárie e falhando em interromper ou reportar a atrocidade que testemunhavam em tempo real.

Este fato é a expressão máxima da coisificação: os corpos das mulheres são reduzidos a objetos de entretenimento em uma transmissão descartável, e sua dor, a uma mercadoria digital. A brutalidade, portanto, não se limitou os agressores físicos, mas foi amplificada e validada pela passividade de cada um dos 45 espectadores, que se tornaram, por omissão, cúmplices de um sistema que trata a vida de mulheres pobres e jovens como algo de valor descartável.

Este artigo analisa a conexão entre o anonimato proporcionado pelas plataformas digitais e a perpetuação do feminicídio, sob a ótica do materialismo histórico. Argumenta-se que a violência transmitida ao vivo representa uma expressão contemporânea da “cosificação” e da “dessensibilização” social, onde a vida das mulheres, especialmente as mais pobres, é tratada como mercadoria espetacularizada, reforçando as estruturas do patriarcado capitalista.

1. Introdução: A Nova Face de um Crime Antigo

O feminicídio, definido como o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher, é a manifestação mais extrema de uma violência estrutural de gênero. Contudo, o cenário contemporâneo agrega um elemento perturbador: a transmissão ao vivo e a divulgação desses crimes em plataformas digitais. Este fenômeno, como o caso ocorrido na Argentina que chocou a América Latina, não é um mero acidente tecnológico, mas a ponta de um iceberg de opressões interligadas. A partir de uma lente teórica que integra o marxismo e o feminismo materialista, este artigo propõe que o anonimato digital funciona como um lubrificante social que intensifica e potencializa a violência misógina, ao mesmo tempo em que a insere em uma lógica de espetáculo e consumo típica da “fábrica social” capitalista. A hipótese central é que o ambiente online reproduz e amplifica as estruturas patriarcais da sociedade, contribuindo para o silenciamento e a desumanização das mulheres.

2. Referencial Teórico: O Patriarcado sob o Capitalismo

Para compreender a brutalidade ao vivo, é essencial recorrer a autoras que realizaram a síntese entre a crítica marxista ao capital e a crítica feminista ao patriarcado.

2.1. A Exploração do Trabalho Reprodutivo

Silvia Federici, em obras como Calibán y la Bruja, demonstra que a opressão das mulheres é fundamental para a acumulação capitalista. Ela revitaliza o conceito de “acumulação primitiva”, mostrando que a caça às bruxas na transição para o capitalismo tinha como objetivo controlar o corpo e o trabalho reprodutivo das mulheres. O trabalho doméstico não remunerado – a reprodução da força de trabalho – é a base invisível sobre a qual se ergue a produção capitalista. Quando o sistema pressiona, como em crises econômicas, a violência contra as mulheres tende a aumentar, pois seus corpos se tornam o “território” onde se desenham as tensões sociais.

2.2. A Cosificação como Mercadoria

A teoria marxista tradicional discute a coisificação (Verdinglichung) do trabalhador assalariado. Os feminismos materialistas expandem essa noção para o corpo das mulheres. No capitalismo, a vida e o corpo das mulheres podem ser tratados como mercadorias ou meios de produção. A transmissão ao vivo de um feminicídio é a expressão máxima dessa lógica: a dor feminina é convertida em um produto digital a ser consumido por uma plateia anônima. O anonimato dos espectadores, por sua vez, elimina a responsabilidade, transformando a cena em um puro ato de consumo de um “espetáculo da barbárie”.

2.3. A Interseccionalidade: Classe e Gênero

O movimento “Ni Una Menos”, que eclodiu na Argentina, evidenciou o caráter de massa e anticapitalista da luta feminista contemporânea, destacando o papel decisivo das mulheres da classe trabalhadora. A violência não atinge a todas as mulheres da mesma forma. As vítimas de feminicídios mais brutais e da espetacularização midiática são, majoritariamente, mulheres jovens, pobres e periféricas, o que evidencia o que se pode chamar de feminicídio de classe. Suas vidas são consideradas, na prática, mais “descartáveis” pelo sistema.

3. O Anonimato Digital e a Arquitetura da Impunidade

O anonimato nas redes sociais não é uma característica neutra, mas sim um elemento que modifica profundamente a dinâmica social da violência.

3.1. A Dissolução do Laço Social e a Dessensibilização
O anonimato dissolve o contrato social básico que rege as interações face a face. Sem a identidade revelada, o indivíduo sente-se liberado das amarras éticas e da possibilidade de sanção social. Em casos de transmissão ao vivo de crimes, isso cria uma plateia passiva que, ao não intervir ou sequer reportar o crime em tempo real, torna-se cúmplice por omissão. Esse fenômeno é agravado pela “violência semiótica”, conceito cunhado por Mona Lena Krook para descrever o uso de palavras e imagens para danificar, disciplinar e subjugar as mulheres. A repetição de cenas de violência nas redes contribui para uma dessensibilização coletiva, onde a agressão misógina se normaliza.

3.2. O Corpo como Território de Conquista e Espetáculo
A transmissão ao vivo de um feminicídio transforma o corpo da mulher em um território de conquista não apenas para o agressor físico, mas para todos os espectadores anônimos. É a materialização digital do que Rita Segato denuncia como a “conquista de um pedaço de soberia” através da violência. O ato de assistir, protegido pelo anonimato, é também um ato de posse simbólica. A violência se torna um espetáculo que afirma poder e aterroriza coletivos inteiros, funcionando como um mecanismo de controle social.

3.3. A Lógica da Plataforma e a Valorização do Choque
As plataformas digitais, regidas por uma lógica de acumulação de atenção e dados (capitalismo de vigilância), muitas vezes beneficiam-se indiretamente do conteúdo que gera engajamento rápido, mesmo que seja violento. A brutalidade ao vivo, nesse sentido, é também um subproduto perverso de um sistema econômico que valoriza o choque e a comoção como mercadorias de alto valor no mercado de atenção. O anonimato facilita a circulação desse conteúdo, pois protege tanto os espectadores quanto, inicialmente, os próprios algoritmos que o promovem, da responsabilização direta.

Para Além da Tela, a Luta de Classes

A brutalidade ao vivo do feminicídio, amplificada pelo anonimato digital, não é um desvio do sistema, mas uma consequência lógica de um patriarcado capitalista que encontra nas novas tecnologias um campo fértil para se reatualizar. O anonimato atua como um campo de provas” da impunidade, onde a desvalorização da vida das mulheres, já presente na esfera material, é levada a seu paroxismo na esfera virtual.

Combater esse fenômeno exige mais do que ajustes normativos. Exige uma revolução cultural e econômica. Como apontam as teóricas materialistas, a luta contra o feminicídio é indissociável da luta pela socialização do trabalho doméstico e de cuidado, por uma educação sexual integral que combata a discriminação desde a base e pela transformação radical das estruturas que perpetuam a desigualdade e a violência. A luta feminista, ao enfrentar a brutalidade ao vivo, revela-se, assim, intrinsecamente anticapitalista. As vidas de Morena, Brenda, Lara e tantas outras exigem que desnaturalizemos a violência por trás das telas e construamos um mundo onde a vida das mulheres não seja commodity, descartável ou espetáculo.


Referências Bibliográficas

  • DA SILVA, A. C. W. Misoginia online: Manosfera e a red pill no ambiente virtual brasileiro. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2022.
  • FEDERICI, S. Calibán y la bruja: Mujeres, cuerpo y acumulación primitiva. Tinta Limón, 2004.
  • FORO NACIONAL SOBRE FEMINICIDIO: VISIONES Y SOLUCIONES. Reporte 2023. Wilson Center, Mexico Institute.
  • GHERARDI, N. «El femicidio es la expresión más extrema de la violencia…». Entrevista. Nueva Sociedad, 2016.
  • KRÖOK, M. L. Violencia semiótica en contra de las mujeres. En: IDEA Internacional, Violencia política de género en la esfera digital en América Latina, 2023.
  • MALNIS, C. M. Silvia Federici: entre el marxismo y el feminismo. Claves de lectura de su obra puesta en contexto. Millcayac – Revista Digital de Ciencias Sociales, 2020.
  • Marxismo y feminismo • ¡Millones de oprimidas en pie!. Izquierda Revolucionaria.
  • RÍOS TOBAR, M. Violencia política de género en la esfera digital en América Latina. IDEA Internacional, 2023.
  • SEGATO, R. L. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. E-cadernos CES, 2012.

Ligia Maria Bueno Pereira Bacarin 

Professora de História na rede pública de ensino. Com mestrado em Fundamentos da educação, pós-graduação em Educação Especial e doutorado em Fundamentos da Educação. Militante do Psol-PR e colaboradora nas mídias sociais da Geração 68.



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